Em março de 2024, no programa Pânico da Jovem Pan, Pablo Marçal declarou: “Vamos fazer um desafio valendo 1 milhão de dólares [...]; um milhão de reais não, dólares [...]. Seguinte: acha aí meu CPF e vê se eu processei alguém por conta de qualquer coisa. Eu sou formado em Direito [...]. Ache um processo que eu dou 1 milhão de dólares [...].” 1
No mês seguinte, um advogado afirmou ter encontrado pelo menos dez processos em que Pablo Marçal figurava como autor. Procurado, Marçal não admitiu a promessa, e o advogado decidiu levar o caso a juízo.
Após pouco mais de um ano de disputa, no último dia 16 de junho a juíza da 2ª Vara Cível de Barueri julgou improcedente a ação.2 Para ela, “a suposta ‘oferta’ invocada pelo autor não se revestiu das características necessárias para configurar proposta juridicamente vinculante, consoante dispõe o artigo 427 do Código Civil.”
Suas razões: a manifestação de Marçal teria sido “proferida de forma genérica em contexto notoriamente informal e de entretenimento”, sem se dirigir “especificamente ao autor ou a pessoa determinada”. Estaríamos diante de “mero comentário jocoso ou hiperbólico, desprovido de seriedade negocial”, realizado em “ambiente de descontração e informalidade próprio do contexto humorístico”. Não haveria objeto determinado, tampouco “precisão quanto às condições de execução, elementos indispensáveis para a validade de qualquer pactuação”. Nada que pudesse obrigar Marçal a cumprir o que prometeu.
Contrato e promessa
Se a qualificação feita pela juíza estivesse correta — se estivéssemos mesmo diante de uma proposta de contrato —, nada haveria a dizer: de fato, Marçal não poderia ser obrigado a cumprir o que declarou. Faltariam elementos essenciais para a composição de um contrato, nos termos dos arts. 427 e seguintes do CC. Mas o ponto é justamente esse: não se trata de proposta de contrato. A fala de Pablo Marçal não constitui oferta contratual, e sim promessa de recompensa — figura diversa, disciplinada entre os arts. 854 e 860, ainda do CC. É a partir desse enquadramento, negligenciado pela sentença, que o caso deveria ter sido julgado.
A confusão entre as figuras não é nova. No meio do século passado, Pontes de Miranda já alertava que a “promessa de recompensa não se confunde com as ofertas ou propostas de contrato, quaisquer que sejam”.3 Décadas antes, Clovis Bevilaqua era ainda mais enfático: “evidentemente” não há, na promessa de recompensa, “um contrato em formação, porque a obrigação do promitente é firme ainda a respeito daquele que tenha executado o trabalho anunciado, nas condições indicadas, sem ter sido estimulado pelo convite.”4
Destinatários, objetos e condições
A diferença entre proposta contratual e promessa de recompensa é o ponto de inflexão do caso. Nas promessas de recompensa, a declaração do agente é suficiente para gerar a obrigação, não havendo necessidade de qualquer ato de aceitação por outro sujeito.5 É o que ocorreu no caso de Marçal, que publicamente se comprometeu a dar algo a quem preenchesse certa condição.
Essa situação se distingue da proposta contratual e mesmo da oferta pública de contrato, que dependeriam de aceitação e já deveriam conter, em si, os elementos essenciais do contrato a ser celebrado. Seria, porém, artificioso pensar que Marçal tenha feito, por exemplo, uma promessa pública condicionada de doação: sua declaração mais se distancia do que se aproxima de um ato de liberalidade.
A promessa pública de recompensa se dirige, “indeterminadamente, a qualquer pessoa”,6 ou seja, a quem quer que preencha a condição exigida.7 Isso não afeta, de modo algum, “a validade da vinculação”.8 O destinatário da promessa poderia ser, no limite, “a humanidade”. Seria o caso em que alguém prometesse dar “um milhão de cruzeiros a quem apresentar o melhor estudo sôbre o descobrimento do Brasil”, como exemplificava Pontes de Miranda.9 Em todo caso, ainda que estivéssemos diante de oferta contratual pública, não haveria necessidade de que a declaração de vontade fosse “dirigida especificamente ao autor ou a pessoa determinada”, como exigiu a magistrada.
Além disso, a “certa condição” a que se refere o art. 854 do CC, que deve ser preenchida para o surgimento da pretensão à recompensa, foi determinada: no caso, a condição era encontrar ao menos “um processo” que tenha sido proposto por Marçal “por conta de qualquer coisa”. Se bem que amplo, trata-se de objeto determinado. Houve, inclusive, precisão do modo de execução: “acha aí meu CPF”. O desafio proposto não era uma charada. Era direto, verificável e condicionado a um critério objetivo. Nenhuma dessas características foi reconhecida pela decisão.
Seriedade da declaração
Tanto a defesa de Marçal quanto a sentença se basearam na suposta falta de seriedade da declaração. O argumento faz recordar o § 118 do CC alemão (e o art. 245 do CC português), segundo o qual “uma declaração de vontade não séria, realizada na expectativa de que sua falta de seriedade não será mal interpretada, é nula”.
No Brasil, não existe regra genérica semelhante a essa em relação a negócios jurídicos, mas os arts. 427 e 429 do CC permitem chegar ao mesmo resultado prático, ao determinarem que propostas de contrato obrigam seus proponentes, “se o contrário não resultar das circunstâncias do caso”. Entre tais circunstâncias seria possível incluir a seriedade.
A doutrina tende, de todo modo, a inserir a seriedade entre os elementos de existência ou os requisitos de validade de negócios jurídicos. Baseando-se nas circunstâncias negociais objetivas, que fazem “com que socialmente uma manifestação de vontade seja vista como destinada a produção de efeitos jurídicos”, Antonio Junqueira de Azevedo argumentava que não existiria negócio jurídico se, por exemplo, a declaração tivesse sido feita “no palco ou numa sala de aula”.10 Faz sentido: ninguém acreditaria que um ator, ao representar uma personagem, ou um professor, ao dar um exemplo, emitem realmente uma declaração de vontade vinculante com o objetivo de se tornarem obrigados a cumprir o que prometem.
Mas e se apenas faltasse seriedade a uma declaração, como no caso em que alguém tivesse o “intuito de fazer graça”? Para Junqueira, essa declaração seria nula. E, caso o declarante tivesse, por culpa sua, causado prejuízo a alguém em virtude dessa declaração, deveria então indenizar a vítima.11
Pablo Marçal não representava personagem. Não ilustrava hipótese. Não estava, sequer, fazendo graça. Falava, como ele mesmo destacou, “ao vivo”, publicamente, em tom deliberado, e reiterou sua promessa sem hesitação. Se existia ali algum jogo, não era cênico, mas retórico. E tinha por objetivo afirmar, em cadeia nacional, a própria autoridade moral. Não havia nenhum sinal objetivo de que a promessa fosse, no fundo, brincadeira, ou de que tivesse sido antes movida por intenção jocosa, o animus iocandi medieval.
Ironia das ironias: foi justamente essa performance de convicção, apta a gerar expectativas legítimas, que a sentença desqualificou como piada.
Promessa em moeda estrangeira
Restaria, talvez, uma última linha de defesa: a alegação de que a promessa seria nula por ter sido feita em dólares — e não em reais. O argumento se apoia no art. 318 do CC, que declara “nulas as convenções de pagamento em ouro ou em moeda estrangeira”. Ainda que a regra se refira expressamente a contratos, poderia, por analogia, ser aplicada a declarações unilaterais que criam obrigações, como a promessa de recompensa.
Mas essa última cartada não poderia beneficiá-lo. A jurisprudência do STJ é pacífica no sentido de que “são legítimos os contratos celebrados em moeda estrangeira, desde que o pagamento se efetive pela conversão em moeda nacional”. Basta, portanto, que a dívida de Marçal seja, “no ato de quitação”, convertida “para a moeda nacional, com base na cotação da data da” declaração “e, a partir daí, atualizadas com base em índice oficial de correção monetária”.12
O caso da promessa de Pablo Marçal ilustra os riscos de se aplicar categorias jurídicas de maneira inadequada. Ao tratar uma promessa de recompensa como se fosse proposta contratual, a sentença acabou por recusar eficácia a negócio jurídico unilateral perfeitamente válido, expresso em termos claros e objetivos. Não se trata de premiar a esperteza de quem litiga sobre uma bravata, mas de reconhecer que, mesmo em contextos de informalidade e arrebatamento retórico, ou mesmo de manipulação política, o que torna uma promessa juridicamente obrigatória é sua adequação a exigências legais. A promessa de Marçal cumpre essas exigências.
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1 A fala de Pablo Marçal pode ser consultada aos 21 minutos e 59 segundos do seguinte vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=T9WvUaa5TwM&t=80s. Parte da fala foi transcrita no seguinte texto: MIGALHAS. Marçal faz desafio valendo US$ 1 mi, advogado cobra e Justiça nega. Migalhas, 18 jun. 2025. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/432992/marcal-faz-desafio-valendo-us-1-mi-advogado-cobra-e-justica-nega.
2 TJSP, Processo n. 1008098-10.2024.8.26.0068, 2ª Vara Cível, Juíza: Daniela Nudeliman Guiguet Leal, j. 16/06/2025.
3 Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado – Parte Especial – Tomo XXXI – Direito das obrigações. Negócios jurídicos unilaterais. Denúncia. Revogação. Reconhecimento. Promessas unilaterais. Traspasso bancário. Promessa de recompensa. Concurso, São Paulo: RT, 2012 [1954], § 3.618, p. 177.
4 Clovis Bevilaqua, Codigo Civil dos Estados Unidos do Brasil commentado, v. 5, t. 2, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1926, p. 287 (em comentário ao art. 1.512 do Código Civil de 1916). Em sentido semelhante, na Alemanha, Werner Flume observava, para destacar a diferença da promessa de recompensa (Auslobung) em relação às propostas de contrato, que a pretensão ao recebimento da recompensa poderia surgir mesmo para a pessoa que tivesse executado a ação descrita na promessa sem tê-la previamente em consideração (e mesmo se não quisesse, de início, a recompensa). Allgemeiner Teil des bürgerlichen Rechts II – Das Rechtsgeschäft, 2a ed., Berlin, Springer, 1975, § 1, p. 9, nt. 7. Isso está em harmonia com o art. 855 do Código Civil brasileiro, segundo o qual “quem quer que, nos termos do artigo antecedente, fizer o serviço, ou satisfizer a condição, ainda que não pelo interesse da promessa, poderá exigir a recompensa estipulada”.
5 João de Oliveira Geraldes, Sobre a promessa pública, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa 61 (2020), pp. 422–423: “a promessa pública de recompensa seria, desde logo, a fonte da obrigação de cumprimento, sem necessidade de se verificar qualquer ato de adesão por parte do potencial titular do crédito resultante da obrigação assumida pelo promitente” (escrevendo a respeito do §657 BGB, que trata da promessa de recompensa).
6 Clovis Bevilaqua, Codigo Civil dos Estados Unidos do Brasil commentado, v. 5, t. 2, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1926, p. 288 (em comentário ao art. 1.513 do Código Civil de 1916).
7 “É uma declaração sui generis, porque endereçada a qualquer anônimo”, de acordo com Caio Mario da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil III – Contratos. Declaração unilateral de vontade. Responsabilidade civil, 22. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2018, item 277.
8 João de Oliveira Geraldes, Sobre a promessa pública, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa 61 (2020), pp. 440–441. Nesses casos, apenas ocorre um condicionamento da “imputação subjetiva” da eficácia do negócio: somente no futuro é que se determinará, caso alguém preencha a condição, o titular do direito à recompensa.
9 Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado – Parte Especial – Tomo XXXI – Direito das obrigações. Negócios jurídicos unilaterais. Denúncia. Revogação. Reconhecimento. Promessas unilaterais. Traspasso bancário. Promessa de recompensa. Concurso, São Paulo: RT, 2012 [1954], § 3.618, p. 325.
10 Antonio Junqueira de Azevedo, Negócio jurídico: existência, validade e eficácia, 4. ed., São Paulo: Saraiva, 2002 [1974], pp. 89 e 91.
11 Antonio Junqueira de Azevedo, Negócio jurídico: existência, validade e eficácia, 4. ed., São Paulo: Saraiva, 2002 [1974], p. 91.
12 STJ, REsp 1.323.219/RJ, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 27/08/2013, DJe 26/09/2013. No mesmo sentido, STJ, REsp 680.543/RJ, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 16/11/2006, DJ 04/12/2006.