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Boas práticas da instrução on-line: Guia de etiqueta profissional ou garantia de efetividade e confiança no processo?

Audiências on-line trazem avanços ao Judiciário, mas levantam alertas sobre integridade da prova e confiança no processo.

24/6/2025
Marcela Melichar Suassuna

1. Introdução

Estamos vivenciando a quarta revolução industrial, caracterizada pelo conjunto de tecnologias que permitem a fusão do mundo físico, digital e biológico, partir dos anos 2000. A Internet foi fundamental para conferir velocidade e ampliar o alcance e o impacto das tecnologias emergentes e das inovações generalizadas, ditados pelo fenômeno da exponencialidade,1 que interfere em diversos setores da economia2 e, evidentemente, também se estende para o campo jurídico.3

Há alguns anos essa evolução tem sido observada no Poder Judiciário. A começar pela disponibilização dos andamentos processuais pela Internet e, posteriormente, com a implantação do processo eletrônico pelos tribunais e alguns órgãos administrativos, catalisada pela promulgação da lei 11.419/06 (que regulou a informatização do processo judicial), promovendo a informatização no âmbito forense e contribuindo com a gestão dos processos e organização de autos processuais e documentos.

Somado ao movimento global de difusão da informação em proporções nunca antes experimentadas, um recente evento mundial desafiou – ainda que desafortunadamente – a tecnologia a dar mais um passo à frente. Com a pandemia da covid-19 e a adoção de medidas restritivas em diversos países, a humanidade se viu largamente cerceada da liberdade de locomoção física, ainda que com a maior das razões. Embora o “presencial” fosse coibido, o mundo não havia parado.

O direito também não descansou. Pretensões decorrentes da própria situação da pandemia proliferaram. Ações contra seguradoras, planos de saúde, hospitais, pleitos de reequilíbrio econômico-financeiro de contratos, discussões de aplicação de índices monetários; enfim, uma miríade de novos litígios, além dos milhões de processos já em curso. E como não poderia ser diferente, o Poder Judiciário precisava tutelar os interesses dos jurisdicionados, conferir resolução aos casos submetidos à sua análise.

A realidade se impôs, e o Poder Judiciário precisou recorrer justamente à tecnologia para viabilizar o exercício do seu poder jurisdicional e o atendimento às demandas da sociedade, agora, sobretudo na situação pandêmica, cada vez mais urgentes. Não sendo possível, naturalmente, aguardar o arrefecimento da pandemia, o Judiciário passou a promover diversos atos processuais de maneira remota ou on-line, incluindo a realização de intimações, o atendimento ao público e, ainda, a realização de audiências judiciais.

A inserção do Judiciário no mundo on-line poderia ter sido, ao menos por uma ótica leiga, interpretada inicialmente como contraintuitiva, já que comumente se associa o Poder Judiciário como um ambiente antiquado e burocrático – injustamente em alguns casos, em outros não. No entanto, de forma geral, o movimento foi muito bem-sucedido e em razão dessa prática ter sido recepcionada de forma bastante positiva, ela continua a ser observada no Poder Judiciário mesmo no contexto pós-pandêmico.

O êxito da prática, contudo, não a torna absolutamente indene de questionamentos, a depender das circunstâncias fáticas existentes. Um exemplo disso são as audiências realizadas de forma telepresencial, ou remota, destinadas à instrução probatória, o que inclui – e este será o escopo do presente artigo –, a oitiva de testemunhas fáticas e/ou técnicas e os depoimentos pessoais de representantes das partes; enfim, a colheita de prova oral.

A prática forense demonstra que, não raro, o rigor formal antes exigido para a colheita da prova em audiência foi flexibilizado em virtude da sua realização de forma remota, o que acaba por gerar possíveis “crises” de confiança na instrução, resvalando para uma desconfiança no processo em si. Longe de representar um óbice instransponível à realização das audiências telepresenciais – o que não se cogita –, a questão merece ser examinada com a devida cautela e crítica.

2. A pandemia da covid-19 e a propulsão das audiências telepresenciais

É seguro afirmar que, ao menos dentro do último século, não se viu uma pandemia como a que representou a covid-19. A partir do início de 2020, diante do alto grau de infecciosidade do coronavírus SARS-CoV-2, grande parte dos países instaurou medidas restritivas para controle da propagação da pandemia, incluindo o Brasil.

O agravamento da pandemia e as medidas de proteção adotadas pelos estados e municípios contra o coronavírus incluíram, como não poderia deixar de ser, a suspensão do atendimento ao público e no fechamento dos tribunais judiciais. O expediente passou a ocorrer de forma remota, com atendimento forense por e-mail e telefonemas. Posteriormente, alguns atos processuais passaram a ser praticados de forma remota, com intimações eletrônicas, mandados eletrônicos expedidos por oficiais de justiça e, enfim, a realização de algumas audiências, de forma telepresencial.4

O impulsionamento das audiências, julgamentos e até mesmo despachos telepresenciais foi ampliando à medida que o tempo de pandemia se alongava. E se no início havia reticência acerca da sua efetividade, a realidade provou que, muitas vezes, a modalidade on-line poderia até ser considerada mais adequada, além de ser uma medida que reduz custos atrelados ao deslocamento de testemunhas e advogados, o que, em última análise, amplia o próprio acesso à justiça.

Contudo, há que se diferenciar algumas audiências das outras. Por exemplo, despachos com magistrado feitos entre o juiz e os advogados não necessitam de maiores ritos formais para sua ocorrência. Julgamentos em sede recursal tampouco. Como os fatos já estão estabelecidos e discorridos nos autos do processo, a oralidade costuma se prestar à exposição do caso. Situação distinta ocorre com as audiências instrutórias, sobretudo naquelas em que há a oitiva de testemunhas, fáticas e/ou técnicas, e de representantes legais, já que seu objetivo precípuo é a formação do livre convencimento do juiz, mediante a exposição de questões sobre as quais, ao menos em tese, deve haver comprometimento com a veracidade. Daí porque ruídos de comunicação nessa fase podem gerar, como geram, algumas fundadas desconfianças.

3. A “crise” de confiança na instrução processual on-line

A despeito das inúmeras vantagens conferidas pela informatização e desenvolvimento tecnológico, a prática forense tem demonstrado que o rigor antes exigido para a colheita da prova em audiência foi flexibilizado em virtude da possibilidade de sua realização de forma remota, trazendo uma possível “crise” de confiança na instrução probatória. E se residem questionamentos sobre a instrução, a confiança no próprio processo também pode ser impactada.

Muitas pessoas ainda não estão preparadas para o mundo on-line, muito menos no âmbito do Poder Judiciário. Não é incomum participar de audiências com ruídos externos que atrapalham o andamento da audiência e a própria oitiva, tampouco com problemas na visualização da tela usada pela testemunha. Muitas testemunhas entram na audiência on-line – e muitos magistrados não o exigem – sem mostrar os arredores do local em que estão, o que se prestaria a comprovar que não há outros indivíduos na mesma sala que possam transmitir informações, orientar o depoimento prestado etc.

Não raro, também não se exige enquadramento da tela do computador ou do smartphone utilizados pelas testemunhas para a audiência, sendo impossível verificar, por exemplo, se a testemunha está com algum documento para direcionar sua oitiva, ou com outro smartphone usado para trocar comunicações com as partes ou os advogados, comprometendo a integridade do depoimento prestado. Tudo isso acaba por inspirar certa desconfiança sobre o processo, que deve ser visto como compreensível, em certa medida.

Mas não há regulamentações mais específicas acerca das audiências on-line. Em 2020, foi editada resolução 354 de 19 de novembro de 2020 pelo CNJ, que dispõe, entre outras questões, sobre o cumprimento digital de atos processuais e de ordens judiciais. Essa Resolução foi posteriormente revogada pela ulterior resolução 481 de 22 de novembro de 2022, também estabelecendo algumas diretrizes para a modalidade remota da prática dos atos processuais, porém no contexto do retorno das atividades presenciais nos tribunais com o arrefecimento da pandemia da covid-19.

Essas resoluções, entretanto, não estabelecem requisitos específicos para atendimento das formalidades que devem pautar a realização das audiências on-line. Por exemplo, embora estabeleça que o deferimento da participação por videoconferência depende de viabilidade técnica e de juízo de conveniência pelo magistrado, não se propõe a prever parâmetros que definem a “viabilidade técnica” do juízo apta a viabilizar a audiência telepresencial. De forma semelhante, apesar de estabelecer que as testemunhas serão inquiridas a cada vez para que umas não saibam nem ouçam os depoimentos das outras, não determina de que forma isso seria resguardado na prática.

A resolução também prevê que o magistrado tomará as cautelas necessárias para assegurar a inexistência de circunstâncias ou defeitos que impeçam a manifestação livre, mas não dispõe parâmetros para essas “cautelas necessárias”, tampouco se esse dever é exclusivo do magistrado ou se há deveres impostos também às partes para resguardar a “manifestação livre” das testemunhas e representantes legais ouvidos.

Há lacunas, portanto. Contudo, elas podem ser supridas com a experiência alheia. Nesse ponto, a adoção desse tipo de tecnologia já vem há muito sendo utilizada no campo da arbitragem, pelas instituições arbitrais e pelos escritórios de advocacia. É possível tomar essa experiência como inspiração e, no que couber e no que for tecnicamente viável, ser ampliado e adaptado pelo Poder Judiciário.

4. Uma possível inspiração: audiências telepresenciais em arbitragem

Não seria irresponsável afirmar que a arbitragem se sujeitou a uma evolução tecnológica de formas mais célere e ampla em comparação com as cortes judiciais. Naturalmente, a natureza privada da arbitragem, que atrai a privatização também do seu trâmite, mediante a administração dos processos em instituições arbitrais privadas, contribuiu para esse cenário, colocando-a em franca vantagem, ao menos neste ponto, em relação ao Poder Judiciário.

Até mesmo porque a modernização das instituições arbitrais e dos escritórios de advocacia5 também deve ser compreendida como uma questão competitiva, na qual se busca prestar serviços de forma mais atrativa possível. E, novamente, a pandemia da covid-19 acelerou ainda mais o desenvolvimento de tecnologias no âmbito da arbitragem, estendendo-se também a prática de atos de forma remota.

Se antes, ao menos no Brasil, parte relevante dos procedimentos arbitrais era parcialmente digital, pois ainda havia a necessidade de realizar protocolos físicos de petições e documentos, a pandemia obrigou os tribunais arbitrais e centros de arbitragem a aceitar, ao menos provisoriamente, procedimentos 100% digitais. Da mesma forma, audiências arbitrais passaram a ser realizadas por videoconferência, embora possa haver certa reticência a se recorrer a tal meio em alguns tipos de audiência (i.e., audiência de instrução, como se aborda neste trabalho).

Especificamente no que tange à realização de audiências presenciais, houve notável preocupação para conferir melhores condições técnicas para uma boa condução das audiências arbitrais. Algumas instituições de arbitragem criaram plataformas de compartilhamento de documentos, passaram a adotar ou a criar plataformas on-line para a realização de audiências e reuniões e, naturalmente, as assinaturas de peças, termos de arbitragem, ordens processuais passou a ser feita pela via digital.

Essa maior cautela a respeito das atividades realizadas de forma on-line decorre, inclusive, da própria necessidade de se demonstrar a integralidade do procedimento, independência e imparcialidade dos árbitros, e a garantia à prolação de uma sentença arbitral exequível consoante os parâmetros da lex arbitri brasileira, como corolário do fato de que a arbitragem é, essencialmente, um meio de resolução de disputas lastreado na autonomia da vontade das partes.

Daí porque várias instituições de arbitragem passaram a editar regras e orientações especificamente relacionadas às audiências on-line. Há várias câmaras que tiveram essa iniciativa, porém iremos nos ater ao exemplo de três instituições arbitrais: Istanbul Arbitration Centre (ISTAC), American Arbitration Association (AAA) e International Chamber of Commerce (ICC).

A ISTAC foi a primeira câmara arbitral a desenvolver orientações para a realização de audiências online, as Istac Online Hearing Rules and Procedures.6 Essas regras e princípios são aplicáveis a qualquer audiência realizada sem presença física dos participantes, por meio de teleconferência ou videoconferência – denominadas pelo ISTAC como “audiências on-line” (on-line hearings). Tal regramento deixa a cargo das partes ou dos árbitros optar pela realização de audiências na modalidade on-line caso entendam apropriado – embora, evidentemente, se as partes discordarem da audiência on-line e o tribunal arbitral insistir, estaremos diante de questão a ser resolvida com o exame dos poderes instrutórios dos árbitros, que poderá ser objeto de um artigo futuro, mas não deste.

As regras preveem que o tribunal arbitral, após consulta às partes, deve determinar o software a ser utilizado na audiência, as medidas necessárias para assegurar a confidencialidade e a segurança da audiência e providenciar a estrutura para a realização da audiência. Também fica estabelecido que cabe às partes providenciar os equipamentos técnicos e software necessários para a audiência, bem como garantir que o local onde estejam seja adequado e seguro para a audiência a ser realizada. Se necessário, árbitros e partes podem contar com a ajuda técnica da secretaria do ISTAC.

De maneira similar, a AAA lançou as regras da Order and Procedures for a Virtual Hearinga via Videoconference7 e a Virtual Hearing Guide for Arbitrators and Parties.8 Em breves linhas, estabelecem diretrizes para as partes usarem câmeras de computador com boa qualidade, checar com antecedências as luzes do local onde estão localizadas, minimizar sons externos, silenciar o microfone quando não estiverem usando a palavra, evitar realizar outras atividades on-line durante a audiência (i.e., responder e-mails e mensagens), priorizar o uso de duas telas de computadores, entre outras propostas para a boa condução on-line.

A ICC disponibiliza um protocolo para a realização de audiências on-line, a ICC Checklist for a Protocol on Virtual Hearings and Suggested Clauses for Cyber-Protocols and Procedural Orders Dealing with the Organisation of Virtual Hearings.9 Esse protocolo envolve um Plano Pré-Audiência, Escopo e Logística (Pre-Hearing Plan, Scope and Logistics), capítulo próprio para Questões Técnicas, Especificações, Requerimentos e Equipe de Suporte (Technical Issues, Specifications, Requirements and Support Staff), disposições sobre Confidencialidade, Privacidade e Segurança (Confidentiality, Privacy and Security), Etiqueta on-line e Considerações de Devido Processo Legal (Online Etiquette and Due Process Considerations), entre outros.

Há disposições similares às encontradas nos outros dois regulamentos, porém com maior detalhamento, indicando questões de ordem verdadeiramente prática e atribuindo os respectivos ônus à observância dos parâmetros estabelecidos nesse Protocolo. São várias as situações mencionadas no Protocolo, que chama atenção pela pretensão de fazer constar ocorrências reais e indicações de resolução, i.e., realizar um teste da audiência um mês antes da sua efetiva realização para verificar acesso e conexão; elaboração de tutoriais sobre como acessar a plataforma virtual e manejar as ferramentas nela disponibilizadas.

5.  As boas práticas da instrução on-line: propostas de endereçamento à questão

A experiência verificada no âmbito da arbitragem é bastante profícua e pode ser transportada para a seara judicial com considerável compatibilidade. As práticas voltadas à segurança da informação, a efetividade no compartilhamento de informações e na boa visualização dos depoimentos, a eventual garantia à confidencialidade do procedimento, ao estabelecimento da ordem e organização dos trabalhos, bem como a busca pela total integridade e confiabilidade na prova colhida deveriam ser, também, garantidas no processo judicial.

Primeiro, é de se assegurar às partes que a plataforma de videoconferência oferecida seja eficiente para a boa condução da audiência. Essa questão também deve ser observada pelas partes e advogados em relação a suas testemunhas, que deverão ser avisadas sobre as plataformas que serão utilizadas e devem se responsabilizar pelo respectivo download e verificação de compatibilidade com seus computadores.

A ambientação do local onde é colhido o depoimento é de suma importância, a fim de evitar que haja poluição sonora, poluição visual, desfoque de imagem, problemas com o microfone, entre outras questões, com vistas a assegurar a oralidade e a adequada colheita da prova oral. Como consequência, também deve ser conferida ordem aos atos praticados, por exemplo, com a organização da ordem e do tempo de fala dos oradores, de modo a evitar sobreposição de vozes e advertências, pelo magistrado, caso sejam verificados problemas técnicos durante a oitiva.

Outro pilar da instrução – on-line ou não – é garantir a integridade da prova, entendida como a garantia de que nenhum fator externo ou exógeno impacte na honestidade e na transparência da testemunha e/ou do representante legal que está a depor. Para tanto, podem ser cogitadas algumas medidas de ordem prática, como exibição de toda a sala onde a testemunha se encontra a fim de verificar que a pessoa está sozinha e sem influência externa de algum interessado no deslinde da causa, a visualização das mãos da testemunha para aferir se podem estar lendo anotações etc. Se houver fundadas dúvidas acerca da integridade e honestidade do depoimento, impor-se o deslocamento da testemunha a local "neutro", como salas de audiência no próprio tribunal ou mesmo em salas da Ordem dos Advogados do Brasil (“OAB”).

Deve ser, ainda, assegurada a cibersegurança na colheita dos depoimentos, de modo a garantir confidencialidade e a privacidade de dados na audiência on-line, com restrições técnicas de acesso por terceiros, atualização de licenças de segurança nas plataformas on-line utilizadas, uso e atualização de programas de antivírus, e pleno em atendimento à Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD10 e outras normas de confidencialidade que eventualmente se imponham.

Assim, podemos resumir o que foi até aqui tratado em cinco práticas-chave para a boa condução das audiências on-line no âmbito do Poder Judiciário:

É verdade que a adoção das práticas acima certamente trará maiores custos aos tribunais, seja pela disponibilização de estruturas mais adequadas, seja pelo oferecimento de treinamentos de aperfeiçoamento aos serventuários e magistrados, entre outras questões. Sabe-se que condições orçamentárias são essenciais para o avanço da tecnologia nos tribunais e este artigo não pretende negar esta realidade. O que se propõe, entretanto, é algum norte, algum parâmetro a ser observado, ainda que a passos mais cuidadosos, ou, no mínimo alguma reflexão sobre um problema corrente observado nessa nova “realidade on-line”.

Finalmente, é necessário endereçar as situações que eventualmente surjam em razão de descumprimento dos rigores necessários na instrução on-line. Uma medida mais drástica seria a rejeição da coleta do depoimento de testemunha ou representante que não se comprometa com uma postura mais transparente durante a audiência. Por exemplo, é negar o depoimento de testemunha que insiste em depor através do seu smartphone sem mostrar que suas mãos estão livres, que não há outra pessoa no mesmo recinto etc.

Essa medida, naturalmente, pode gerar imbróglios mais a frente, como pedidos de anulação de atos por conta da negativa da oitiva, sobretudo sem que houvesse aviso prévio. Por essa razão, ela poderia ser atenuada caso se oportunizasse à parte e/ou ao advogado uma chance para prestar condições adequadas para a colheita da prova oral antes do indeferimento. Seria, eventualmente, remarcar a audiência instrutória – sabendo que possivelmente a parte adversa possa se opor, já que alongaria ainda mais o processo – com o aviso de que o não cumprimento de exigências técnicas será sob pena de indeferimento da oitiva.

Esse encargo pode ser, inclusive, expressamente conferido ao advogado, utilizando-se como paralelo o disposto no art. 455 do Código de Processo Civil, que estabelece o dever do advogado de informar ou intimar a testemunha por ele arrolada acerca do dia, data e horário da audiência instrutória, sem a necessidade de intimação específica do juízo. Pode-se cogitar de ampliar essa obrigação também para assegurar o atendimento a exigências técnicas para uma oitiva de testemunhas íntegra e transparente.

A questão, entretanto, parece que seria mais adequadamente resolvida mediante um exame de ônus e peso probatório. Caso a parte ou o advogado não garanta a integridade da prova oral, seja por problemas técnicos ou por quaisquer outros, o magistrado poderia conceber o depoimento, por analogia, ao de um informante, sem o mesmo comprometimento com a veracidade dos fatos que uma testemunha teria. Por isso mesmo, o depoimento do informante – e, neste caso, da testemunha inadequada – deve ser colocado em consideração com as demais provas dos autos e não, evidentemente, de forma isolada.

Depois de aferido o peso probatório que entender adequado, o magistrado ponderaria a qual das partes reside o ônus probatório do fato probante que seria demonstrado por meio da prova oral e, a partir daí, considerado o peso probatório anteriormente ponderado sobre o depoimento em questão, formar o seu convencimento para decidir. Decerto, o efeito prático disso, seria, no mínimo, maior preocupação e cuidado das partes e seus patronos na indicação das testemunhas a serem arroladas, o que, por si só, já garantiria mais efetividade ao processo.

Caso nada disso ocorra, pode-se cogitar, em última análise, a condução coercitiva da testemunha para comparecimento à audiência, ainda que realizada de forma telepresencial, obrigando-a a se deslocar a um local neutro para que possa prestar o seu depoimento, podendo ser, inclusive, dentro do próprio tribunal. Não é, entretanto, o que se almeja, porquanto se afasta dos princípios de celeridade, efetividade e cooperação que se buscam no processo civil.

6. Conclusão

É inegável que o avanço da tecnologia promoveu, em grande medida, o aperfeiçoamento de diversas searas dentro do processo civil. A Internet facilitou a busca e o compartilhamento de informação; a evolução das máquinas, das datilógrafas até os computadores pessoais, contribuiu para melhorias à eficiência e celeridade dos serventuários, magistrados, advogados e demais operadores do direito; mais recentemente, a propagação de plataformas digitais viabilizou que atos processuais e audiências sejam realizados de forma on-line, abreviando distâncias, desobstruindo os corredores dos tribunais e conferindo efetividade à instrução.

As novas tecnologias, informatização e o seu amplo uso foram propulsionados por conta da pandemia da Covid-19 e das medidas restritivas em combate à propagação do vírus. A cultura jurídica construída em cima das laudas e laudas em papel, sobretudo no âmbito do contencioso judicial e arbitral, tornou-se impraticável frente à impossibilidade do acesso físico a autos, documentos, e aos próprios tribunais, diante do isolamento social que se impôs.

Apesar do lamentoso contexto, resiliência e inovação encontraram terreno fértil e contribuíram com o valioso desenvolvimento e aprimoramento do sistema judiciário através da informatização e realização de atos processuais de maneira remota. A tendência é de clareza meridiana, como visto nos novos sistemas de consultas documentais, de compartilhamento de dados e de realização de audiências de forma on-line, telepresencial.

Os tribunais judiciais passaram a aperfeiçoar seus softwares de consulta e peticionamento eletrônico, a digitalizar processos físicos por sua iniciativa e a permitir que as partes e seus patronos o façam, a realizar julgamentos, audiências e despachos de advogados com juízes por meio de plataformas de videoconferência.

Mas nada é indene de críticas e questionamentos. Sobretudo no âmbito das audiências realizadas de forma telepresencial, muitas vezes a forma atabalhoada que testemunhas, representantes e mesmo advogados se apresentam através da tela do computador fazem surgir dúvidas acerca da integridade da prova a ser colhida. De outro lado, também subsistem fundados receios quanto à cibersegurança e a proteção dos dados e imagens das pessoas envolvidas na audiência, ainda mais em um contexto de recente entrada em vigor das disposições da LGPD.

O mundo on-line traz uma infinidade de benefícios, mas pode trazer desafios que devem ser analisados com a devida atenção e com críticas construtivas. Partes, advogados, juízes, testemunhas e serventuários devem atuar em cooperação para assegurar ordem e integridade na instrução probatória e existem condutas práticas que podem ser adotadas antes e durante a audiência para essa finalidade. É o que se buscou fazer, ainda que de forma breve, no presente artigo.

Portanto, as inquietações acerca da realização das audiências instrutórias de forma telepresencial não são infundadas, nem levianas. A bem da verdade, os tribunais judiciais devem, sim, impor um maior rigor formal na condução da instrução on-line, a fim de, objetivamente, garantir a integridade da prova, a segurança das informações e, ao final, a própria confiança das partes no processo, ao mesmo tempo em que assegura a efetividade processual inegavelmente trazida pelas audiências telepresenciais.

Para uma sociedade e uma prática jurídica tradicionalmente focadas no “papel”, mas repentinamente transmutadas a uma realidade digital, espera-se que as proposições acima sejam vistas para além de um simples “guia de etiqueta”, mas sim, orientações mais claras e objetivas para boas práticas da instrução on-line, garantindo maior confiabilidade no processo e mais efetividade ao Poder Judiciário.

__________

1 Após citar o físico Albert Allen Bartlett, Erik Navarro Wolkart e Daniel Becker comentam "[q]uando partimos de unidades muito baixas, a exponencialidade é pouco perceptível, mas, após certo tempo, ela atinge abruptamente proporções gigantescas. Além disso, sempre tendemos a pensar na história e no desenvolvimento como algo linear. É um erro. Pense em quanto o mundo mudou nos últimos 100 anos. Agora, pense novamente em quanto ele mudou nos últimos 20. Isso é a força da exponencialidade." (Da Discórdia Analógica para a Concórdia Digital, In O advogado do amanhã: estudos em homenagem ao professor Richard Susskind. FEIGELSON, Bruno, BECKER, Daniel, RAVAGNANI, Giovani (coord.). São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 115).

2 "Technological development has become a necessary ingredient in strategies of economic growth. Both governments and private actors have realized that the global economy of the twenty-first century is one driven by knowledge and technology in which innovations that increase productivity have a disproportionate effect on economic performance." (GUILLÉN, Mauro F., ONTIVEROS BAEZA, Emilio. Global turning points: the challenges for business and society in the 21st century. 2nd ed, Cambridge, United Kingdom: Cambridge University Press, 2016, p. 109).

3 Ainda que seja de conhecimento público que "innovation in legal is slow – incredibly, painfully, excruciatingly slow. (...) it is the legal structure of our system that is our industry's limiting factor – not the lack of killer apps". Disponível em https://abovethelaw.com/2016/06/the-quiet-crisis-in-legal-and-how-to-fix-it-eddie-hartmans-vision/, acesso em 26.05.2025.

4 Vale, aqui, destacar a diferença entre as audiências telepresenciais e os julgamentos virtuais, que já vinham sendo realizados. Enquanto os julgamentos virtuais ocorrem de forma totalmente remota, em ambiente digital e com envolvimento apenas do órgão julgador, os julgamentos ou audiências telepresenciais tentam emular a realização desses atos de forma presencial, sendo realizada por videoconferência com a participação “ao vivo” dos magistrados, partes, advogados, Ministério Público e outros sujeitos processuais eventualmente envolvidos.

5 Entende-se o mercado de advocacia no Brasil, de uma maneira geral, como um mercado competitivo, no qual há muitos compradores e vendedores negociando serviços semelhantes, de modo que cada comprador e vendedor é um tomador de preço (MANKIW, N. Gregory. Introdução à economia. São Paulo: Cengage Learning, 2013, p. 262). Ainda: "The Market has moved in a similar direction. Clients looking to control legal spend, supported by changes in information and project management technologies and competition among law firms, are unbundling legal work to assign tasks rather than cases to individual lawyers or firms, applying procurement principles to source legal projects to the most cost efficient providers." (RATNER, Morris A. Restraining Lawyers: From "Cases" to "Tasks". Fordham L. Rev. 2151, 2017).

6 Disponível em https://istac.org.tr/en/dispute-resolution/arbitration/istac-online-hearing-rules-and-procedures/, acesso em 26.05.2025.

7 Disponível em https://www.adr.org/sites/default/files/document_repository/AAA270_AAA-ICDR_Model_Order_and_Procedures_for_a_Virtual_Hearing_via_Videoconference.pdf, acesso em 26.05.2025.

8 Disponível em https://go.adr.org/rs/294-SFS-516/images/AAA268_AAA%20Virtual%20Hearing%20Guide%20for%20Arbitrators%20and%20Parties.pdf, acesso em 26.05.2025.

9 Disponível em https://iccwbo.org/content/uploads/sites/3/2020/12/icc-checklist-cyber-protocol-and-clauses-orders-virtual-hearings-english.pdf, acesso em 26.05.2025.

10 No Brasil, a proteção de dados pessoais é regida pela Lei nº. 13.709/2018, conhecida como a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que objetiva regulamentar a proteção de dados por empresas públicas e privadas. Dentre algumas das disposições estabelecidas pela referida lei, tem-se a necessidade de obter consentimento do titular a autorizar a coleta de seus dados pessoais, a restrição ao uso de dados tidos como sensíveis (e.g., dados de origem racial ou étnica, convicção religiosa e opinião política) e o estabelecimento de sanções em caso de vazamento indevido de informações. A iniciativa de editar uma lei específica para a proteção de dados encontra ressonância na necessidade de adequar o ordenamento jurídico brasileiro ao avanço da tecnologia da informação.

Marcela Melichar Suassuna

Mestre em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). LL.M (Master of Laws) pela New York University School of Law (NYU Law). Graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Advogada.

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