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Projeto de Lei quer fechar as portas da Justiça para quem mais precisa dos Juizados Especiais

Introduzir custas ao ingresso dos Juizados Especiais Cíveis é relativizar o princípio fundamental do acesso à Justiça previsto expressamente na CF (art. 98) e afastar justamente aqueles que não conseguem arcar com os elevados custos do sistema comum.

7/7/2025
Ana Tereza Basilio e Carlos Guedes

O PL 3.191/19 (substitutivo da Câmara dos Deputados ao PL do Senado 227, de 2018), de autoria do senador Hélio José, pretende a alteração da lei 9.099, de 26 de setembro de 1995, para prever ressalvas à gratuidade das despesas no âmbito dos Juizados Especiais.

Atualmente, em trâmite na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania – CCJ do Senado Federal, com parecer de relatoria do Senador Weverton Rocha favorável ao acolhimento parcial do PL 3.191/19 e com atualização no dia 7/5/2025 para inclusão na pauta da CCJ, propõe a alteração dos artigos 54 e 55, da lei 9.099/1995, com o objetivo de restringir significativamente o acesso à justiça em âmbito dos Juizados Especiais Cíveis, incluindo a previsão da cobrança de custas judiciais.

Eis os dispositivos originais e os dispositivos com as alterações propostas:

Seção XVI

Das Despesas

Art. 54. O acesso ao Juizado Especial independerá, em primeiro grau de jurisdição, do pagamento de custas, taxas ou despesas.

Parágrafo único. O preparo do recurso, na forma do § 1º do art. 42 desta Lei, compreenderá todas as despesas processuais, inclusive aquelas dispensadas em primeiro grau de jurisdição, ressalvada a hipótese de assistência judiciária gratuita.

Seção XVI

Das Despesas

Art. 54. O acesso ao Juizado Especial dependerá do pagamento de custas, taxas, emolumentos e despesas, salvo na hipótese de gratuidade de justiça.

§ 1º O preparo do recurso, na forma do § 1º do art. 42 desta Lei, compreenderá custas, taxas, emolumentos e despesas processuais, salvo se a parte for beneficiária de gratuidade de justiça.

§ 2º Se houver necessidade de cumprimento de ato judicial por oficial de justiça, a parte interessada deverá antecipar o valor para custeio da diligência, salvo se esta for beneficiária de gratuidade de justiça.” (NR)

Art. 55. A sentença de primeiro grau não condenará o vencido em custas e honorários de advogado, ressalvados os casos de litigância de má-fé. Em segundo grau, o recorrente, vencido, pagará as custas e honorários de advogado, que serão fixados entre dez por cento e vinte por cento do valor de condenação ou, não havendo condenação, do valor corrigido da causa.

Parágrafo único. Na execução não serão contadas custas, salvo quando:

I - reconhecida a litigância de má-fé;

II - improcedentes os embargos do devedor;

III - tratar-se de execução de sentença que tenha sido objeto de recurso improvido do devedor.

Art. 55. A sentença de primeiro grau não condenará o vencido em honorários de advogado, ressalvados os casos de litigância de má-fé. Em segundo grau, o recorrente, vencido, pagará as custas e honorários de advogado, que serão fixados entre dez por cento e vinte por cento do valor de condenação ou, não havendo condenação, do valor corrigido da causa.”

De fato, os Juizados Especiais Cíveis foram criados para democratizar o acesso à justiça, reduzindo os custos, os procedimentos e as formalidades processuais. Estas foram algumas das diretrizes fundamentais que inspiraram a edição da lei 9.099/1995, na esteira da terceira onde renovatória do acesso à justiça, conforme defendido na clássica obra de Mauro Cappelletti e Bryan Garth, “Acesso à Justiça”.1

Introduzir custas ao ingresso dos Juizados Especiais Cíveis é relativizar o princípio fundamental do acesso à justiça previsto expressamente na Constituição da República Federativa do Brasil (art. 98) e afastar justamente aqueles que não conseguem arcar com os elevados custos do sistema comum.

Além disso, os Juizados Especiais Cíveis já vêm enfrentando um esvaziamento. Muitos cidadãos buscam o rito comum acreditando que obterão indenizações maiores ou mesmo uma maior segurança jurídica na tramitação das suas causas. Se a vantagem econômica dos Juizados desaparecer, haverá uma migração ainda maior para o sistema comum.

Essa migração agravará a já conhecida sobrecarga do Poder Judiciário, aumentando a morosidade processual, violando o princípio constitucional da razoável duração do processo e congestionando as varas cíveis de todo o país. Neste sentido, o PL 3.191/19, se aprovado, criará um colapso sistêmico que afetará todo o Poder Judiciário e prejudicará a sociedade brasileira como um todo.

Outrossim, o argumento apresentado pelo excelentíssimo sr. Senador Weverton Rocha, em sua justificativa de que as custas nos Juizados Especiais seriam meramente simbólicas, exemplificando com a cobrança do valor de R$ 10,00 para uma causa de R$ 10.000,00, não encontra respaldo na realidade das custas dos tribunais brasileiros.

É importante esclarecer que as custas no Brasil não são simples percentuais sobre o valor da causa. Elas envolvem outros recolhimentos, tais como, taxas judiciárias, custas, emolumentos, diversas contribuições para fundos específicos e encargos tributários.

Essa diferença impacta diretamente o acesso à justiça, já que um mesmo tipo de ação pode ter custos muito mais elevados em um estado do que em outro. No Estado do Rio de Janeiro, que possui um dos sistemas judiciários mais caros do país, com custas elevadíssimas, o impacto dessa proposta seria devastador. Em vez de ampliar o acesso, promoverá o aumento no número de demandas reprimidas, esvaziando a autoridade judicial e perturbando o tecido social.

Além disso, a afirmação contida na justificativa do Projeto de que os Juizados Especiais Cíveis são utilizados por pessoas de alta renda também é desprovida de qualquer evidência estatística. Muito pelo contrário, os dados apurados pelas pesquisas realizadas sobre o tema indicam que os Juizados são utilizados, em regra, pela parcela mais humilde da população.2

É imprescindível distinguir também o uso estratégico e legítimo da via judicial de práticas verdadeiramente abusivas. Combater a litigância abusiva não pode implicar, como consequência, a penalização do cidadão comum. O Projeto de Lei nº 3.191/2019, em uma de suas roupagens reais, também subverte a lógica de proteção ao hipossuficiente e revela uma tentativa de desestimular o ajuizamento de ações.

Ainda que o combate ao uso distorcido da jurisdição seja necessário, tal medida não pode ser promovida às custas da exclusão social e jurídica de milhões de brasileiros. Na nossa visão, a via mais adequada para o enfrentamento da litigância abusiva é uma atuação firme dos Tribunais de Justiça, do Ministério Público, dos Tribunais de Ética das Ordens dos Advogados de todo o país com a responsabilização individualizada de maus litigantes, o fortalecimento das Defensorias Públicas e não a imposição de custas que, no fundo, afastam do Poder Judiciário justamente quem mais dele precisa, que é atrair cada dia mais o seu papel fundamental de julgador e não um órgão arrecadador.

Por outro lado, é preciso reconhecer que o texto apresentado é confuso, redundante e mal redigido.

A repetição por três vezes da expressão “beneficiário da justiça gratuita” no artigo 54 gera insegurança jurídica e viola as diretrizes estabelecidas pela Lei Complementar nº 95/1998, que regula a forma como as leis devem ser elaboradas no Brasil.

O Projeto também prevê especificamente no novo parágrafo segundo do artigo 54 a cobrança antecipada das diligências realizadas por Oficiais de Justiça nos Juizados Especiais. Trata-se de uma previsão redundante, diante da regra geral contida no caput do mesmo artigo.

No artigo 55, o Projeto prevê a cobrança de custas no caso de derrota processual de forma implícita, apenas suprimindo a palavra custas do texto que prevê a isenção.

Um Projeto de tal impacto social exige rigor técnico e clareza redacional, o que não se verifica na proposta atual.

De modo que, à luz do que foi dito, o PL 3.191/19 se apresenta como tecnicamente inadequado, socialmente injusto e juridicamente inconstitucional. Sua aprovação representará um retrocesso inaceitável no modelo dos Juizados Especiais, que simbolizam um dos maiores avanços no acesso democrático à justiça no Brasil.

Trata-se de uma grave ameaça direta aos pilares que sustentam os Juizados Especiais Cíveis e precisa ser firmemente rechaçado por todos aqueles que estão comprometidos com a preservação de um sistema judiciário acessível à população brasileira de forma gratuita, nos termos do que atualmente dispõe a Constituição Federal e a redação em vigor da lei 9.099/95.

O presente artigo tem por objetivo contribuir para o debate e reflexão crítica sobre o tema tratado, ampliando o entendimento jurídico e o devastador efeito social da questão.

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1 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. “Acesso à Justiça”. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1988, p. 12.

2 Apenas a título de ilustração, veja-se a pesquisa realizada pelo CNJ chamada “Perfil do Acesso à Justiça nos Juizados Especiais Cíveis”. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2018/01/9191c4972e1708e5e2775dcab21aed94.pdf. Acessado em: 02 jul. 2025.

Ana Tereza Basilio

Sócia fundadora do Basilio Advogados. Foi juíza do TRE-RJ, de dezembro de 2010 a julho de 2015. Presidente da OAB-RJ, eleita para o triênio 2025 - 2027.

Carlos Guedes

Advogado, presidente da Comissão dos Juizados Especiais Estaduais da OAB/RJ e vice-presidente da Comissão Especial de Juizados Especiais do Conselho Federal da OAB.

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