Introdução
A função de síndico nos condomínios edilícios passou por relevante transformação nas últimas décadas, com a crescente profissionalização da gestão condominial. O aumento da complexidade administrativa, o volume de obrigações legais e fiscais e a multiplicidade de conflitos internos impulsionaram a atuação de síndicos profissionais, pessoas físicas ou jurídicas contratadas para exercer, com exclusividade, a administração do condomínio, mediante remuneração.
Diante disso, alguns condomínios têm optado por restringir, por meio de cláusulas convencionais ou decisões assembleares, a possibilidade de candidatura de síndico profissional, exigindo que o ocupante do cargo seja condômino ou morador. Esta prática, contudo, revela-se juridicamente inválida, pois viola disposição expressa do CC e os limites impostos à autonomia privada na seara condominial.
O síndico no sistema jurídico brasileiro
A disciplina normativa da figura do síndico encontra-se nos arts. 1.347 a 1.350 do CC. Nos termos do art. 1.347:
“A assembleia escolherá um síndico, que poderá não ser condômino, para administrar o condomínio, por prazo não superior a dois anos, o qual poderá renovar-se.”
A redação legal é inequívoca: a condição de condômino não é requisito obrigatório para o exercício da sindicância. O legislador foi expresso ao consignar que o síndico “poderá não ser condômino”, conferindo à assembleia condominial ampla liberdade para eleger, por maioria simples, qualquer pessoa - física ou jurídica para a função, desde que dotada de capacidade civil.
Esse comando legal, por sua clareza e objetividade, constitui norma cogente, insuscetível de derrogação por vontade das partes, ainda que expressa em convenção condominial ou deliberação assemblear. Trata-se, portanto, de norma de ordem pública, cujo conteúdo deve prevalecer sobre qualquer manifestação normativa de cunho privado em sentido contrário.
A autonomia privada condominial e seus limites
A autonomia privada, enquanto expressão da liberdade de contratar e de autorregulação de interesses (art. 421 do CC), também se manifesta no âmbito condominial, sobretudo por meio da convenção e do regimento interno (art. 1.333 do CC). Contudo, tal autonomia não é absoluta. Está submetida aos limites legais, constitucionais, principiológicos e de função social.
A convenção condominial, embora vinculante entre os condôminos, não possui natureza legislativa. Trata-se de um negócio jurídico plurilateral normativo, cujas cláusulas devem observar as disposições legais imperativas. Assim, não é possível à convenção criar requisitos ou proibições que contrariem a norma cogente do art. 1.347, sob pena de nulidade.
A tentativa de limitar, por disposição convencional, a elegibilidade do síndico apenas aos condôminos implica verdadeira usurpação da competência do legislador ordinário, resultando na criação de requisito não previsto em lei e, portanto, ilegal. Da mesma forma, qualquer deliberação assemblear com o mesmo objetivo seria flagrantemente inválida, por extrapolar os limites da função deliberativa dos condôminos.
Nulidade das cláusulas restritivas à candidatura do síndico profissional
Sob a perspectiva da teoria geral dos negócios jurídicos, a cláusula que veda a candidatura de síndico profissional deve ser considerada nula de pleno direito, nos termos do art. 166, inciso IV e VI, do CC:
Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando:
(...)
IV – for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto;
VI – for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade.
Ora, a vedação a uma forma de exercício válida da função de síndico - prevista e autorizada por norma legal expressa - configura objeto ilícito da cláusula convencional. Além disso, pretere a forma legal prevista para o exercício do direito de eleger síndico, o que compromete a sua validade.
A restrição também fere o princípio da legalidade (art. 5º, II, da Constituição Federal), segundo o qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Em outras palavras, não há respaldo legal para a exigência de que o síndico seja condômino ou morador, e tampouco para a proibição do exercício profissional da sindicância.
Inadmissibilidade da supressão de direitos por norma convencional
Outro fundamento jurídico que sustenta a nulidade da vedação em exame é a aplicação do art. 1.348 do CC, que dispõe sobre as funções do síndico. A natureza jurídica da sindicância é de representação legal e administrativa do condomínio, não havendo qualquer vinculação entre tal representação e a titularidade da unidade condominial.
Ao se exigir que o síndico seja necessariamente condômino ou morador, a convenção passa a estabelecer uma condição que cerceia indevidamente o exercício regular de um direito legalmente assegurado, comprometendo a possibilidade de a coletividade condominial escolher a melhor gestão administrativa possível.
A supremacia da função social e da eficiência na administração condominial
Deve-se recordar que o instituto do condomínio edilício, embora fundado no direito de propriedade, possui função social e natureza coletiva, de modo que seus instrumentos regulatórios devem ser interpretados à luz dos princípios que regem a convivência e o interesse comum.
A vedação da candidatura de síndico profissional compromete diretamente a eficiência administrativa e, por conseguinte, a função social da propriedade, na medida em que limita as opções de gestão condominial a um grupo restrito, que nem sempre reúne a capacitação técnica ou a disponibilidade necessárias ao adequado exercício da função
O abuso de direito e a vedação ao exercício de atividade lícita
A cláusula que impede a atuação de síndico profissional também pode ser qualificada como expressão do abuso de direito, conforme dispõe o art. 187 do CC:
“Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”
A restrição à candidatura de profissionais da sindicância, atividade lícita, regulamentada e amplamente demandada, extrapola os limites razoáveis da autorregulação condominial, ferindo a boa-fé objetiva e a racionalidade do exercício coletivo da autonomia privada.
Além disso, a vedação à candidatura de profissional devidamente habilitado constitui, na prática, restrição ao livre exercício de atividade econômica lícita, o que conflita com o disposto no art. 170 da Constituição Federal, que assegura a livre iniciativa e a valorização do trabalho como fundamentos da ordem econômica.
Conformação legal da convenção condominial e recomendação técnica
Diante da manifesta ilegalidade da restrição à candidatura de síndico profissional, é recomendável que os condomínios que possuam cláusulas com tal conteúdo procedam à sua revisão e adaptação, de modo a compatibilizar a convenção com os parâmetros legais.
Não se ignora que a convenção pode estabelecer critérios objetivos de qualificação, experiência ou responsabilidade contratual para os candidatos à sindicância, o que se mostra legítimo. Todavia, a imposição de restrições genéricas, absolutas ou discriminatórias revela-se juridicamente inadmissível e deve ser suprimida.
A deliberação assemblear que tenha por objeto restringir ou impedir candidaturas de síndicos profissionais também deverá ser considerada inválida, por extrapolar os limites da função deliberativa da assembleia e violar disposição legal de ordem pública.
Conclusão
A eleição de síndico profissional é expressamente permitida pelo ordenamento jurídico brasileiro, nos termos do art. 1.347 do CC. Trata-se de norma de natureza cogente, cuja observância é obrigatória, ainda que em face de convenções condominiais preexistentes ou da vontade da assembleia.
A tentativa de restringir a candidatura de síndicos profissionais, seja por cláusula convencional, seja por deliberação assemblear, configura prática juridicamente nula, por afronta à legalidade, à função social da propriedade, à liberdade de exercício profissional e à boa-fé objetiva.
A profissionalização da gestão condominial deve ser compreendida como uma resposta legítima às demandas cada vez mais complexas da vida coletiva, cabendo à convenção e à assembleia atuar em conformidade com os ditames legais, promovendo segurança jurídica, eficiência administrativa e respeito à legalidade.