As apostas online, hoje plenamente regulamentadas, ocupam um espaço cada vez mais relevante no debate jurídico, inclusive no âmbito trabalhista. A legalização da atividade em 2018, somada ao atraso do governo em regulamentar o setor, criou um “mercado cinza”: era permitido apostar, mas sem parâmetros claros de operação ou mecanismos eficazes de proteção ao consumidor.
Esse vácuo regulatório favoreceu a expansão de problemas associados ao jogo, entre eles a ludopatia, reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (CID 10-Z72.6 e F63.0) como transtorno caracterizado pelo impulso incontrolável de jogar, mesmo diante de prejuízos financeiros, sociais e até laborais.
Multiplicam-se relatos de endividamento, queda de desempenho profissional, isolamento social e sobrecarga no sistema de saúde. Os números divulgados pelo SUS e pela imprensa impressionam, mas exigem cautela. Ainda que revelem uma tendência preocupante, é preciso refletir sobre como a forma de posicionar o jogador no debate pode influenciar a interpretação do fenômeno e a distribuição das responsabilidades.
Isso porque, ao contrário da leitura que tende a colocar o apostador sempre como vítima, é preciso reconhecer também sua parcela de responsabilidade. A ludopatia deve ser acolhida como doença, mas isso não significa isentar o indivíduo de consequências por suas escolhas - especialmente quando seus atos repercutem em terceiros, seja na família, na empresa ou no sistema previdenciário já tão desgastado pela realidade brasileira.
O que poucos têm falado é que no mercado regulado, os operadores de apostas são hoje agentes centrais da política de prevenção. Para manterem suas licenças, são obrigados a estabelecer e aplicar regras detalhadas de jogo responsável: monitorar continuamente os clientes, identificar sinais de dependência, impor limites e até restringir o acesso de determinados jogadores. O descumprimento dessas normas pode levar a sanções severas, inclusive a perda da licença.
Ao contrário do que muitos acreditam, o operador não se beneficia do vício em jogos. Jogadores superendividados e dependentes não sustentam o setor: quem viabiliza o mercado regulado são os consumidores saudáveis, capazes de jogar de forma equilibrada e de retornar continuamente à plataforma.
A ausência de políticas públicas consistentes de saúde e de atendimento aos viciados em jogos ampliou esse cenário: a iniciativa privada não apenas assumiu responsabilidades de prevenção, como também passou a arcar com custos relevantes para sustentar mecanismos de monitoramento e controle.
Essa mesma lógica se projeta no ambiente laboral. A ludopatia gera efeitos concretos: absenteísmo, distrações prolongadas, queda de produtividade, pedidos de adiantamentos de décimo terceiro salário ou até de rescisão antecipada para pagamento de dívidas e, em casos extremos, fraudes internas que abalam a confiança e expõem empresas a riscos de compliance.
O problema individual, assim, converte-se em custo coletivo, atingindo também a Previdência Social, responsável por arcar com afastamentos e benefícios por incapacidade no trabalho.
Quando o jogo deixa de ser lazer
O vício em apostas não é apenas um hábito nocivo: é uma condição de saúde frequentemente acompanhada de comorbidades como depressão, ansiedade e transtornos de personalidade.
No ambiente de trabalho, seus reflexos são claros: perda de produtividade, insegurança organizacional e riscos reputacionais.
E justamente por se tratar de uma questão de saúde, a relação de emprego não pode ser reduzida a um simples contrato. O vínculo laboral é permeado por princípios constitucionais como a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho, o que significa que, ao empregar um trabalhador acometido pela ludopatia, a empresa deve lidar também com as consequências coletivas desse quadro.
A análise da ludopatia, portanto, não pode se limitar ao indivíduo.
Seus efeitos reverberam no ambiente de trabalho, na sociedade e no sistema de seguridade social. Nesse sentido, o problema deixa de ser exclusivamente privado e passa a representar uma ameaça à sustentabilidade das relações de trabalho, impondo custos significativos para empregadores e para o Estado. Não é demais lembrar que um empregado afastado tem seu contrato suspenso e, ainda que a ludopatia não guarde nexo causal com a atividade desempenhada, a empresa geralmente precisa contratar um substituto, enquanto a Previdência Social assume o ônus do benefício concedido. Em muitos casos, a empresa permanece responsável por benefícios como a assistência médica e, quando do retorno do trabalhador, deve ainda arcar com as verbas rescisórias do substituto.
É nesse ponto que surge a maior tensão: se a ludopatia é doença com reflexos coletivos inegáveis, como conciliar esse reconhecimento com as situações em que o comportamento do trabalhador configura falta grave?
A difícil linha da justa causa
Se, de um lado, a ludopatia deve ser reconhecida como condição de saúde capaz de gerar impactos coletivos relevantes, de outro não se pode ignorar que esses efeitos também tensionam a relação de trabalho, sobretudo quando levam a faltas graves.
É justamente nesse ponto que surge o dilema: até que ponto a dependência pode afastar a responsabilização do empregado?
A CLT já prevê, em seu art. 482, a possibilidade de dispensa por justa causa pela prática habitual de jogos de azar (alínea “l”), à semelhança da embriaguez habitual (alínea “f”).
No caso da embriaguez, a jurisprudência evoluiu: aquilo que antes era tratado apenas como falta disciplinar passou a ser reconhecido como doença, exigindo encaminhamento a tratamento.
Essa trajetória tem servido de parâmetro para a análise da ludopatia, igualmente classificada como transtorno de saúde.
O TST tem adotado cautela: decisões recentes mostram que a dependência, por si só, não autoriza a ruptura contratual. Em levantamento do JOTA de 2025, sete de oito decisões sobre ludopatia nos TRTs discutiam a validade da justa causa, e muitas relativizaram a penalidade quando havia evidências clínicas.
Diferentemente dos casos de alcoolismo ou dependência química, os Tribunais Trabalhistas ainda não tratam a prática constante de jogos de azar como doença, preferindo fazê-lo só quando constatada a doença. Portanto, um vigilante que deixa de fazer a ronda por estar jogando no seu telefone, acaba tendo a falta grave mantida pela jurisprudência.
O tema ainda divide opiniões, mas não há espaço para vitimização absoluta: a dependência não autoriza, por exemplo, o desvio de valores da empresa nem afasta o dever de ressarcimento.
Em outras palavras, o Judiciário tem buscado equilíbrio: reconhecer a ludopatia como doença que exige tratamento, mas sem afastar a responsabilização proporcional em casos de dolo, quebra de confiança ou abuso.
Generalizar seria perigoso: nem todo jogador é ludopata, nem toda ludopatia isenta de responsabilidade. Nesse contexto, os médicos do trabalho passam a exercer importante papel na identificação e na avaliação da necessidade de afastamento.
Caminhos possíveis: Prevenção e responsabilidade compartilhada
As experiências internacionais mostram que a prevenção ao vício é parte crucial de um mercado regulado de apostas. No Brasil, essa lógica já está consolidada. A regulamentação impõe aos operadores obrigações robustas: mecanismos de autoexclusão, limites de depósito e tempo de jogo, monitoramento contínuo de padrões de comportamento e reportes periódicos às autoridades. O descumprimento pode levar a sanções severas, incluindo a perda da licença.
Esse desenho regulatório cria uma situação paradoxal: para permanecerem no mercado formal, os operadores precisam demonstrar eficiência não apenas em vender seu produto, mas em restringir o acesso a ele. Poucos setores convivem com obrigação semelhante. Bancos, por exemplo, devem avaliar risco de crédito antes de conceder empréstimos, mas não precisam impedir clientes de contrair dívidas. Seguradoras têm deveres de transparência e solvência, mas não são obrigadas a dissuadir consumidores de contratar seguros. No setor de apostas, ao contrário, o próprio modelo de negócio convive com a tensão de oferecer e, ao mesmo tempo, conter o consumo.
Embora essa lógica seja fundamental para proteger consumidores e legitimar o mercado regulado, ela também transfere à iniciativa privada uma responsabilidade que, em grande medida, caberia ao Estado: a construção de políticas públicas de prevenção em saúde mental e educação financeira.
No plano trabalhista, cabe às empresas adotar medidas complementares: programas de bem-estar, treinamentos de lideranças para identificar sinais de dependência e encaminhamento a serviços especializados. Tem sido cada vez mais comum encontrarmos regulamentos/regimentos internos proibindo o uso de celular durante a jornada como forma de prevenção ao risco da doença. O papel do empregador não é substituir o Estado, mas gerir riscos no ambiente laboral.
Além disso, é fundamental que o Judiciário compreenda a ludopatia à luz desse arcabouço regulatório e das evidências médicas, evitando tanto a impunidade quanto a punição cega. Formação continuada de magistrados e operadores do Direito pode garantir maior coerência sistêmica. Importante que entendam como agem as operadoras de apostas e o elevado grau de tecnologia embarcada nesse mercado altamente regulado como forma de se evitar uma “demonização” de um setor que gera emprego e renda ao país.
Apenas no primeiro semestre de 2025, o mercado movimentou R$ 17,4 bilhões em receita bruta e destinou R$ 2,14 bilhões a áreas essenciais como saúde, educação, esporte e seguridade social1 . Por fim, protocolos interinstitucionais entre operadores, empregadores e órgãos públicos - como o INSS - podem reforçar a prevenção e reduzir os impactos da ludopatia no mercado de trabalho.
Conclusão
O avanço da ludopatia como fenômeno social exige do Direito do Trabalho uma resposta que seja, ao mesmo tempo, firme e sensível.
Trata-se de um problema de saúde pública que demanda acolhimento e tratamento, mas que não pode ser reduzido a uma narrativa de vitimização absoluta.
No mercado regulado, os operadores de apostas já convivem com um arcabouço rígido de regras relativas ao jogo responsável: monitoram comportamentos, impõem limites e até restringem o acesso de apostadores em risco. Ao contrário do senso comum, não se beneficiam do vício, mas da permanência de jogadores saudáveis, capazes de retornar de forma equilibrada às plataformas.
O superendividamento e a dependência não interessam a ninguém - nem ao operador, nem ao trabalhador, nem ao Estado.
No ambiente laboral, os impactos são evidentes: absenteísmo, queda de produtividade, riscos de fraude e aumento de afastamentos previdenciários. O Judiciário, por sua vez, tem buscado equilíbrio: reconhece a ludopatia como doença, mas não exime automaticamente o trabalhador de responsabilidade quando há dolo ou quebra de confiança.
Diante desse cenário, o desafio é claro: combinar prevenção, acolhimento e responsabilização proporcional. A justa causa, embora extrema, continua sendo necessária em situações graves, mas há que se entender que é a punição mais grave a ser aplicada a um trabalhador. Antes de se optar pela aplicação desmedida, há que se observar aspectos clínicos.
Em síntese, a ludopatia desafia categorias clássicas do Direito do Trabalho e impõe um olhar multidisciplinar. A resposta deve preservar a dignidade do trabalhador, mas também a sustentabilidade das empresas e a integridade do sistema regulatório.
Há, sim, luz no fim do túnel: medidas já estão em vigor e podem ser fortalecidas para equilibrar proteção social, segurança jurídica e responsabilidade individual.
_______
1 Dados oficiais do Ministério da Fazenda - Secretaria de Prêmios e Apostas (Panorama Semestral do Mercado Regulado de Apostas de Quota Fixa, jan.-jun. 2025).