Entre a unicidade, reafirmada pela Constituição de 1988, e a promessa pluralista da Convenção 87 da OIT, o sindicalismo brasileiro vive um paradoxo. Os sindicatos se multiplicam enquanto a base social se estreita; a exclusividade territorial de representação não conteve a pulverização. No extremo oposto, a liberdade sem mediações sugerida internacionalmente tende a produzir formalismo competitivo, pouco ancorado na vida concreta do trabalho. Diante desse quadro, a Justiça do Trabalho tem privilegiado as entidades que comprovam densidade representativa e atuação efetiva (e.g. TST-RR-126600-88).
Os dados oficiais apontam proliferação de estruturas e queda da sindicalização - cenário que impõe reconstruir critérios materiais de legitimidade. Nesse contexto, ganha relevo a ideia de “agregação”: conferir primazia à entidade que demonstra capilaridade, capacidade de negociação e resultados verificáveis. A tese que se sustentará aqui é que essa prática, já perceptível na jurisprudência, pode servir de ponte para uma nova identidade sindical compatível com o texto constitucional, até que se repense os incisos I e II do art. 8º.
Para além de soluções prontas ou modelos importados, o cerne do debate está na ausência de uma identidade sindical própria, construída a partir dos marcos do sujeito constitucional brasileiro. Como sustenta Michel Rosenfeld, ao tratar da identidade do sujeito constitucional, a forma institucional deriva de um processo histórico e cultural de constituição do coletivo que pretende representar. Não basta discutir qual desenho sindical convém; importa indagar qual identidade sindical é compatível com o projeto de sociedade afirmado desde 1988. Essa resposta não emerge de decretos nem de convenções internacionais, mas de um processo público e democrático de reconstrução do sentido político do sindicato - tanto mais necessário diante das mudanças recentes em seu sistema de financiamento.
A unicidade sindical, forjada no Estado Novo e preservada pela Constituição de 1988, nasceu como peça de um arranjo corporativo. O Estado outorgava personalidade política aos sindicatos mediante registro e tutela administrativa, condicionando sua existência à autorização estatal e ao financiamento compulsório. Em lugar de um ator autônomo da sociedade civil, o sindicato foi moldado como engrenagem de coordenação social, com representação exclusiva por categoria e base territorial - promessa de ordem e racionalidade que subordinou a vida associativa a procedimentos de chancela e a rotinas burocráticas.
O efeito normativo foi claro: a exclusividade territorial não garantiu coesão orgânica. Ao contrário, deslocou a energia militante para disputas cartoriais de fronteira e nomenclatura, incentivou personalismos e transformou a manutenção do registro sindical em objetivo em si. A estabilidade financeira assegurada por contribuições compulsórias desestimulou a construção cotidiana de base e participação. A institucionalidade passou a premiar quem domina ritos administrativos e não quem mobiliza trabalhadores, convertendo a representação coletiva em um regime de autorizações, selos e carimbos.
A unicidade prometeu coordenação; entregou formalismo.
Diante desse impasse, multiplicaram-se as vozes que defendem a abertura do sistema por meio da Convenção 87 da OIT. A aposta é que, substituída a tutela estatal por liberdade de associação, a vitalidade sindical emergiria de baixo para cima, recomposta pela concorrência entre projetos e pela autonomia organizativa. Em outras palavras, para sanar os vícios burocráticos legados e reafirmados em 1988, propõe-se trocar o monopólio formal por um horizonte de pluralidade regulada pela própria sociedade civil.
A Convenção 87 da OIT foi gestada no pós-guerra, sob a moldura principiológica da Declaração da Filadélfia (1944), que reposicionou a OIT ao afirmar direitos do trabalho como fundamento de paz duradoura. Esse gesto não brota no vazio: desde a era industrial, a disputa sobre a forma de organização dos trabalhadores contrasta a vertente emancipatória da Primeira Internacional com a visão conciliadora e anticlassista da encíclica Rerum Novarum; e, como lembra Walter Benjamin em Zur Kritik der Gewalt, a coletividade do trabalho carrega um potencial “divino” de interrupção e reordenação das forças sociais. Nesse ambiente intelectual e histórico, a liberdade de associação ganhou formulação universalista: criar organizações “sem autorização prévia”, autogovernar estatutos e administrar atividades com mínima interferência estatal - uma tentativa de blindar o associativismo contra capturas autoritárias, substituindo tutela por garantias de não intervenção.
Essa arquitetura, porém, privilegia uma liberdade sobretudo negativa, focada na ausência de coerção, e não na provisão de condições materiais para ação coletiva eficaz. Em contextos marcados por desigualdades profundas, informalidade e alta rotatividade, a abertura irrestrita tende a produzir pulverização institucional, sobreposições e competição por filiações, sem assegurar coesão, capilaridade e poder de barganha. O resultado é um pluralismo de papel, no qual a vitalidade jurídica das siglas não se converte em densidade social, nem em capacidade negocial real.
Some-se a isso a ambiguidade estadunidense: país influente na formulação dos parâmetros de liberdade sindical na OIT do pós-guerra, mas que não ratificou a Convenção 87 e trata a organização coletiva sob lentes de liberdade de expressão individual, com amplo espaço para estratégias empresariais de contenção. O contraste evidencia o ponto cego do modelo: a mera pluralidade jurídica não gera poder de barganha; precisa de base e densidade.
Se o desenho da Convenção 87, lido à luz dessas ambiguidades, recomenda prudência, no Brasil esse limite da liberdade formal é empiricamente verificável. Vigora um arranjo no qual a unicidade de direito convive com dispersão de fato, evidenciando a distância entre forma e base.
O retrato recente combina excesso formal e rarefação social. De um lado, o Cadastro Nacional de Entidades Sindicais mantém mais de 17 mil sindicatos com registro ativo, sendo 11.969 de trabalhadores e 5.295 de empregadores, sinal de um parque institucional vasto, mas heterogêneo. De outro, a taxa de sindicalização caiu a 9,2% dos ocupados em 2023, o menor patamar da série, indicando retração da adesão individual às estruturas coletivas.
Traduzidos em prática, esses números costumam significar baixa participação em assembleias, dificuldade de mobilização sustentada e campanhas reivindicatórias frágeis. A negociação coletiva tende a produzir acordos de alcance limitado, com sobreposições de representação e disputas de enquadramento que consomem energia em contenciosos cartoriais, não na construção de base. Prolifera a segmentação artificial de “categorias” e recortes territoriais que respondem mais a estratégias de registro do que a laços orgânicos com os trabalhadores.
O sistema vive pluralismo de fato sob unicidade de direito. Essa clivagem entre forma e realidade explica por que a aferição de densidade representativa e capacidade negocial vem ganhando centralidade: sem elas, multiplicam-se siglas e atas, mas escasseiam coesão e poder de barganha.
Para além da dicotomia entre unicidade cartorial e pluralismo formal, agregação designa um critério jurisprudencial que faz prevalecer a entidade que comprova densidade representativa, abrangência e atuação efetiva - aferidas por evidências como condução de negociação coletiva, exercício de substituição processual e celebração de acordos e convenções coletivas com alcance real. Em vez de perguntar quem detém registro mais antigo ou recorte estatutário mais estreito, pergunta-se quem, no território e na categoria em disputa, possui capilaridade e entrega resultados verificáveis.
Os parâmetros materiais que costumam orientar essa aferição incluem:
(i) histórico de mobilização e negociação - assembleias convocadas, mesas instaladas, movimentos organizados com responsabilidade, acordos firmados e cumpridos;
(ii) cobertura territorial e setorial efetiva - presença estável nos locais de trabalho, núcleos regionais ativos, atendimento sindical e jurídico contínuo;
(iii) filiação e participação - base cadastrada e engajada, quóruns consistentes, canais regulares de consulta, transparência orçamentária e de decisões;
(iv) resultados coletivos aferíveis - acordos e convenções coletivas com cláusulas econômicas e sociais relevantes, vitórias judiciais em substituição processual, benefícios concretos percebidos pela categoria.
As virtudes do enfoque são evidentes: preserva a unidade funcional da representação sem impor monopólio formal; desloca o incentivo para desempenho institucional; desestimula entidades de fachada concentradas em disputa cartorial; e reaproxima a representação da vida concreta do trabalho, porque subordina o reconhecimento à prática e à entrega de bens coletivos.
Há, contudo, limites. A agregação depende de prova robusta e de critérios explícitos, sob pena de decisões casuísticas. Carece de consolidação legislativa que converta balizas jurisprudenciais em normas claras de aferição. Pode haver assimetria probatória entre entidades com capacidades distintas, o que exige metodologia transparente, direito amplo à produção de prova e cuidado na valoração de indicadores qualitativos.
Em síntese, a agregação não substitui reformas estruturais nem resolve todos os conflitos. Não é panaceia, mas cria um teste de realidade.
Concluir exige retomar a moldura de Rosenfeld: a identidade do sujeito constitucional não é essência fixa, mas processo aberto de autocompreensão pública, calibrado por práticas democráticas e por instituições que respondem continuamente à experiência social. À luz disso, a via promissora é transformar a agregação de critério prudencial em parâmetro normativo: densidade representativa, capilaridade organizacional e atuação comprovada como requisitos de legitimidade, acompanhados de deveres de governança, transparência e participação vinculante. Regulá-los por lei e incorporá-los em decisões e registros significará realinhar forma e realidade. Entre o velho monopólio e a liberdade sem lastro, a identidade sindical constitucional se fará onde houver base real.
Jean P. Ruzzarin
Advogado dedicado exclusivamente à defesa de servidores públicos e às causas de greve no serviço público, atuando no STF, Tribunais Superiores e CNJ há mais de 20 anos. Atende sindicatos e associações de diversas categorias, incluindo procuradores, auditores fiscais do trabalho, servidores da Justiça e do Ministério Público, bem como profissionais de universidades públicas. Fundador do escritório Cassel Ruzzarin Advogados.