Dados do Justiça em Números 2025 mostram que o problema da Justiça Estadual não está na quantidade de processos, mas na exploração deliberada do Judiciário como parte de um modelo de negócio que distorce o acesso à justiça.
A ilusão do excesso: Não é quantidade, é desvio
Todos os anos, o relatório Justiça em Números do CNJ nos lembra do tamanho do desafio que é administrar o maior sistema de justiça do mundo. A edição de 2025 reforça um dado já conhecido: a Justiça Estadual segue sendo o coração e o pulmão do Judiciário brasileiro, responsável pela imensa maioria dos processos em tramitação no país.
Mas por trás dos números gerais há uma realidade que precisa ser nomeada com clareza - o problema não é o volume de ações em si, e sim a distorção de comportamento que transforma a judicialização em modelo de negócio. Durante anos, o debate público e institucional sobre o congestionamento do Judiciário foi capturado por uma explicação simplista: a de que há processos demais. Essa narrativa alimentou diagnósticos imprecisos e soluções equivocadas, como se a mera redução de volume fosse suficiente para devolver eficiência e celeridade ao sistema.
A verdade é outra. Quando analisamos com atenção os dados do Justiça em Números 2025, percebemos que a quantidade de ações não é o vilão - o problema está na qualidade e na intenção com que muitos desses processos são levados ao Judiciário. A litigância abusiva, cada vez mais sofisticada e estruturada, opera à margem da função constitucional do processo e corrói silenciosamente a credibilidade do sistema de justiça.
Execução fiscal: o sintoma estrutural de um modelo em colapso
Os números do relatório são eloquentes. Segundo o Justiça em Números 2025, a Justiça Estadual encerrou 2024 com cerca de 18 milhões de execuções fiscais pendentes, sendo 10,1 milhões (56,2%) concentradas no TJ/SP e 2,3 milhões (12,7%) no TJ/RJ. Sozinhos, esses dois tribunais respondem por 69% das execuções fiscais em tramitação e 45% de todos os processos da Justiça Estadual
Esse estoque histórico pressiona toda a estrutura e explica parte do índice ainda elevado de congestionamento, que ficou em 66,6% em 2024 - o menor da série histórica. Quando se retiram as execuções fiscais da conta, o cenário melhora imediatamente: a taxa de congestionamento cairia para 64,3%, segundo o relatório.
O dado revela algo fundamental: o sistema não é ineficiente por natureza. Ele é sobrecarregado por fluxos processuais que não foram concebidos para tramitar em larga escala. A execução fiscal é o exemplo mais visível desse descompasso - e seu enfrentamento depende de soluções estruturais, como reforma legislativa, desjudicialização e instrumentos alternativos de cobrança.
Mas esse dado também serve de alerta: quando o Judiciário é forçado a atuar como cobrador de dívida pública em milhões de ações fiscais e, ao mesmo tempo, precisa lidar com comportamentos abusivos em massa nas ações cíveis, sua capacidade institucional é drenada e a promessa constitucional de acesso à justiça se desvirtua.
Do estoque ao oportunismo: A distorção nas ações de consignado e revisional
Se a execução fiscal representa um estoque estrutural que precisa ser repensado, as ações envolvendo empréstimos consignados e revisões contratuais escancaram um fenômeno ainda mais grave: o uso estratégico, fraudulento e predatório do Judiciário como parte de modelos de negócio que se valem da litigância como ferramenta de geração de receita.
Aqui, não estamos falando de cidadãos vulneráveis que buscam a proteção de seus direitos - e sim de estruturas organizadas que fabricam demandas em escala industrial, explorando brechas processuais e assimetrias de informação. A litigância abusiva nessas áreas não nasce do exercício legítimo do direito de ação, mas da deturpação deliberada de sua finalidade constitucional.
As práticas são conhecidas e repetidas:
- Fatiamento de ações: em vez de discutir o contrato como um todo, ajuízam-se dezenas de ações fragmentadas para contestar parcelas específicas, multiplicando exponencialmente o número de processos e atos processuais. Uma única relação contratual pode gerar dezenas de demandas.
- Ajuizamento sem ciência do autor: há milhares de casos em que a parte sequer sabe que figura como autora em uma ação judicial - uma fraude que atenta contra a boa-fé objetiva e o devido processo legal.
- Captação irregular de clientes: redes de intermediação e aliciamento de consumidores, em clara violação ao Estatuto da Advocacia e às normas éticas da OAB, transformam a advocacia em um negócio de escala e lucro rápido.
- Apropriação indevida de valores: advogados retêm parte significativa ou até a totalidade do valor da condenação, deixando o consumidor sem o benefício que justificaria a demanda.
Essas condutas não apenas sobrecarregam o Judiciário - elas desvirtuam sua função constitucional e comprometem a própria credibilidade do sistema de justiça. O processo judicial, que deveria ser instrumento de pacificação social e proteção de direitos, passa a ser explorado como ativo econômico.
Litigância abusiva: A fraude institucionalizada
Quando observamos esses comportamentos em conjunto, entendemos que litigância abusiva não é sinônimo de excesso de ações. O que a caracteriza é a intenção desviada, o padrão fraudulento e a lógica repetitiva que transforma o processo judicial em ferramenta de obtenção de vantagem ilícita.
Em muitos casos, não há controvérsia jurídica real. O que existe é uma estratégia empresarial de litigância. A atuação de alguns escritórios lembra mais a de uma “fábrica de processos” do que a de um escritório de advocacia: petições padronizadas, provas frágeis e narrativas copiadas e coladas são apresentadas em massa, não para resolver conflitos, mas para pressionar acordos rápidos ou gerar receitas a partir de condenações previsíveis.
O resultado é devastador. Cada ação proposta aciona a máquina judiciária - servidores, magistrados, oficiais de justiça, perícias - e consome tempo e recursos públicos. Multiplicada por milhares ou milhões de casos, essa prática se torna um problema de sustentabilidade democrática e financeira. O custo da litigância abusiva não está apenas na folha orçamentária do Judiciário, mas também nas oportunidades perdidas: recursos que poderiam financiar escolas, hospitais, políticas públicas ou inovação permanecem aprisionados no custeio de um contencioso artificial.
Quando a fraude pune quem precisa da justiça
Há um aspecto frequentemente negligenciado nesse debate: a litigância abusiva prejudica sobretudo quem precisa da justiça. Cada ação fraudulenta que ocupa espaço na pauta significa uma audiência legítima adiada, uma sentença atrasada, um direito violado sem resposta tempestiva.
O Justiça em Números 2025 mostra que a Justiça Estadual conseguiu julgar mais processos do que os novos casos ingressados em 2024, superando 100% no Índice de Atendimento à Demanda. É um dado positivo, que demonstra esforço institucional e avanços reais. Mas, em um cenário de distorção comportamental, cada ganho de produtividade é rapidamente absorvido por fluxos artificiais de demandas. A justiça corre, mas a fila cresce - não porque há mais conflitos genuínos, e sim porque há mais exploração do sistema.
Além disso, a litigância abusiva desequilibra o mercado jurídico e distorce a concorrência. Escritórios que apostam em quantidade e oportunismo competem em condições desiguais com aqueles que investem em técnica, estratégia e ética. E ao fazê-lo, desvalorizam a advocacia e fragilizam a própria imagem do sistema de justiça.
Por um Judiciário intolerante à litigância abusiva
Enfrentar a litigância abusiva exige coragem institucional e vontade política. Não basta lamentar o congestionamento ou clamar por mais juízes e servidores. É preciso atacar o problema na sua raiz: o mau uso deliberado do processo judicial.
Alguns caminhos são urgentes e inadiáveis:
- Responsabilização efetiva dos advogados que praticam litigância de má-fé. O art. 79 do CPC precisa ser alterado para incluir expressamente o advogado entre os sujeitos passíveis de responsabilização por perdas e danos. Essa mudança não criminaliza a advocacia - ela a protege, separando o exercício legítimo do direito de ação do uso fraudulento do sistema.
- Comunicação obrigatória a órgãos competentes. Casos de ajuizamento sem ciência da parte, captação irregular ou apropriação de valores devem ser comunicados não apenas à OAB, mas também ao Ministério Público e aos Centros de Inteligência do Judiciário, para que sejam tratados como fraudes institucionais, e não como meras infrações éticas.
- Mecanismos de detecção precoce. A tecnologia já permite identificar padrões anômalos em tempo real: autores hiperlitigantes, petições idênticas, documentos suspeitos e conexões entre advogados, peritos e fornecedores podem ser rastreados e sinalizados antes que se transformem em passivos gigantescos.
- Filtragem e classificação de demandas. Tribunais e escritórios precisam adotar modelos de classificação por cluster com estratégias diferenciadas de resposta, prova e acordo para cada perfil.
- Fortalecimento da conciliação qualificada. Conciliação não pode ser usada para legitimar fraude. Deve ser estimulada em casos legítimos, mas evitada em séries artificiais que buscam apenas pressionar acordos.
Conclusão: Eficiência com justiça
A litigância abusiva é o sintoma mais visível de algo mais profundo: a erosão do sentido constitucional do processo judicial. Ela nasce quando se deixa de ver o Judiciário como instrumento de solução de conflitos e se passa a enxergá-lo como ferramenta de ganho econômico. Combater esse fenômeno é defender a integridade do sistema de justiça - e, mais do que isso, é garantir que o direito de ação continue sendo um instrumento de cidadania, e não uma mercadoria.
O relatório Justiça em Números 2025 nos oferece os dados. A realidade nos mostra as práticas. Cabe a nós - sociedade, advocacia, magistratura e instituições - ter a coragem de nomear o problema e enfrentá-lo. Porque a justiça não pode ser refém da fraude.