1. Introdução
O protocolo para julgamento com perspectiva de gênero, instituído pelo CNJ, foi concebido, dentre outras finalidades, para orientar magistrados na análise de casos envolvendo violência contra a mulher. Embora sua motivação seja reconhecidamente legítima - corrigir desigualdades históricas e enfrentar desafios probatórios característicos dos crimes praticados em âmbito doméstico -, sua aplicação prática levanta sérias preocupações. Ao privilegiar a palavra da suposta vítima, muitas vezes em detrimento da produção de provas concretas, o protocolo pode inverter a lógica secular do Direito Penal, colocando em risco garantias fundamentais e a própria noção de justiça.
2. Protocolo de gênero x direito fundamental à prova
Os crimes ocorridos no âmbito doméstico geralmente acontecem sem testemunhas, dificultando a colheita de provas diretas. Essa realidade levou o Judiciário a valorizar a palavra da suposta vítima, atribuindo-lhe peso significativo na formação do convencimento judicial.
O protocolo de gênero foi criado com base na premissa histórica de que mulheres foram e são vítimas de violência doméstica e que, diante da dificuldade probatória, a credibilidade de sua narrativa deve ser reforçada. A intenção declarada é compensar desigualdades e evitar que a ausência de testemunhas inviabilize a punição do agressor.
Apesar da boa intenção, o protocolo acaba criando um mecanismo artificial que, na prática, substitui o direito à prova - um pilar do processo penal construído ao longo de séculos, pela palavra da mulher autodeclarada vítima. Em vez de a condenação se basear em um conjunto robusto de elementos, ela pode repousar unicamente no depoimento da suposta vítima, tornando irrelevante a comprovação objetiva dos fatos.
O problema central é que o protocolo não se fundamenta apenas na busca da verdade, mas também em uma proposta de reparação histórica. Essa abordagem, embora bem-intencionada, desvia o foco do caso concreto e pode levar à condenação sem o devido lastro probatório, contrariando princípios constitucionais e princípios internacionais como a presunção de inocência, devido processo legal e o direito à prova.
Quando aplicado de forma acrítica, o protocolo de gênero transforma-se em um instrumento de condenação automática, invertendo a lógica de que cabe ao Estado provar a culpa do acusado. A palavra da suposta vítima, que deveria ser analisada à luz do conjunto probatório, passa a ser tomada isoladamente como suficiente em si mesma, sem o necessário crivo de verificação.
Importa destacar que muitos fatos apurados em processos sob o contexto da lei Maria da Penha não ocorrem em ambiente estritamente privado, contando com testemunhas e outros elementos de prova. A aplicação indiscriminada do protocolo nesses casos pode levar à desconsideração de provas objetivas, em prejuízo do acusado.
A utilização do protocolo como critério decisório principal e muitas vezes exclusivo no campo criminal gera insegurança jurídica e injustiças, pois cria um padrão probatório diferenciado que se afasta das garantias penais tradicionais. A verdade processual deixa de ser buscada com base em elementos concretos e passa a ser definida por uma construção normativa artificial.
3. Conclusão
O protocolo de gênero nasceu com o propósito de suprir lacunas probatórias em crimes de violência doméstica, mas sua aplicação no campo criminal precisa ser analisada com extrema cautela. Ao privilegiar a palavra da suposta vítima como elemento central de condenação, corre-se o risco de enfraquecer o direito à prova e comprometer garantias fundamentais conquistadas ao longo de séculos. Mais do que reparar injustiças históricas, o sistema de justiça deve assegurar que cada caso seja julgado com base em evidências concretas e respeitando a presunção de inocência, para que a busca por equidade não se transforme em nova forma de injustiça.