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Imunidade tributária do ITBI na integralização de capital: Reflexões sobre o Tema 1.348 do STF

O STF analisa se a transferência de imóveis para formação de sociedade é totalmente isenta, impactando planejamento patrimonial e holdings.

9/10/2025
Cássio de Paula Xavier e Rafael de Oliveira Guimarães

O STF, ao reconhecer a repercussão geral no RE 1.495.108, instaurou o Tema 1.348 para definir o alcance da imunidade do ITBI prevista no art. 156, § 2º, I, da Constituição1. A questão central é objetiva, embora densa e de grandes efeitos práticos. O debate reside em determinar se a imunidade aplicável à transmissão de bens imóveis para integralização de capital social é incondicionada, ou se, sobre ela, se projeta a ressalva final do dispositivo, relativa à atividade preponderantemente imobiliária do adquirente (natureza condicionada da imunidade).

O desfecho interessa diretamente a estruturas de planejamento patrimonial e sucessório, à organização de holdings e ao mercado imobiliário, sem desconsiderar a capacidade arrecadatória municipal. A crescente divergência jurisprudencial nas instâncias ordinárias e a judicialização em massa evidenciam a necessidade de uniformização e “pacificação” pelo STF.

A relevância prática desta definição se manifesta em cenários empresariais comuns, como no caso de um proprietário de uma fazenda de soja que decide transferir parte da terra para uma holding rural para administrar o patrimônio e otimizar o acesso a crédito. Neste contexto, a incidência do ITBI na integralização do imóvel é o ponto de dúvida. Se a imunidade for incondicionada, a simples transferência para compor o capital social já desonera o imposto. Se, por outro lado, a imunidade for condicionada, o município pode cobrar o ITBI caso a holding atue principalmente na compra e venda de imóveis rurais ou urbanos.

Similarmente, em um planejamento sucessório que utiliza uma holding familiar para integralizar casas, apartamentos e terrenos, a decisão do STF será crucial, pois a imunidade entendida como "sem condições" (incondicionada) garante a desoneração, ao passo que a interpretação "com condições" (condicionada) pode levar à exigência do ITBI se a empresa for constituída para a compra e venda de imóveis. Para estruturas que buscam apenas organizar o patrimônio e distribuir cotas, a definição do Tema 1348 pode representar economia significativa ou custo extra no momento da transferência.

A solução decorre da arquitetura da norma constitucional. Imunidades, enquanto regras negativas de competência, não se confundem com favores legais ou meras autorizações para o não recolhimento do tributo. Delimitam previamente o espaço em que o ente político não pode exercer o poder de tributar ou ainda a abrangência de determinada hipótese de incidência. Daí decorre a hermenêutica própria do tema. A imunidade se interpreta de modo a maximizar sua eficácia protetiva. As exceções, por restabelecerem competência onde ela estava retirada, submetem-se a leitura estrita.

O inciso I do § 2º do art. 156 veicula duas disposições autônomas, separadas pela conjunção “nem”. Na primeira, a Constituição desonera a conferência de bens para realização de capital, com nítido propósito de fomento à atividade econômica. Na segunda, imuniza transmissões decorrentes de fusão, incorporação, cisão ou extinção, mas introduz ressalva antielisiva vinculada à atividade preponderante do adquirente. A expressão “nesses casos”, por coesão textual, refere-se ao antecedente imediato, isto é, ao bloco das reorganizações (fusão, incorporação, cisão ou extinção). Estendê-la à integralização contraria a sintaxe do enunciado e subverte sua teleologia.

A finalidade da norma confirma a leitura gramatical. A ressalva busca impedir que reestruturações societárias sirvam como atalho para circular estoques imobiliários sem o devido recolhimento do ITBI. Essa preocupação é própria de operações que rearranjam patrimônios já existentes. Não se projeta, com igual lógica, sobre o momento fundador de capitalização, que a Constituição pretende incentivar. Tributar a conferência de bens essenciais à atividade de empresa do próprio setor imobiliário, somente pelo fato de o adquirente exercer atividade preponderante imobiliária, produziria desincentivo em sentido oposto ao mandado de fomento e à livre iniciativa.

O itinerário jurisprudencial percorrido pelo STF corrobora essa compreensão. No Tema 796, ao julgar o RE 796.376, o Supremo firmou o entendimento no sentido de a imunidade não alcançar o valor que excede o capital subscrito. No voto condutor registrou-se, de modo incidental - em obiter dictum -, que a ressalva final nada se relaciona com a primeira parte do inciso, sinalizando a incondicionalidade da imunidade na integralização para fins de capital subscrito. A Procuradoria-Geral da República, em parecer datado de 17/9/2025 emitido no RE 1.495.108, alinha-se a esse entendimento, sustentando que a norma constitucional criou duas hipóteses distintas e que a ressalva se conecta apenas às reorganizações, razão pela qual eventuais condicionantes infraconstitucionais incompatíveis, a exemplo dos arts. 36 e 37 do CTN, não foram recepcionadas no ponto.

À luz do desenho constitucional e da dogmática das imunidades, revela-se tecnicamente mais adequado concluir que a integralização de capital se encontra protegida por imunidade incondicionada, sem incidência da ressalva quanto à atividade preponderante. Esse entendimento preserva a coerência do texto constitucional, respeita a função antielisiva restrita às reorganizações e atende ao vetor de fomento econômico. A expectativa, portanto, é de que o STF confirme, no Tema 1348, a orientação já sinalizada - em obiter dictum - no Tema 796 e em harmonia com o parecer 58020/25 da PGR.

Em síntese, a confirmação da imunidade incondicionada na integralização tende a restaurar a segurança jurídica, mas exige planejamento integrado que observe, simultaneamente, dois cuidados práticos: Primeiro, a imunidade se limita ao que efetivamente se destina a integralizar o capital subscrito (Tema 796), não abrangendo o valor excedente, o qual pode ser tributado pelo ITBI. Segundo, a não incidência do ITBI (imposto municipal) não interfere na eventual apuração de ganho de capital na esfera federal, de modo que se a integralização for realizada por valor de mercado superior ao custo de aquisição do sócio, a diferença poderá configurar ganho tributável no Imposto de Renda.

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1 Art. 156 - (...) § 2º O imposto previsto no inciso II [ITBI]: I - não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil. [g.n]

Cássio de Paula Xavier

Advogado e Professor. Gestor Executivo de Operações do escritório Medina Guimarães. Doutorando em Direito pelo IDP e Mestre em Direito pela UNIPAR

Rafael de Oliveira Guimarães

Advogado e doutor em direito do estado na USP.

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