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Os smart contracts na desjudicialização da execução civil

Este artigo propõe uma análise sobre os smart contracts como instrumento de inovação na execução civil.

9/10/2025
Larissa Praxedes Coimbra e Isabela Maria Gonzalez

O processo judicial brasileiro é, muitas vezes, ineficiente. Essa constatação é evidenciada na execução civil, um dos pontos de maior fragilidade do sistema de justiça brasileiro1. Grande parte do acervo processual encontra-se paralisado nessa etapa, o que compromete não apenas a efetividade das decisões judiciais, como a confiança no Poder Judiciário enquanto instrumento estatal de pacificação e proteção de direitos. Segundo dados do CNJ, mais da metade dos processos em tramitação corresponde a execuções, o que revela um quadro de congestionamento crônico e de difícil superação apenas com reformas pontuais do processo civil.2

Esse cenário tem impulsionado a busca por soluções extrajudiciais e tecnológicas, capazes de conferir maior efetividade ao adimplemento contratual, sem a necessidade de recorrer ao judiciário para obter o cumprimento de obrigações contratuais. No debate contemporâneo, emergem como alternativas promissoras a desjudicialização da execução civil - com modelos multiportas, que redistribuem a atividade executiva entre diferentes atores e instrumentos - e a utilização de tecnologias inovadoras, como os smart contracts.3

Os smart contracts ou contratos inteligentes, numa tradução literal, podem ser conceituados como uma ferramenta para execução de negócios jurídicos. Embora exista uma controvérsia em torno do conceito, pode-se afirmar que são contratos nos quais a execução é automatizada, porque realizada por um sistema no qual a operação é determinada por algoritmos4. Diferenciam-se dos contratos eletrônicos tradicionais, porque não apenas formalizam digitalmente a manifestação de vontade das partes, como são redigidos em linguagem computacional, de modo que as cláusulas são executadas de forma automática, quando verificadas as condições programadas.5

Essa ferramenta permite que obrigações contratuais sejam reproduzidas por algoritmos que tornam o seu registro, monitoramento e execução mais práticos, além de dificultar o inadimplemento contratual ou torná-lo mais custoso.6

Os contratos inteligentes são aplicados pela tecnologia blockchain, que nada mais é do que um grande banco de dados, mantido por diversos computadores conectados (denominados “nós”), e que só pode ser alterado mediante consenso dos envolvidos. Esse mecanismo garante a imutabilidade dos registros, a rastreabilidade e a descentralização, de forma a eliminar a necessidade de intermediários e reduzir os custos da transação.7

Os smart contracts funcionam como medidas sub-rogatórias, nas quais o cumprimento da prestação independe da vontade do devedor, uma vez que é delegado a uma rede descentralizada8. No âmbito da execução civil, essa dinâmica pode simplificar operações como transferências de ativos ou pagamentos de quantias, e garantir o cumprimento imediato e seguro de obrigações. Permite que os atos executivos sejam praticados diretamente pelo credor, sem a necessidade de intermediários, em razão da característica intrínseca de autoexecutoriedade.

Tradicionalmente, cabe ao credor envidar esforços, assumir custos e suportar riscos para acionar o Poder Judiciário e obter o adimplemento de uma obrigação, ainda que possua título (judicial ou extrajudicial) dotado de presunção e verossimilhança. Contudo, como demonstrado, a execução judicial apresenta índices elevadíssimos de ineficiência. O uso de tecnologias como os smart contracts surge como alternativas potenciais, efetivas e seguras para o evitar tais entraves.9

Os benefícios são evidentes: maior eficiência, redução de custos, mitigação do risco de fraude e transparência das operações. Além disso, a lógica automatizada aproxima-se da concepção processual segundo a qual a execução deve converter o direito reconhecido em resultado prático, cabendo ao juiz apenas a supervisão de legalidade, em uma cognição limitada.10

Apesar de suas vantagens, a implementação dos contratos inteligentes ainda encontra desafios. A rigidez do código computacional limita a possibilidade de renegociações em situações não previstas originalmente, o que dificulta a adaptação às circunstâncias supervenientes. Soma-se a isso o problema da exclusão digital, que restringe o alcance da tecnologia em sociedades marcadas por desigualdades estruturais, como a brasileira.11

Portanto, ao permitir a satisfação célere de prestações, os smart contracts se aproximam da lógica processual segundo a qual a execução deve converter o direito reconhecido em resultado concreto. A automação tecnológica, nesse sentido, alinha-se à concepção de uma cognição orientada pela efetividade. Contudo, trata-se de uma tecnologia ainda incipiente, que demanda avanços significativos antes de se consolidar como verdadeiro marco no direito obrigacional.12

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1 SOARES, Marcos José Porto. Os smart contracts como medida executiva: caminho para uma justiça descentralizada? Revista de Processo, v. 340, p. 407-434, jun. 2023. p. 407.

2 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em Números 2024: ano-base 2023. Brasília: CNJ, 2024.

3 COSTA, Rosalina Moitta Pinto da; MOURA, João Vitor Mendonça de. Descortinando novos caminhos para um sistema multiportas de execução no Brasil: “há vários caminhos até a montanha”. Revista de Processo, v. 334, p. 413-437, dez. 2022.

4 MOREIRA, Rodrigo. Investigação Preliminar sobre Blockchain e os Smart Contracts. Revista de Direito e as Novas Tecnologias, v. 3, abr./jun. 2019, p. 3.

5 WANDERLEY, Gabriela de Sá Ramires. Smart contracts: uma nova era do direito obrigacional? Revista de Direito e as Novas Tecnologias, v. 7, abr./jun. 2020. p. 2-3.

6 MOREIRA, Rodrigo. Investigação Preliminar sobre Blockchain e os Smart Contracts. Revista de Direito e as Novas Tecnologias, v. 3, abr./jun. 2019, p. 4.

7 MOREIRA, Rodrigo. Investigação Preliminar sobre Blockchain e os Smart Contracts. Revista de Direito e as Novas Tecnologias, v. 3, abr./jun. 2019. p. 3-4.

8 SOARES, Marcos José Porto. Os smart contracts como medida executiva: caminho para uma justiça descentralizada? Revista de Processo, v. 340, p. 407-434, jun. 2023. p. 407.

9 MICHELI, Leonardo Miessa de; SILVA, Rafael Augusto. Desjudicialização da execução civil e novas tecnologias. Revista de Direito e as Novas Tecnologias, v. 17, out./dez. 2022. p. 7.

10 SOARES, SOARES, Marcos José Porto. Os smart contracts como medida executiva: caminho para uma justiça descentralizada? Revista de Processo, v. 340, p. 407-434, jun. 2023.

11 NUNES, Antonio Aurélio de Souza Viana; PAOLINELLI, Camilla. Um olhar iconoclasta aos rumos da execução civil e novos e-designs: como os smart contracts e as online dispute enforcements podem revelar inovações para a desjudicialização da execução. In: Execução Civil: Novas Tendências. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023. p. 398.

12 WANDERLEY, Gabriela de Sá Ramires. Smart contracts: uma nova era do direito obrigacional? Revista de Direito e as Novas Tecnologias, v. 7, abr./jun. 2020. p. 11.

Larissa Praxedes Coimbra

Sócia da JCL Telles Advocacia. Graduada em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), em 2022. Pós-graduada em Direito Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), em 2025. Advogada que atua no âmbito do contencioso cível, com experiência em litígios estratégicos envolvendo matérias de responsabilidade civil no âmbito do Direito Empresarial, Direito Médico e Direito Ambiental.

Isabela Maria Gonzalez

Advogada da JCL Telles Advocacia. Graduada pela Universidade Federal da Bahia. Pós graduanda em Direito Processual Civil. Atuação no âmbito do contencioso cível estratégico.

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