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Por que a união estável é suficiente para o amor no cárcere?

A união estável humaniza o sistema prisional. O projeto União Legal, idealizado pelo juiz de paz Rudyard Rios, propõe ampliar o acesso ao casamento civil e à cidadania.

1/11/2025
Rudyard Rios

“Dona Lúcia chega todos os sábados ao presídio feminino com uma sacola de roupas dobradas, um sabonete novo e um caderno de cartas. Ela está há mais de três anos tentando regularizar a união estável com o companheiro, preso em outro Estado. O casamento civil seria impossível pelas barreiras burocráticas, mas o amor deles, comprovado em cada visita, em cada carta trocada, é o que mantém viva a esperança de um recomeço.”

Casos como o de Lúcia se repetem em todo o país e revelam uma realidade pouco discutida: a de que, atrás das grades, o amor continua sendo um direito.

A visita íntima nos presídios não é um privilégio, mas um direito humano ligado à dignidade e à preservação dos vínculos familiares.

O reconhecimento da união estável, feito em registro civil, é uma forma legítima de comprovar esse vínculo, evitando burocracias e exclusões, sem esvaziar o sentido jurídico do casamento civil.

O Estado deve também oferecer, em certos casos, a oportunidade do casamento civil como instrumento de reintegração social e afirmação da cidadania.

A base legal: Dignidade e vínculo afetivo

A lei de execução penal (lei 7.210/1984) assegura ao preso o direito de “visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos” (art. 41, X).

Ao incluir o termo “companheira(o)”, o legislador deixou claro que o vínculo afetivo tem prioridade sobre a formalização cartorial.

O objetivo da visita íntima é proteger a dignidade da pessoa presa e seus laços familiares, não reconhecendo efeitos civis da relação.

Por isso, as normas penitenciárias aceitam a união estável como comprovação suficiente de relacionamento estável e contínuo, ainda que demonstrada por filhos em comum, declarações, contas conjuntas ou correspondências.

O casamento civil é jurídico; A visita íntima é humanitária

O casamento civil é um ato formal, com proclamas, habilitação e celebração perante juiz de paz, gerando efeitos patrimoniais e sucessórios. A visita íntima, ao contrário, é um direito de execução penal, de natureza humanitária.

Exigir o casamento civil para permitir a visita seria criar uma barreira burocrática que feriria o princípio da dignidade e excluiria muitos casais de baixa renda, para os quais o processo de habilitação ainda é inacessível. Mas para além da questão jurídica, há também um aspecto psicológico profundo: a visita íntima representa um elo de identidade e esperança para quem está privado de liberdade.

Diversos estudos da psicologia prisional apontam que a manutenção de vínculos afetivos estáveis reduz quadros de depressão, ansiedade e sensação de abandono, fatores diretamente ligados à reincidência e à dificuldade de ressocialização.

O afeto, nesses contextos, funciona como um lembrete simbólico de pertencimento: alguém ainda acredita, alguém ainda espera. Negar esse espaço seria não apenas restringir um direito, mas romper um laço emocional essencial à recuperação da autoestima e da capacidade de recomeçar.

Nesse contexto, o Estado reconhece que a afetividade real, e não apenas o registro formal, é o elemento essencial para o vínculo conjugal dentro do sistema prisional, e também uma ponte silenciosa entre a punição e a possibilidade de reintegração social.

O projeto "união legal": Inclusão e cidadania

Como juiz de paz, tenho defendido que o reconhecimento da união estável não deve ser o ponto final dessa discussão, mas o início de uma nova política pública de acesso à cidadania.

Por isso, está atualmente em análise na Secretaria de Justiça do Distrito Federal o projeto União Legal, que propõe oferecer a casais em situação de vulnerabilidade, inclusive em contextos prisionais ou de restrição de liberdade, a oportunidade de formalizar o casamento civil gratuitamente, quando houver interesse mútuo.

A ideia é simples e poderosa: se o Estado reconhece o amor como vínculo legítimo, deve também facilitar o seu reconhecimento jurídico, removendo barreiras econômicas e burocráticas.

Assim, a união estável continua sendo instrumento de inclusão, mas o casamento civil pode voltar a ser um símbolo de reconstrução e dignidade.

O olhar da sociedade: Vínculos que resistem

Nas filas de visita, encontram-se histórias de fidelidade, esperança e recomeço. Muitas dessas mulheres enfrentam longas viagens, horas de espera e, ainda assim, não desistem de manter vivo o laço com quem está do outro lado das grades.

Uma delas, ao ser perguntada por que continua visitando o companheiro há cinco anos, respondeu com simplicidade desarmante: “Ele errou, mas o amor não acabou. Eu venho porque acredito que ele pode recomeçar, e eu também.”

Negar a essas famílias o reconhecimento do afeto seria punir também quem vive do lado de fora das grades.

A união estável, reconhecida pela Constituição e pelo CC, representa o equilíbrio entre o formal e o humano, entre o Direito e a vida real.

Conclusão

Quando o sistema prisional exige a união estável em vez do casamento civil, não está flexibilizando o Direito, mas tornando-o mais humano e acessível.

O que se protege é o vínculo, a dignidade e a esperança. E quando o Estado amplia o acesso ao casamento civil, como propõe o União Legal, ele reafirma que a cidadania também começa pelo reconhecimento do amor.

Como juiz de paz e estudioso do tema, acredito que o fortalecimento desses vínculos afetivos pode contribuir de forma concreta para a melhoria dos índices de ressocialização e do convívio dentro do ambiente prisional. A liberdade pode ser restringida, mas o amor, quando verdadeiro, continua sendo um direito inalienável.

Rudyard Rios

Juiz de Paz pelo TJDFT - Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Formado em Direito e Filosofia, pós em Ciência Politica, Mestrando em Direito pela UNB com foco em Direito de Familia.

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