1. Introdução
A prescrição intercorrente nas execuções cíveis representa um dos institutos processuais que mais evoluiu nos últimos anos, especialmente após as alterações promovidas pela lei 14.195, de 26/8/21. Este fenômeno jurídico, que põe fim à execução em razão do transcurso do tempo sem a satisfação do crédito, ganhou contornos mais objetivos e previsíveis com a nova legislação, modificando substancialmente a disciplina que existia desde a promulgação do CPC/15. A prescrição intercorrente funciona como mecanismo de equilíbrio entre o direito do credor à satisfação de seu crédito e os princípios da segurança jurídica, da duração razoável do processo e da efetividade da prestação jurisdicional. Execuções que se perpetuam indefinidamente no tempo, sem perspectiva concreta de êxito, representam não apenas um ônus para o devedor, que permanece eternamente vinculado àquela obrigação, mas também para o próprio Poder Judiciário, que mantém em seus registros processos sem viabilidade prática de conclusão.
O presente artigo examina as principais inovações trazidas pela lei 14.195/21 ao regime da prescrição intercorrente nas execuções, com especial enfoque nos marcos temporais para sua contagem, nos requisitos para sua configuração e nos limites de sua aplicação.
2. O regime da prescrição intercorrente antes da lei 14.195/21
Para compreender adequadamente as mudanças introduzidas pela lei 14.195/21, mostra-se indispensável examinar o regime anterior da prescrição intercorrente, tanto sob a égide do CPC/1973 quanto na redação original do CPC/15.
Durante a vigência do CPC/1973, a prescrição intercorrente não possuía disciplina expressa na legislação processual. Sua construção decorreu essencialmente da atividade jurisprudencial, notadamente a partir da aplicação analógica da súmula 150 do STF, que tratava originalmente de questão tributária. Conforme esse entendimento consolidado, a prescrição intercorrente pressupunha fundamentalmente a inércia injustificada do credor exequente, após sua intimação pessoal, por prazo superior ao da prescrição do direito material vindicado.
A característica central desse regime era o elemento subjetivo da desídia do credor. Não bastava o simples transcurso do tempo ou a ausência de localização de bens penhoráveis. Era necessário demonstrar que o exequente permaneceu inerte, sem praticar atos voltados ao impulsionamento do processo, mesmo após ter sido pessoalmente intimado para tanto.
A jurisprudência do STJ consolidou que a prática de diligências pelo credor, ainda que infrutíferas, afastava a configuração da desídia e impedia o reconhecimento da prescrição intercorrente.
Com o advento do CPC/15, o instituto ganhou disciplina legal expressa nos arts. 921 a 924. A redação original do art. 921 estabelecia que a execução seria suspensa quando não fossem localizados o executado ou bens penhoráveis, pelo prazo de um ano, durante o qual também se suspenderia a prescrição. O parágrafo quarto do mesmo dispositivo dispunha que, decorrido o prazo de suspensão de um ano sem manifestação do exequente, começaria a correr o prazo de prescrição intercorrente.
Embora a redação original do CPC/15 tenha trazido maior objetividade ao instituto, a jurisprudência continuou a exigir o elemento da desídia como requisito essencial para a configuração da prescrição intercorrente. O STJ, em diversos julgados, reafirmou que a mera ausência de bens penhoráveis, por si só, não conduzia à extinção da execução por prescrição intercorrente.
O termo inicial da prescrição intercorrente, sob esse regime, era o momento posterior ao transcurso do prazo de um ano de suspensão do processo, contado a partir da decisão judicial que determinava tal suspensão ou, na ausência de decisão expressa, do transcurso de um ano da ciência da inexistência de bens penhoráveis. Somente após esse período, caso o credor permanecesse inerte, iniciava-se a contagem do prazo prescricional correspondente ao direito material. Importante destacar que, mesmo na redação original do CPC/15, o prazo da prescrição intercorrente sempre correspondeu ao prazo de prescrição da pretensão de direito material.
Assim, se a pretensão executória decorresse de direito submetido à prescrição quinquenal, como ocorre com as dívidas líquidas constantes de instrumento particular nos termos do art. 206, parágrafo quinto, inciso primeiro, do CC, o prazo da prescrição intercorrente seria igualmente de cinco anos.
3. As inovações trazidas pela lei 14.195/21
A lei 14.195, publicada em 26/8/21, promoveu alterações profundas no regime da prescrição intercorrente, modificando tanto o CC quanto o CPC.
No âmbito do Direito Material, a lei incluiu o art. 206-A no CC, estabelecendo que a prescrição intercorrente observará o mesmo prazo de prescrição da pretensão, respeitadas as causas de impedimento, suspensão e interrupção previstas na legislação civil e processual. As modificações mais relevantes ocorreram no CPC, com a alteração da redação do parágrafo quarto do art. 921 e a inclusão dos parágrafos 4-A, 5, 6 e 7 ao mesmo dispositivo. Essas alterações representaram verdadeira mudança de paradigma no tratamento da prescrição intercorrente.
A principal inovação consiste na antecipação do termo inicial da prescrição intercorrente. Segundo a nova redação do parágrafo quarto do art. 921º o termo inicial passa a ser a ciência da primeira tentativa infrutífera de localização do devedor ou de bens penhoráveis. A partir desse momento, inicia-se automaticamente o prazo de suspensão de um ano, durante o qual também se suspende a prescrição. Decorrido esse prazo, começa a fluir o prazo da prescrição intercorrente. Essa mudança eliminou a necessidade de manifestação do exequente após o período de suspensão como pressuposto para o início da contagem prescricional. Sob o regime anterior, o prazo prescricional somente se iniciava se o credor permanecesse inerte após o transcurso do ano de suspensão.
Com a nova lei, o prazo prescricional passa a correr automaticamente, independentemente de qualquer conduta ou manifestação do exequente. Outra alteração de grande relevância refere-se à eliminação da desídia como elemento essencial da prescrição intercorrente. A ministra Nancy Andrighi, no julgamento do REsp 2.090.768 do Paraná, expressamente consignou que, a partir da entrada em vigor da lei 14.195/21, não há mais necessidade de desídia do credor para a consumação da prescrição intercorrente, cujo prazo iniciará automaticamente. Essa mudança de enfoque representa importante transformação conceitual. A prescrição intercorrente deixa de ser motivada pela inércia do exequente e passa a ser substancialmente justificada pela ausência de bens penhoráveis do executado ou de sua não localização. O fundamento do instituto desloca-se da conduta do credor para a situação objetiva de inexequibilidade prática da obrigação. Percebe-se que o legislador valorizou atos concretos que efetivamente viabilizam o prosseguimento da execução, e não meras petições ou requerimentos de diligências.
O parágrafo quinto do art. 921 introduziu importante inovação em matéria de contraditório e de ônus sucumbenciais. Estabelece que o juiz, depois de ouvidas as partes no prazo de quinze dias, poderá reconhecer a prescrição intercorrente de ofício e extinguir o processo, sem ônus para as partes. A dispensa de ônus sucumbenciais quando reconhecida a prescrição intercorrente representa solução equilibrada, evitando penalizar duplamente o credor que já teve frustrada a satisfação de seu crédito.
4. Termo inicial da prescrição intercorrente sob a nova legislação
A definição precisa do termo inicial da prescrição intercorrente constitui questão de fundamental importância prática, pois dele depende o cálculo do prazo extintivo e, consequentemente, a própria viabilidade de manutenção do processo executivo.
Conforme já mencionado, a lei 14.195/21 estabeleceu que o termo inicial da prescrição intercorrente é a ciência da primeira tentativa infrutífera de localização do devedor ou de bens penhoráveis. Esse momento marca simultaneamente o início do prazo de suspensão de um ano e da suspensão do prazo prescricional.
A expressão primeira tentativa infrutífera deve ser interpretada com o devido rigor técnico. Não se trata de qualquer diligência requerida pelo exequente, mas sim da primeira ocasião em que, efetivamente, constata-se a impossibilidade de localização do devedor ou de seu patrimônio. Essa constatação pode decorrer de certidão negativa de oficial de justiça, de resposta negativa a pedidos de informações a órgãos públicos ou entidades privadas, de resultado infrutífero de sistemas de busca patrimonial como Bacenjud, Renajud ou Infojud, dentre outras hipóteses. Importante ressaltar que o termo inicial não se confunde com o momento do requerimento da diligência, mas sim com o momento da ciência do exequente acerca de seu resultado negativo. A partir do termo inicial, inicia-se o prazo de suspensão de um ano, durante o qual tanto o processo quanto a prescrição permanecem suspensos. Transcorrido esse prazo, sem que tenha ocorrido qualquer causa interruptiva ou suspensiva, passa a correr automaticamente o prazo da prescrição intercorrente.
É fundamental compreender que, sob o novo regime, o prazo prescricional flui automaticamente após o decurso do período de suspensão, independentemente de intimação do credor ou de sua inércia. Essa automaticidade representa a principal diferença em relação ao sistema anterior e evidencia a nova filosofia do instituto. A mera petição do credor requerendo novas diligências, por si só, não tem o condão de interromper a prescrição intercorrente.
5. Regime de transição e irretroatividade da lei 14.195/21
Uma das questões mais relevantes enfrentadas pela jurisprudência após a promulgação da lei 14.195/21 refere-se à sua aplicabilidade aos processos em curso.
O STJ, no julgamento do REsp 2.090.768 do Paraná, enfrentou diretamente essa questão e fixou importantes balizas para a aplicação do Direito Intertemporal. A ministra Nancy Andrighi consignou expressamente que o novo regime da prescrição intercorrente introduzido pela lei 14.195/21 não pode ser aplicado retroativamente.
Essa conclusão fundamenta-se no princípio geral da irretroatividade das normas processuais, previsto no art. 14 do CPC/15.
Segundo o entendimento do STJ, o novo regime aplica-se apenas a duas situações.
A primeira abrange os novos processos, ou seja, aqueles ajuizados após a entrada em vigor da lei 14.195/21, bem como os processos em que a primeira tentativa infrutífera de localização de bens ou do devedor ocorreu após a vigência da nova lei.
A segunda situação refere-se aos processos anteriores à nova lei nos quais ainda não tenha sido determinada a suspensão da execução por ausência de bens penhoráveis.
Se a execução foi iniciada antes da vigência da lei 14.195/21 e já havia sido determinada sua suspensão em razão da não localização de bens, subsiste integralmente o regime anterior, com todas as suas características, inclusive a necessidade de demonstração da desídia do credor para configuração da prescrição intercorrente. Ou seja: se iniciado o regime da prescrição anterior, seguirá dessa forma; sem modificação do regime da prescrição durante o curso do prazo prescricional já iniciado.
O fator determinante para definir a lei aplicável não é a data da sentença que reconhece ou não a prescrição intercorrente, mas sim o momento em que se configurou a situação fática que potencialmente enseja a prescrição, ou seja, a suspensão da execução por ausência de bens penhoráveis. Do ponto de vista prático, essa solução exige que os operadores do Direito identifiquem com precisão o momento em que ocorreu a suspensão da execução por ausência de bens penhoráveis ou de localização do devedor. Essa data funciona como marco temporal para definir o regime jurídico aplicável ao caso concreto.
6. Prazo da prescrição intercorrente
Aspecto de grande relevância prática refere-se ao prazo da prescrição intercorrente. Tanto no regime anterior quanto no atual, o prazo da prescrição intercorrente sempre correspondeu ao prazo de prescrição da pretensão de direito material que fundamenta a execução.
Essa identidade de prazos decorre da própria natureza do instituto. A prescrição intercorrente não é modalidade autônoma de prescrição, mas sim a mesma prescrição da pretensão de direito material, que continua a correr durante o processo de execução quando configuradas determinadas situações previstas em lei. O CC estabelece diversos prazos prescricionais.
O prazo geral de prescrição, aplicável às hipóteses não previstas especificamente em lei, é de dez anos, nos termos do art. 205 do CC. No entanto, o art. 206 prevê prazos especiais, merecendo destaque os prazos de cinco anos do parágrafo quinto, que abrangem a pretensão de cobrança de dívidas líquidas constantes de instrumento público ou particular.
Na prática forense, os prazos mais comuns são o quinquenal e o decenal. Execuções fundadas em contratos escritos geralmente sujeitam-se ao prazo de cinco anos. Já execuções fundadas em títulos executivos judiciais submetem-se ao prazo geral de dez anos. É importante ressaltar que o prazo da prescrição intercorrente não se confunde com o prazo de suspensão do processo. A suspensão tem duração de um ano e representa período no qual tanto o processo quanto a prescrição permanecem paralisados. Somente após o transcurso desse ano de suspensão é que se inicia efetivamente a contagem do prazo prescricional.
7. Conclusão
A prescrição intercorrente nas execuções cíveis passou por profunda transformação com o advento da lei 14.195/21. O novo regime representa significativo avanço na busca por maior objetividade, previsibilidade e eficiência no sistema processual executivo brasileiro.
A principal mudança consiste na antecipação do termo inicial da prescrição intercorrente, que passa a ser a ciência da primeira tentativa infrutífera de localização do devedor ou de bens penhoráveis. A partir desse momento, inicia-se automaticamente o prazo de suspensão de um ano e, subsequentemente, o prazo da prescrição intercorrente, independentemente de qualquer manifestação do exequente. Essa alteração eliminou a necessidade de demonstração da desídia do credor como requisito essencial.
O fundamento do instituto desloca-se da inércia do exequente para a situação objetiva de inexequibilidade prática da obrigação. A lei 14.195/21 também introduziu outras importantes inovações, como a especificação das causas de interrupção da prescrição intercorrente, a garantia do contraditório antes do reconhecimento judicial do instituto e a dispensa de ônus sucumbenciais quando da extinção da execução por esse fundamento.
No entanto, conforme firmado pela jurisprudência do STJ no REsp 2.090.768 do Paraná, o novo regime não se aplica retroativamente. Execuções em curso nas quais a suspensão por ausência de bens havia sido determinada antes da entrada em vigor da lei 14.195/21 permanecem submetidas ao regime anterior, que exigia a demonstração da desídia do credor.