A lei 11.101/05, também conhecida como lei de recuperação de empresas e falências, aprimorou, no ordenamento jurídico brasileiro, um sistema que busca preservar a empresa em crise, estimulando a superação de dificuldades financeiras e garantindo a continuidade da atividade econômica.
Em 2020, com a promulgação da lei 14.112, reformas foram introduzidas com o discurso de ampliar o acesso à recuperação e modernizar o instituto. Contudo, apesar das flexibilizações, a reforma não alcançou os públicos mais vulneráveis, reforçando a crítica de que a igualdade assegurada permaneceu apenas no aspecto formal.
No entanto, entre o texto legal e a realidade prática existe um descompasso considerável. Embora a lei, em regra, seja aplicável a qualquer empresário ou sociedade empresária (art. 1º da lei 11.101/05), sua efetividade é restrita àqueles que possuem recursos financeiros, estrutura administrativa e contabilidade organizada.
Com efeito, a Constituição Federal, em seu art. 5º, assegura a todos a igualdade perante a lei. Apesar desse mandamento constitucional, a lei 11.101/05 foi construída sob uma lógica de igualdade formal, uma vez que, em teoria, qualquer empresa, de qualquer porte, pode requerer a recuperação judicial desde que cumpra os requisitos previstos na legislação, a exemplo do exercício regular da atividade por mais de dois anos (art. 48, caput, da lei 11.101/05), criando essa concepção uma aparência de democratização do instituto.
Entretanto, quando se analisa a realidade prática, percebe-se que a estrutura procedimental complexa, a exigência de relatórios financeiros detalhados e a necessidade de custear despesas processuais criam barreiras praticamente intransponíveis para micro e pequenas empresas. Esse cenário, ao limitar o acesso dos pequenos negócios, conecta-se diretamente às consequências sociais mais graves: a liquidação sumária de empreendimentos, a perda imediata de empregos e o enfraquecimento da função social da empresa.
À exceção dos estabelecimentos informais - que não podem ser considerados como atividade empresarial diante da ausência de registro dos seus atos constitutivos em Junta Comercial (art. 982, caput, do CC) –, os números apontam que, no ano de 2024, 96,3% das empresas abertas são categorizadas como microempresas ou empresas de pequeno porte1.
Por sua vez, no mesmo ano houve o fechamento de 1,8 milhão de empreendedores individuais e de 501 mil microempresas e empresas de pequeno porte, e a realidade apenas evidencia que, ao se observar os dados dos anos anteriores, a tendência é de que os números aumentem2.
A lei, sob essa perspectiva, cumpre o ideal da igualdade formal, mas falha em assegurar a isonomia material, produzindo uma espécie de exclusão silenciosa dos pequenos empreendedores e de outros atores econômicos que não se enquadram no modelo societário clássico.
A expressividade dos números e a tendência de aumento positivo evidenciam a necessidade de se discutir, dentro de um ambiente democrático e com participação de todos os Poderes da federação, soluções aptas a tornar o acesso à recuperação judicial muito mais amplo a fim de se alcançar o mandamento constitucional previsto no art. 170 da Constituição Federal.
A preservação da atividade empresarial, assim, não se resume a proteger o empresário individualmente, mas sim a garantir empregos, arrecadação tributária e dinamismo econômico.
Sobre o tema, leciona Perez3 que: “o conceito de função social da empresa dá origem ao chamado princípio da preservação da empresa. Tal princípio advoga uma primazia do interesse da empresa, como centro de interesses autônomos e distinto de cada um dos grupos de interesses nela catalisados. A manutenção da empresa atenderia, assim, ao interesse coletivo na medida em que essa unidade organizada de produção é fonte geradora de empregos, tributos e da produção ou medição de bens e serviços para o mercado, sendo, assim, propulsora de desenvolvimento”.
O princípio da função social da empresa se torna ainda mais relevante quando se observa que as micro e pequenas empresas representam mais de 90% da realidade empresarial brasileira4 e são responsáveis pela maior parte da geração de empregos, mas, de forma contraditória, são justamente elas as que menos conseguem se valer da recuperação judicial.
Esses números demonstram que, embora pequenos em escala individual, esses agentes formam o núcleo vital da economia brasileira. A seletividade prática da lei, ao não lhes assegurar instrumentos de acesso igualitário à recuperação judicial, compromete não apenas a sobrevivência de negócios isolados, mas também a função social mais ampla da empresa, que é a preservação da atividade econômica em prol da coletividade.
Essas empresas enfrentam os mesmos fatores de crise que atingem empresas formais: retração do consumo, endividamento, custos elevados, inadimplência de clientes e, em muitos casos, desastres econômicos regionais. Entretanto, por não contarem com uma escrituração contábil regular e por não possuírem acesso a linhas de crédito oficiais, acabam escapando da incidência da legislação recuperacional.
A consequência imediata é que as empresas e agentes econômicos que não conseguem acessar a recuperação judicial acabam expostos a um cenário dramático, sendo empurrados para a falência ou para o encerramento informal; perdem-se empregos de forma imediata; ocorre a desorganização da cadeia produtiva local; aumenta-se a informalidade e o endividamento pessoal dos sócios.
Evidencia-se, nesse panorama, a grave desigualdade econômica do país.,, uma vez que, enquanto grandes grupos conseguem reestruturar dívidas milionárias e se reorganizar sob a tutela judicial, micro e pequenos empresários, MEIs, agricultores familiares e demais agentes ficam à margem, enfrentando a liquidação sumária de seus negócios.
A exclusão das microempresas, dos empreendedores informais e de outros agentes econômicos mostra que o sistema jurídico atual não cumpre plenamente sua função social. O desafio do legislador brasileiro não é apenas tornar a recuperação judicial acessível ao pequeno empresário, mas construir um regime inclusivo que alcance toda a pluralidade de agentes produtivos que hoje estão à margem.
Algumas medidas legislativas poderiam ser pensadas:
- Adoção de modelos como o small business reorganization act, existente nos Estados Unidos;5
- Inclusão de mecanismos extrajudiciais comunitários: a) estímulo a câmaras de mediação e conciliação específicas para pequenos empresários e MEIs;
- Política de transição da informalidade: a) criação de um “plano de formalização assistida”, em que empresas informais em crise pudessem acessar benefícios condicionados à regularização futura;
- Redução dos custos de acesso: a) limitação legal das custas e honorários em processos de pequeno valor; b) possibilidade de que universidades, órgãos de classe e entidades públicas ofereçam administradores judiciais sociais para auxiliar pequenos empreendedores;
- Maior integração com o sistema tributário: a) permitir que microempresas, MEIs e pequenos produtores em recuperação tenham acesso a parcelamentos tributários sob condições diferenciadas e mais favoráveis.
A lei 11.101/05 representa, em teoria, um marco de proteção à atividade empresarial, no entanto, ao privilegiar a igualdade formal e não garantir instrumentos efetivos de equidade, o sistema acaba funcionando como um filtro excludente: protege quem tem maior capacidade de suportar os custos do processo e exclui quem mais necessitaria da possibilidade de soerguimento.
Por isso, é preciso pensarmos em mecanismos mais simples, céleres e menos onerosos, capazes de tornar a recuperação judicial um instrumento verdadeiramente acessível e plural, prestigiando-se o princípio da função social da empresa e da igualdade material.
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1 https://datasebrae.com.br/wp-content/uploads/2025/06/2025-01-31-Relatorio-Tecnico-Abertura-Pequenos-Negocios-Anual-2024-1.pdf acesso em 7/10/25 às 11h38min.
2 https://datasebrae.com.br/wp-content/uploads/2025/08/Relatorio-tecnico-Analise-de-Abertura-e-Fechamento-de-empresas-por-Setor-e-CNAE-no-Brasil-05292025.pdf acesso em 7/10/25 às 11h41min.
3 PEREZ, Viviane. A função social da empresa: uma proposta de sistematização do conceito. In: ALVES, Alexandre Ferreira de Assumpção; GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da (Coord.). Temas de direito civil-empresarial. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 206
4 https://www.gov.br/empresas-e-negocios/pt-br/mapa-de-empresas/boletins/mapa-de-empresas-boletim-1o-quadrimestre-2025-pdf.pdf -acesso em 2/10/25
5 A SBRA foi promulgada para auxiliar proprietários de pequenas empresas a encontrar um caminho mais eficiente e econômico para a reorganização. Considerando todos os indicadores atuais, parece que a SBRA está funcionando conforme o planejado pelo Congresso. O USTP continua dedicado a apoiar a SBRA e continuará monitorando seu progresso, analisando dados de casos e fazendo os ajustes necessários para garantir que as determinações da nova lei possam continuar a ser cumpridas com sucesso.- https://www.justice.gov/archives/ust/blog/small-business-reorganization-act-implementation-and-trends -acesso em 2/10/25