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Acordo de supervisão da CVM: Inteligência ou opacidade?

Análise crítica do APS da CVM: Eficiência investigativa vs. transparência. Aponta riscos de opacidade, assimetria e imprevisibilidade; propõe dosimetria, disclosure e coordenação interinstitucional.

23/10/2025
Fransérgio dos Santos Prata

Acordo de supervisão da CVM: Inteligência regulatória, transparência e due process - uma crítica propositiva

A retomada do APS - Acordo de Supervisão pela CVM reacendeu uma discussão que vai além do caso do momento: qual é o papel desse instrumento na arquitetura do enforcement do mercado de capitais brasileiro? Em que medida ele acelera a descoberta da verdade e responsabiliza melhor, e em que medida pode opacificar decisões, gerar assimetria informacional e produzir insegurança jurídica? Este artigo propõe uma análise crítica - mas propositiva - do APS, contrastando-o com a delação premiada no processo penal e com práticas internacionais de cooperação, para propor salvaguardas que preservem a eficiência sem abrir mão de accountability.

1) O que é o acordo de supervisão - e o que definitivamente não é

O APS é um instrumento administrativo de cooperação. Em essência, o investigado (pessoa física ou jurídica) confessa a infração administrativa e colabora com a autoridade, fornecendo elementos novos, úteis e verificáveis que permitam identificar outros envolvidos, ampliar o escopo da investigação e tornar mais robusta a responsabilização. Em troca, pode obter redução relevante de penalidade ou até a extinção da pretensão punitiva administrativa, a depender da valia da colaboração e dos critérios normativos.

Três distinções são fundamentais:

  1. Não é “termo de compromisso”: O termo de compromisso encerra o processo sem exame do mérito e sem confissão, mediante obrigações pecuniárias e/ou de fazer. O APS, ao contrário, supõe assunção de responsabilidade e produção de prova cooperada.
  2. Não é delação premiada: A delação vive no foro penal, sob controle judicial, com potencial de redução de pena, mudança de regime ou perdão judicial. O APS vive no foro regulatório-administrativo; seus efeitos são circunscritos à esfera sancionadora da autarquia, sem, por si só, imunizar o agente em outras frentes (penal, civil, concorrencial).
  3. Não é anistia: A colaboração não substitui a responsabilização; ela a instrumentaliza. A “moeda de troca” é informação qualificada, e não mera conveniência processual.

Esses contornos importam porque delimitam expectativas: o APS não deve ser percebido como “atalho indulgente”, nem como licença para um acerto “de porta fechada”; tampouco deve ser demonizado como mecanismo que premia o infrator. Como toda ferramenta de enforcement inteligente, seu valor depende do desenho de governança, dos critérios de dosimetria e da forma de comunicação com o mercado.

2) Por que o APS reaparece - e por que isso é bom (até certo ponto)

A investigação de fraudes contábeis, manipulação de mercado, insider trading estruturado e outras práticas sofisticadas exige capacidade probatória que frequentemente supera o que se pode obter por vias tradicionais. A assimetria natural de informação entre regulador e investigados é grande; a colaboração encurta caminhos, destrava impasses, revela cadeias decisórias, calendários de fatos e fluxos documentais que dificilmente emergiriam sem uma porta de entrada cooperativa.

Sob a ótica de política pública, o APS:

Em suma, o APS melhora a eficiência alocativa do enforcement: Pune melhor, ainda que, em alguns casos, puna menos um dos agentes para punir mais e melhor o conjunto.

3) Os custos de transação ocultos: Sigilo, assimetria e previsibilidade

O ganho de eficiência não é gratuito. Há três frentes de custo de transação regulatório que precisam ser governadas.

3.1 Sigilo necessário vs. opacidade indevida

O sigilo durante a negociação e execução do APS é justificável: sem ele, não há incentivo para a colaboração nem preservação da investigação em curso. Porém, postergar indefinidamente a transparência sobre conteúdo, utilidade e dosimetria dos benefícios cria opacidade institucional. Em mercados sensíveis à informação, isso alimenta assimetrias entre quem sabe (autoridade e colaborador) e quem não sabe (demais investigados, investidores, credores, contraparte em litígios), com reflexos em preço, liquidez e percepção de risco.

3.2 Assimetria de poder e narrativa

Primeiro a colaborar tipicamente captura o maior benefício. Isso faz sentido - tempestividade importa -, mas também concentra poder de construção narrativa nas mãos de um agente com incentivos próprios. Sem verificabilidade independente e contrapesos adequados, a colaboração pode escorregar para storytelling interessado, deslocando a culpa para elos mais fracos e reatribuindo causalidades. O risco não é hipotético; é inerente a todo mecanismo de “corrida” por cooperação.

3.3 Previsibilidade sancionadora

Sem parâmetros minimamente claros de dosimetria, o APS vira terreno fértil para a percepção de barganha opaca. Não se pede uma tabela mecânica - casos complexos não cabem em planilha -, mas eixos objetivos: (i) tempestividade, (ii) utilidade incremental (o que a colaboração trouxe de novo), (iii) consistência e rastreabilidade das provas, (iv) alcance (quantos e quais elos adicionais foram revelados) e (v) efeito dissuasório (resultado para além do caso concreto).

4) APS x delação premiada: Semelhanças úteis, diferenças essenciais

Comparar APS e delação não é confundir. É mapear aprendizados e limites.

Em síntese, a analogia com a delação é útil para diagnosticar riscos e importar salvaguardas, sem transplantar, acrítica e integralmente, um regime pensado para o processo penal.

5) Efeitos de mercado: Minoritários, preço e litígios privados

O desenho do APS tem efeitos sistêmicos. Em companhias abertas, informação relevante pode impactar preço e estratégias de litígio (ações de responsabilidade de administradores, arbitragens societárias, class actions). Se o sigilo for mais longo do que o necessário, investidores tardam a reprecificar riscos e antecipar medidas de governança. Daí a importância de gatilhos de disclosure: marcos objetivos em que informações mínimas (sem comprometer a investigação) sejam compartilhadas, permitindo que o mercado module expectativas e proteja o interesse de minoritários.

6) O papel dos órgãos internos e da assessoria jurídica

O APS também é uma ferramenta de governança corporativa. Conselhos de Administração, comitês de auditoria, compliance e a assessoria jurídica precisam avaliar com rigor:

7) Roteiro de boas práticas: Como fazer o APS entregar valor público

Uma crítica responsável não para no diagnóstico; ela propõe remédios institucionais. Quatro conjuntos de medidas podem fortalecer o APS sem “judicializá-lo”.

7.1 Transparência programada (publicidade ex post)

Relatório padronizado após decisão final, indicando: (i) por que o APS foi cabível, (ii) o que a colaboração adicionou (sem revelar segredos industriais), (iii) como se calculou o benefício, (iv) quais foram os resultados práticos (pessoas responsabilizadas, valores recuperados, reformas de governança induzidas).

Modelo de linguagem clara (“plain language”) para o público de mercado, preservando confidências e, ao mesmo tempo, comunicando métrica e método.

7.2 Guia de dosimetria (parâmetros objetivos, não tabelas cegas)

7.3 Gatilhos de disclosure (quando a informação é sensível a preço)

7.4 Coordenação interinstitucional (evitar colisão e redundância)

Fluxos de compartilhamento com MPF, PF, Banco Central e outros reguladores, com cadeia de custódia e registro de acessos.

Evitar bis in idem: Delimitação clara de esferas sancionatórias e valoração de colaboração cruzada (o que é útil em uma esfera deve ter reflexo - ainda que ponderado - na outra).

Comitês técnicos interagências para casos sistêmicos, com atas e governança de conflito.

8) Parêntese internacional: O que dá para aprender sem copiar

Reguladores como a SEC (EUA) praticam o “cooperation credit”: quem colabora cedo, com qualidade e com remediação organizacional (reformas internas, substituição de lideranças, fortalecimento de controles) recebe benefícios tangíveis. O DOJ adota políticas de Corporate Enforcement com ênfase em prontidão, autodenúncia e capacidade de produzir dados (logs, mensagens, trilhas digitais) que corroboram a narrativa. Autoridades concorrenciais trabalham com leniência e marcos de transparência.

O Brasil não precisa replicar ritos; mas pode internalizar princípios: previsibilidade, métrica clara e publicidade responsável. O APS, em linguagem simples, é o nosso cooperation credit regulatório; falta conferir-lhe rotina, parâmetros e comunicação.

9) Métricas de sucesso: Como saber se o APS está funcionando

Sem KPIs, a discussão vira crença. Alguns indicadores objetivamente mensuráveis:

Tempo médio de investigação do marco inicial até a decisão: reduziu?

Alcance: número de agentes adicionais revelados por caso com APS vs. casos sem APS.

Valores recuperados ou benefícios patrimoniais evitados por medidas corretivas induzidas pelo acordo.

Qualidade de governança pós-caso: existência de reformas em controles internos, política de divulgação, rotinas de auditoria.

Efeito dissuasório: sinalização percebida por participantes de mercado (pesquisas com emissores, intermediários e investidores institucionais).

Litigiosidade colateral: o APS gerou mais ou menos litígios privados? Qual a taxa de incoerência de narrativas cross-foros?

Essas métricas devem ser publicadas periodicamente em relatórios de enforcement, permitindo escrutínio técnico e aprendizado institucional.

10) Governança interna do processo de APS: Checks & balances dentro da CVM

Se o contrapeso é intra-regulador, ele precisa ser estruturado:

Comitê deliberativo plural com a participação de áreas técnicas, assessoria jurídica e instância de integridade.

Registro detalhado de tratativas (atas, trilhas de decisão, justificativas de dosimetria).

Parecer de integridade: atestar que benefícios e condições foram concedidos com base em critérios objetivos; checar conflitos e consistência com casos análogos.

Auditoria interna ex post: amostra de casos para revisão por terceira linha de controle.

Treinamento contínuo das equipes negociadoras em técnicas de entrevista, avaliação probatória e gestão de vieses cognitivos.

11) Para as companhias e administradores: Como decidir cooperar - e como fazê-lo bem

Do lado dos investigados, cooperar é decisão estratégica. Algumas balizas:

12) Conclusão: O valor público do sigilo - quando ele é ponte e não muro

O sigilo não é inimigo da transparência; é ponte tática para que o regulador atravesse, com segurança, um terreno minado por assimetrias e incentivos perversos. Mas, uma vez do outro lado, é dever do Estado prestar contas: explicar o que foi feito, por que e com que resultados. É isso que separa inteligência regulatória de opacidade institucional.

O acordo de supervisão é uma boa ideia - e já provou sua utilidade -, desde que não seja tratado como caixa-preta. Com transparência programada, dosimetria objetiva, coordenação interagências e métricas de performance, o APS deixa de ser apenas um arranjo negocial e se torna política pública de alto impacto, capaz de elevar o padrão de governança, proteger investidores e dissuadir novas infrações. O caso que o recolocou nos holofotes tem tudo para virar leading case - não apenas pelo que decidirá sobre pessoas e condutas, mas pelo método que consagrará para os próximos ciclos de supervisão.

Se quisermos um mercado de capitais maduro, previsível e competitivo, precisamos de um enforcement rápido e justo. O APS pode ser exatamente isso - desde que venha acompanhado do que todo mercado sofisticado exige: regra clara, critério público e prestação de contas.

Fransérgio dos Santos Prata

Advogado corporativo com atuação em Direito Empresarial, Imobiliário, Condominial e Contratual, com expertise em compliance, governança e proteção de dados.

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