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Critérios fixados pelo STF para pagamento a hospitais privados por ordem judicial

Plenário fixou que o valor deve observar o mesmo parâmetro usado no ressarcimento do SUS pelos planos de saúde, limitado pelo teto da ANS.

23/10/2025
Leonardo de Souza Moldero

Com a promulgação da CF/88, a saúde deixou de ser tratada como política pública programática e alçada ao patamar de garantia social fundamental, sendo direito de todos e dever do Estado.

A institucionalização do SUS, com seus princípios de universalidade, integralidade e gratuidade, inaugurou uma nova ordem, em que o acesso ao cuidado passou a integrar o núcleo essencial da cidadania. Esse processo de constitucionalização do SUS conferiu densidade normativa ao direito à saúde e ampliou o espaço de atuação do Poder Judiciário em sua concretização.

A judicialização da saúde é fruto direto desse desenho constitucional. Diante da insuficiência estrutural do SUS e da ineficácia de políticas públicas em muitos casos, cidadãos recorrem às cortes para assegurar, desde medicamentos de alto custo, até internações emergenciais.

Nesse entrançado arranjo da saúde pública brasileira, uma questão recorrente emergiu: quando um hospital privado, sem vínculo contratual com o SUS, atende paciente por ordem judicial, quem paga a conta (solidariedade entre os entes federativos) e, o mais importante, quanto deve ser pago?

Essa foi a controvérsia enfrentada pelo STF no RE 666.094/DF, um julgamento de repercussão geral que se tornou marco na delimitação da responsabilidade financeira do Estado nessas hipóteses.

O caso

O processo teve origem em ação proposta por hospital privado que prestou atendimento a paciente do SUS por determinação judicial.

O Distrito Federal, enquanto requerido, contestou o valor cobrado, sustentando que não poderia se submeter a preços arbitrados unilateralmente.

A controvérsia levada à Suprema Corte consistia em definir se o pagamento deveria ser feito com base na tabela SUS, notoriamente defasada, ou se caberia reconhecer a liberdade tarifária dos hospitais privados.

O núcleo da decisão

O relator, ministro Luís Roberto Barroso, propôs uma solução de equilíbrio: o valor a ser pago deve adotar como teto os mesmos critérios de referência já utilizados no ressarcimento do SUS pelos planos de saúde, nos termos do art. 32, § 8º, da lei 9.656/1998.

Assim, até dezembro de 2007, aplica-se a TUNEP - Tabela Única Nacional de Equivalência de Procedimentos. A partir de então, passa a valer a tabela SUS ajustada conforme as regras de valoração do próprio SUS, multiplicada pelo IVR - Índice de Valoração do Ressarcimento, ambos fixados pela ANS.

Esse parâmetro impede, de um lado, que hospitais imponham preços sem controle ao erário, e, de outro, afasta a aplicação pura e simples da tabela SUS, que seria incompatível com a livre iniciativa - à vista da ausência de prévia contratação entre o hospital privado e o poder público - e com a viabilidade econômica das instituições privadas.

Fundamentos constitucionais

A decisão se apoiou em dois pilares. De um lado, a relevância pública da saúde (art. 197 da Constituição da República), que autoriza a participação complementar da iniciativa privada. De outro, a livre iniciativa e o direito de propriedade (arts. 1º, inc. IV, e 170, da Constituição da República), que não permitem a imposição de valores aviltantes quando o hospital não integra a rede conveniada.

O Supremo reconheceu que, ao cumprir ordem judicial, o hospital privado presta serviço público em caráter excepcional; logo, o pagamento deve respeitar critérios de equilíbrio, assegurando previsibilidade ao Estado e justa remuneração ao particular.

A linha do plenário

O voto do relator, Luís Roberto Barroso, foi seguido pela maioria dos ministros.

Gilmar Mendes destacou a importância de critérios técnicos e objetivos, capazes de reduzir litígios. Edson Fachin acentuou que a solução não fragiliza o SUS, mas reforçou a racionalidade do sistema ao adotar parâmetros já testados pela ANS.

Não houve divergência substancial. O plenário consolidou a tese de que, além do critério objetivo, é possível ao juiz verificar a razoabilidade dos valores no caso concreto, especialmente em procedimentos de alta complexidade ou uso de materiais especiais.

Impactos práticos

Para os hospitais privados, a decisão significa previsibilidade e proteção contra remunerações irrisórias, sem abrir margem para cobranças arbitrárias.

Para o Poder Público, estabelece-se um parâmetro uniforme e auditável, facilitando a liquidação de sentenças e o planejamento orçamentário.

No campo da regulação, a decisão projeta sobre a ANS a responsabilidade de manter atualizados os referenciais, que agora balizam também a remuneração de hospitais privados que atendem pacientes do SUS por ordem judicial.

Para o Judiciário, a tese reduz disputas recorrentes sobre valores, dando segurança aos juízes em primeira e segunda instâncias para fixarem indenizações com base em critérios técnicos consolidados.

Conclusão

O acórdão do RE 666.094/DF constrói uma ponte de mão dupla: o critério usado para cobrar dos planos de saúde pelo uso da rede pública passa a servir, também, como teto para pagar ao hospital privado, que atende paciente do SUS por determinação judicial.

Mais do que resolver uma disputa financeira, a Suprema Corte reafirmou que a efetividade do direito à saúde exige soluções técnicas, equilibradas e institucionalmente responsáveis.

Leonardo de Souza Moldero

Advogado criminal e sanitário. Mestrando em Cidades Inteligentes e Sustentáveis (UNINOVE). Especialista em compliance e governança corporativa (IBMEC). Consultor em Edgard Leite Advogados Associados.

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