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A confusão patrimonial como fundamento autônomo de responsabilização empresarial

O texto discute a importância da autonomia patrimonial no Direito Empresarial e alerta para a banalização da confusão patrimonial, que ameaça a segurança jurídica.

23/10/2025
Alonso Santos Alvares e Fernanda Tosi

A autonomia patrimonial é um dos pilares do Direito Empresarial moderno. Representa o reconhecimento de que a pessoa jurídica possui existência própria, distinta de seus sócios, e que essa separação é o que permite a circulação de riquezas, o investimento produtivo e a assunção de riscos de forma racional.

Contudo, o avanço jurisprudencial das últimas décadas tem revelado uma tendência preocupante: a banalização da confusão patrimonial como fundamento de responsabilização direta de empresas e sócios, muitas vezes sem a observância do rigor probatório exigido pelo art. 50 do CC.

Autonomia patrimonial e função econômica

A autonomia patrimonial não é um privilégio, mas instrumento de política econômica. Como ensina Fábio Ulhoa Coelho, a separação entre o patrimônio social e o pessoal dos sócios é condição para a liberdade de iniciativa e a expansão dos negócios.

Quando o Judiciário relativiza essa autonomia sem a devida comprovação de abuso, fragiliza a própria lógica do sistema empresarial, criando um cenário de insegurança e imprevisibilidade.

O risco de que decisões judiciais tratem grupos legítimos de empresas como se fossem uma única pessoa jurídica, apenas porque compartilham endereço, gestão ou fluxos operacionais, gera incerteza e desestimula o investimento.

O conceito técnico de confusão patrimonial

De acordo com o art. 50 do CC, a confusão patrimonial se caracteriza pela ausência de separação entre o patrimônio do sócio e da sociedade, evidenciada por práticas como o pagamento, pela empresa, de obrigações pessoais do sócio, ou pela transferência de ativos sem causa legítima.

Trata-se de situação fática e excepcional, que requer demonstração concreta de mistura de patrimônios. A mera coincidência de sócios, o compartilhamento de estrutura ou a existência de controle comum não configuram, por si sós, confusão patrimonial.

A jurisprudência, contudo, tem ampliado esse conceito. Em muitos casos, a constatação de "grupo econômico" ou a simples integração contábil têm sido suficientes para justificar a solidariedade. Essa elasticidade interpretativa, embora motivada por razões pragmáticas de efetividade, compromete a coerência dogmática do instituto.

Imagine-se uma situação em que duas empresas, operando em um mesmo centro logístico para otimizar custos, são tratadas como devedoras solidárias por uma dívida de apenas uma delas, sem que haja prova de qualquer transferência de valores ou pagamento de despesas cruzadas.

O risco da banalização e a inversão do ônus da prova

A confusão patrimonial é um pressuposto de exceção, e não um atalho para alcançar bens de terceiros. Quando o juiz presume sua ocorrência sem prova robusta, inverte-se indevidamente o ônus da prova, transformando a autonomia jurídica em mera formalidade.

Como adverte Modesto Carvalhosa, “a comunhão de interesses entre sociedades coligadas não constitui confusão patrimonial, salvo quando há deturpação deliberada da forma societária para ocultar bens ou fraudar credores."

Essa distinção é fundamental: a unidade econômica não equivale à unidade patrimonial. Grupos empresariais lícitos, organizados por razões estratégicas e operacionais, não podem ser confundidos com estruturas artificiais criadas para fraudar terceiros.

Boas práticas e governança como antídoto

Para evitar a presunção indevida de confusão patrimonial, é indispensável que as empresas adotem mecanismos de governança jurídica e contábil, tais como:

A transparência e a documentação adequada não apenas reduzem riscos de responsabilização, como reforçam a credibilidade perante credores, investidores e órgãos judiciais.

Conclusão

A confusão patrimonial é instrumento de tutela excepcional. Sua aplicação deve permanecer submetida ao princípio da proporcionalidade e à prova cabal da mistura de patrimônios.

Quando transformada em presunção genérica ou em argumento de conveniência processual, perde sua função corretiva e passa a ameaçar a própria lógica da pessoa jurídica, comprometendo a segurança jurídica e a estabilidade das relações empresariais.

O equilíbrio entre efetividade e previsibilidade é o que distingue o Direito como ciência e como instrumento de confiança social. Preservar a autonomia patrimonial, portanto, não é proteger o abuso, mas resguardar o ambiente jurídico que permite que a atividade empresarial floresça. Afinal, a previsibilidade não é um mero detalhe dogmático, mas o alicerce sobre o qual se constrói um ambiente de negócios saudável e competitivo.

Alonso Santos Alvares

O advogado é sócio da Alvares Advogados, escritório de advocacia especializado nas mais diversas frentes do Direito Empresarial, Civil, Trabalhista e Tributário.

Fernanda Tosi

Advogada pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil, integrante do núcleo cível e empresarial do Alvares Advogados, escritório com atuação em Direito Empresarial, Cível, Trabalhista e Tributário.

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