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Rapto fetal: Um padrão delitivo em crescimento

Do ponto de vista epidemiológico, o rapto fetal, ou sequestro cesariano, trata-se de um crime extremamente infrequente.

23/10/2025
Hewdy Lobo Ribeiro , Ana Carolina Schmidt de Oliveira e Elise Karam Trindade

Do ponto de vista epidemiológico, o rapto fetal, ou sequestro cesariano, trata-se de um crime extremamente infrequente. Por exemplo, nos Estados Unidos, constitui cerca de 6% dos casos de sequestro de recém-nascidos nos Estados Unidos (Centro Nacional para Crianças Desaparecidas e Exploradas, NCMEC, 2021).

Naeem et al. (2022) realizaram o mais completo levantamento de casos de rapto fetal até a data desta publicação. Identificaram 36 casos documentados no mundo desde o primeiro registro em 1974 até maio de 2022. Desses, a grande maioria ocorreu nos Estados Unidos (28 casos); fora dos EUA, houve apenas 8 casos relatados até então, distribuídos entre Brasil (2 casos), África do Sul (3), Colômbia (1), Hong Kong (1) e México (1). Vinte e seis das vítimas morreram durante os ataques, evidenciando a alta letalidade envolvida, e 11 casos também resultaram na morte dos bebês.

Após 1974, novos incidentes continuaram a ocorrer de forma esporádica, com apenas um caso nos anos 1980 e poucos nos anos 1990. A incidência aumentou após os anos 2000, possivelmente pelo aumento de segurança nos hospitais para evitar o sequestro de recém-nascidos, e pela facilitada pela divulgação na mídia e na internet, que pode ter fornecido modelos ou “inspiração” para imitadoras (PORTER, 2020). Redes sociais e plataformas online hoje desempenham um papel tanto na seleção de vítimas, que são abordadas em geral com a oferta de presentes e doações para o bebê, quanto na preparação das farsas, por exemplo, permitindo obter facilmente ultrassonografias falsas, imagens de exames.

Em praticamente todos os 36 relatos documentados e estudados por Naeem et al (2022), as agressoras são mulheres, em raras ocasiões houve cúmplices na execução ou encobrimento. Em apenas 11 casos as mulheres apresentavam uma obsessão por ter um bebê próprio, enquanto 16 já eram mães de filhos vivos no momento da prática do crime, o que contribui para a crítica da ideia que este tipo de crime ocorra apenas pelo desejo e instinto de ser mãe.

Apesar de não haver um padrão único de estado civil, chama atenção que em grande parte dos casos a mulher tinha um parceiro romântico atual de quem ela desejava reconhecimento ou cuja atenção queria manter (WELNER, BURGESS, O`MALLEY, 2021a).  O medo do abandono ou de fracassar no papel social de mulher/mãe é apontado em vários casos como um gatilho significativo. Estima-se que em cerca de 90% das ocorrências nos EUA a perpetradora estava motivada, ao menos em parte, pelo intuito de agradar ou manter um parceiro romântico, apresentando-lhe um filho “deles” (NAEEM et al., 2022).

As perpetradoras estão na faixa etária entre 19 e 40 anos (WELNER, BURGESS, O`MALLEY, 2021b), correspondente à idade reprodutiva ativa, quando é crível socialmente que possa estar grávida e desejando filhos. Não parece haver uma correlação forte com pobreza ou riqueza, há desde mulheres de comunidades rurais com baixa escolaridade até outras de contexto urbano com nível superior.

Muitas vezes, a agressora consegue passar despercebida até o crime, sem histórico criminal prévio sério, o que por vezes surpreende a comunidade. Em alguns casos, vizinhos e amigos descreviam a mulher como “gentil, normal, boa mãe (se já tinha filhos)”, o que indica que elas podem funcionar socialmente sem levantar suspeitas significativas durante os meses de encenação (NAEEM et al., 2022).

Padrões de comportamento 

Esse tipo de transgressão tem detalhes únicos em cada caso, contudo apresenta padrões nítidos. Em quase todos os casos reportados, a agressora age de forma premeditada e deliberada: simula a gravidez e interage com uma gestante com o intuito de aproximação para retirar o feto para si em momento próximo da data prevista para o parto, por meio de uma “cesariana” planejada com antecedência.  

Quase todas as autoras de rapto fetal fingiram estar grávidas por meses antes do crime (NAEEM et al., 2022). Essa encenação é minuciosa: elas anunciam a gravidez para familiares e amigos, podem exibir exames falsos de pré-natal obtidos pela internet, usam roupas de gestante, compram enxoval de bebê, fazem chá de bebê, chá revelação do sexo, fazem publicações em redes sociais sobre a gestação, e até alteram a aparência física para parecerem grávidas, usando enchimentos ou ganhando peso de propósito. Essa fase preparatória estabelece o contexto que depois dará verossimilhança ao aparecimento repentino do bebê.

Estudos forenses identificaram uma estrutura típica em sete etapas, um modus operandi para a execução do crime (WELNER, BURGESS, O`MALLEY, 2021b):

  1. Seleção e contato com a vítima: A criminosa identifica uma mulher grávida no estágio que lhes interessa e aproxima-se dela, muitas vezes fingindo amizade ou solidariedade. Pode ser alguém do círculo social, como uma amiga, vizinha, colega de trabalho, familiar, ou mesmo uma desconhecida abordada pessoalmente ou via redes sociais. É comum oferecer ajuda, presentes/doações para o bebê, ajuda financeira, convites para eventos, entre outros, como isca para ganhar a confiança da gestante.
  2. Preparação de instrumentos: A agressora assegura-se de ter os meios para subjulgar a vítima e realizar a cesariana. Isso inclui obter facas, bisturis, objetos contundentes, materiais para estrangulamento ou sufocamento, e eventualmente medicamentos sedativos ou outros instrumentos necessários. Há registros de criminosas que estudaram técnicas de cesariana em manuais médicos, programas de TV ou internet para saber proceder a “cirurgia”.
  3. Escolha do local: Geralmente é selecionado um local isolado ou controlado pela criminosa, onde ela possa atacar sem interrupção e eventualmente ocultar o corpo da mãe. Pode ser a residência da própria agressora, um local ermo ou até a casa da vítima em algumas ocasiões.
  4. Subjugação da mãe: A escolha do dia do crime costuma coincidir com a “data prevista de parto” da agressora. A confiança estabelecida permite atrair a vítima a uma posição vulnerável, facilitando o ataque surpresa. Os métodos variam: um golpe repentino na cabeça da vítima, estrangulamento, sufocação ou violência com armas brancas para dominar a resistência.
  5. Extração e sequestro do recém-nascido: Com a vítima neutralizada, procede-se à cesariana improvisada. Apesar de todo o planejamento, a execução em si é brutal e sem sofisticação cirúrgica. Este procedimento sem cuidados médicos, frequentemente resulta em ferimentos graves internos na gestante. Ademais, as condições anti-higiênicas e o estresse do parto forçado muitas vezes comprometem a sobrevivência do bebê; não raro, a criança nasce em estado grave ou até sem vida. Após remover o feto, vivo ou não, a agressora foge com o bebê.
  6. Descarte ou ocultação do corpo da vítima: Para atrasar a descoberta do crime, em muitos casos, a mãe, já falecida ou agonizante é deixada no local ou tem seu corpo ocultado, como debaixo de camas, latas de lixo, covas rasas, entre outros.
  7. Apropriação: A criminosa então busca apresentar o bebê como filho legítimo. Para isso, ela pode se dirigir a um hospital afirmando que acabou de dar à luz em casa (alegando parto emergencial), ou simplesmente anunciar a conhecidos e familiares que o bebê nasceu. É comum que ela busque atendimento médico para a criança, especialmente se apresenta problemas de saúde, ao mesmo tempo em que evita ser examinada pelos médicos. Algumas raptoras chegam a encenar a condição de puérpera, por exemplo, simulando hemorragia pós-parto ou fazendo cortes superficiais em si mesmas para imitar feridas de cesárea, tudo para sustentar a farsa do seu parto.

Comumente a polícia é acionada quando a mulher comparece ao hospital alegando parto domiciliar emergencial. Os profissionais de saúde costumam desconfiar ao notar que não há sinais físicos condizentes com parto recente: útero não contraído, ausência de ferimentos compatíveis, falta de produção de leite, entre outros. Essas incongruências frequentemente levam à descoberta do crime poucas horas depois, quando é feita a denúncia pela equipe médica. Em outros casos, quando a perpetradora simplesmente leva o bebê para casa, a descoberta pode demorar um pouco mais, até que o corpo da vítima seja achado ou que alguma denúncia surja.

Quando confrontadas por autoridades, as reações variam. Muitas inicialmente negam envolvimento e insistem na história fictícia, afirmando que o bebê é delas e que a vítima foi apenas alguém que desapareceu, entre outras justificativas. Porém, diante de evidências forenses, como o corpo da mãe encontrado, inconsistências médicas, o DNA do bebê, a maioria acaba confessando.

Considerações finais

O rapto fetal, embora raro em termos epidemiológicos, apresenta elevada gravidade pela brutalidade do modus operandi, pela alta letalidade associada, pelas consequências psicológicas impostas a familiares e pessoas próximas, além do impacto social que gera, seja pela insegurança transmitida às gestantes, seja pelo abalo emocional na população em geral.

Do ponto de vista médico-hospitalar, é fundamental que equipes de pronto atendimento, obstetrícia e neonatologia estejam atentas a sinais de alerta, como ausência de evidências físicas compatíveis com gestação ou parto e condutas dissimuladas da suposta puérpera sobre o parto domiciliar. O reconhecimento precoce desses indícios é decisivo para acionar rapidamente protocolos de notificação e segurança, colaborando com as autoridades policiais e potencializando as chances de preservar a vida da mãe e do recém-nascido.

Na perspectiva policial, é fundamental que os agentes de segurança conheçam os padrões comportamentais característicos das autoras desse crime, de modo a possibilitar uma resposta investigativa e pericial ágil, aumentando as possibilidades de localização da vítima e do bebê com vida.

Sob a perspectiva judicial, trata-se de delito complexo, frequentemente marcado pelo concurso de crimes, como homicídio, tentativa de homicídio, ocultação de cadáver, entre outros, circunstância que exige exame jurídico atento e criterioso. Já no campo pericial psiquiátrico e psicológico, evidencia-se a necessidade de compreender as motivações subjacentes, muitas vezes relacionadas a dinâmicas afetivas e relacionais, ou ainda a aspectos de personalidade e saúde mental, os quais podem ou não ter implicações na responsabilização penal.

Assim, a análise do rapto fetal demanda uma abordagem necessariamente interdisciplinar, articulando saberes médicos, psicológicos, policiais, jurídicos e sociais. Apenas por meio dessa integração será possível fomentar políticas de prevenção, aprimorar protocolos de investigação e assegurar uma resposta penal proporcional à gravidade de um crime que, embora infrequente, produz consequências devastadoras.

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NAEEM, I.; MATEEN, R.M.; HUSSAIN, M.; AFZAL, M.S.; TARIQ, A.; SAQIB, M.A.; PARVEEN, R. Fetal abduction: historical perspectives, methodology, and motives. Minerva Forensic Medicine, v.142, n.1, 2022, p.1-12.

NCMEC. Analysis of Infant Abduction Trends. National center for missing & exploited children. 2021. Disponível em:  https://www.missingkids.org/dcontent/dam/missingkids/pdfs/ncmec-analysis/

PORTER T. Caesarean Kidnapping: Maternal Instinct, Malingering and Murder. In: Ruthven A, Madlo G, editors. Illuminating the Dark Side: Evil, Women and the Feminine. Oxford: Inter-Disciplinary Press; 2020, p. 3–17.

WELNER, Michael; BURGESS, Ann; O’MALLEY, Kate. Psychiatric and legal considerations in cases of fetal abduction by maternal evisceration. Journal of Forensic Sciences, v.66, n.5, 2021a, p.1805-1817.

WELNER, Michael; BURGESS, Ann; O’MALLEY, Kate. Fetal abduction by maternal evisceration: a planned homicide. Forensic Science International, v.329, 2021b, art. 111057.

Hewdy Lobo Ribeiro

Psiquiatra Forense (CREMESP 114681, RQE 300311), Membro da Comissão de Saúde Mental da Mulher da Associação Brasileira de Psiquiatria. Atuação como Assistente Técnico em avaliação da Sanidade Mental.

Ana Carolina Schmidt de Oliveira

Psicóloga (PUC Campinas e UNIR Espanha), especialista em dependência química (UNIFESP), máster em psicologia lega e forense (UNED Espanha).

Elise Karam Trindade

Elise Karam Trindade, psicóloga inscrita no CRP sob nº 06/205.826; especialista em Psicologia Jurídica e Neuropsicologia. Coordenadora da equipe de Psicologia Jurídica da Vida Mental.

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