Muito tem se discutido nos últimos anos sobre a criminalização de condutas relacionadas ao tráfico de drogas, especialmente no ambiente carcerário, onde a linha entre o ato preparatório e o início de execução do delito se mostra difusa e, por vezes, arbitrária. A jurisprudência recente do STJ tem conferido relevo a esse debate, especialmente ao reconhecer que o simples fato de o interno solicitar a entrega de entorpecentes a um familiar ou, especificamente, a sua companheira, não configura, por si só, qualquer dos verbos nucleares do art. 33 da lei de drogas.
A tese vem sendo consolidada em sucessivos habeas corpus, recursos especiais e agravos, com base na distinção clássica entre atos preparatórios e executórios. Em 2023, foram 11 decisões monocráticas em habeas corpus e recursos em habeas corpus reconhecendo a atipicidade da conduta, sendo 36% dos casos patrocinados pela Defensoria Pública. Em 2024, houve expressivo avanço, com 50 decisões monocráticas, 60% da 5ª turma e 40% da 6ª turma, e 35% com atuação da DPE. Em 2025, até o início de setembro, foram 39 decisões monocráticas em HC, RHC, REsp e AREsp, com 47% dos pacientes assistidos pela DPU ou DPE.
Essa conclusão é correta. Solicitar a entrega de entorpecentes em unidade prisional não realiza nenhum dos verbos do art. 33 da Lei de Drogas. Tampouco se pode ampliar o verbo importar para abranger solicitar, sob pena de interpretação extensiva ou analogia em prejuízo do réu, ambas vedadas. A leitura é estrita. Solicitar não é importar, trazer, adquirir, guardar ou ter em depósito.
A leitura cronológica de casos recentes confirma o padrão decisório e evidencia, em cada situação, quem efetivamente levou a droga e em que contexto. No HC 965390, de relatoria do ministro Og Fernandes (DJe 5/3/2025), quem levou foi a companheira do interno, presa ao tentar ingressar com droga disfarçada em cigarros antes de qualquer entrega, reconhecendo-se a inexistência de atos executórios pelo apenado e a atipicidade da mera solicitação. No HC 986484, de relatoria do ministro Reynaldo Soares da Fonseca (DJe 13/3/2025), o interno apenas solicitou à companheira e não houve entrega, permanecendo em ato preparatório impunível. No AREsp 2791847, relatoria do ministro Joel Ilan Paciornik (DJe 21/3/2025), examinou-se remessa postal ao presídio sem prova segura de autoria ou participação do destinatário e sem entrega efetiva, rechaçando-se a responsabilização objetiva. No HC 990688, relatoria do ministro Sebastião Reis Júnior (DJe 28/3/2025), também nada ilícito foi encontrado com o acusado, impondo absolvição. No REsp 2206760, relatoria do ministro Rogerio Schietti (DJe 30/6/2025), quem tentou ingressar foi a companheira, com apreensão na revista, assentando-se que solicitar não inaugura o iter criminis do art. 33. No AREsp 2290510, relatoria do ministro Messod Azulay Neto (DJe 05/8/2025), embora houvesse indícios de destinação ao agravante, quem levou foi a companheira, a droga não chegou à posse do interno e a solicitação não efetivada foi tratada como ato preparatório. No HC 1022619, relatoria do ministro Antonio Saldanha Palheiro (DJe 8/8/2025), foi usado o cadastro do genitor do interno e o entorpecente foi apreendido antes do acesso do destinatário, reconhecendo-se a atipicidade. No HC 918476, de relatoria do ministro Ribeiro Dantas (DJe 13/8/2025), quem levou foi a companheira, apreendidos antes da entrega e sem prova de propriedade pelo interno, impondo-se a atipicidade.
Esse entendimento é tecnicamente correto e preserva a legalidade estrita. O problema, porém, é que, enquanto o interno costuma ser absolvido por atipicidade da mera solicitação, muitas das mulheres e familiares que atenderam ao pedido seguem processadas e condenadas com base em raciocínios de coautoria ancorados, às vezes, no vínculo afetivo ou na posse fugaz do objeto durante a revista. Quando o Judiciário se contenta com esse corte formal, perpetua-se a destruição silenciosa do núcleo familiar, com impacto direto sobre crianças e dependentes, e reforça-se uma seletividade penal que recai quase sempre sobre mulheres em contextos de vulnerabilidade.
É nesse ponto que se propõe uma mudança metodológica, sem defender impunidade. Antes de qualquer condenação do familiar que levou a substância, é indispensável uma verificação séria e individualizada da exigibilidade concreta de conduta diversa e, caso não se reconheça a exclusão da culpabilidade, apenas em hipóteses realmente excepcionais, a avaliação da derrotabilidade do enunciado normativo.
Culpabilidade não é um ritual, é um limite material ao poder de punir. Na inexigibilidade como causa supralegal de exclusão de culpabilidade, o juízo de reprovação é impedido quando o contexto concreto retira do agente a possibilidade real de agir de outro modo. A doutrina é clara. É legítima a admissão de excludentes supralegais e o controle da culpabilidade a partir da dignidade da pessoa humana e da individualização da pena (Queiroz, 2020, p. 393-394). A exigibilidade deve ser aferida à luz da normalidade das circunstâncias do fato, reconhecendo que, em ambientes de dependência econômica, submissão emocional, temor e ausência de alternativas razoáveis, não se pode exigir resistência heroica de quem ingressa com o objeto no presídio para atender à ordem do companheiro preso. Nesses contextos, a responsabilização automática viola o standard probatório, aproxima-se da responsabilização objetiva e ignora a realidade social.
Como bem observam Martinelli e Schmitt de Bem, a culpabilidade penal será sempre o resultado da equação entre a culpabilidade do ato reduzida pela culpabilidade pela vulnerabilidade, jamais podendo a pena eventualmente aplicada exceder o limite máximo de culpabilidade verificável em razão do grau de esforço empreendido pelo agente para alcançar a situação de vulneração (Direito Penal – Parte Geral: Lições Fundamentais, 8ª ed., D’Plácido, 2023, p. 840).
Para a responsabilização de esposas, companheiros, genitores ou filhos, o exame começa pela culpabilidade, com verificação da exigibilidade concreta de conduta diversa. Se o julgador não reconhecer a inexigibilidade e, ainda assim, a aplicação literal da regra conduzir a resultado materialmente injusto e incompatível com a Constituição, admite-se, em caráter excepcional, a derrotabilidade para afastar a consequência normativa no caso singular, com motivação qualificada. O STJ já explicitou linguagem e alcance desse espaço excepcional. No REsp 1.953.607/SC (Tema 1.120), assentou-se, nos termos do voto do relator ministro Ribeiro Dantas, que derrotabilidade é o ato pelo qual uma norma deixa de ser aplicada, mesmo presentes as condições formais de incidência, para prevalecer a justiça material no caso concreto (DJe 20/09/2022). Em reforço, o AgRg no REsp 1.919.722/SP registrou que, quando a literalidade colide com princípios estruturantes, impõe-se a prevalência do que é justo mediante técnicas de interpretação constitucional (DJe 20/8/2021). O AgRg no AREsp 2.389.611/MG rememorou que o STF, em hard cases, já deixou de aplicar tipo penal no caso concreto, a exemplo do HC 124.306, da Primeira Turma, julgado em 9/8/2016 (DJe 17/03/2017), demonstrando a possibilidade excepcional de solução orientada pela justiça material.
O percurso argumentativo é simples e obrigatório. Primeiro, interpretação restritiva da norma penal. Solicitar não é importar, trazer, adquirir, guardar ou ter em depósito. Segundo, controle de culpabilidade, com exame efetivo da exigibilidade concreta de conduta diversa para quem levou a droga. Terceiro, se o julgador não reconhecer a inexigibilidade e a aplicação literal do tipo penal ainda produzir resultado incompatível com a justiça material, em situação excepcional, cogita-se da derrotabilidade como técnica subsidiária para o caso concreto, sempre com fundamentação densa.
Há aqui uma inflexão metodológica importante. Quando a literalidade da norma se torna um instrumento de injustiça, deve ceder lugar à interpretação que melhor concretize os direitos fundamentais. Não se trata de negar a aplicação da lei penal, mas de reconhecer que sua função primeira não é punir a qualquer custo, e sim garantir a paz social com justiça. Quando o STJ absolve o apenado por reconhecer a inexistência de início de atos executórios, mas mantém a condenação da companheira que, sob ordem direta e em contexto de falta real de alternativas, ingressou na unidade prisional com o entorpecente, a decisão judicial destrói silenciosamente o núcleo familiar, multiplica a dor da pena, penaliza afetos e esvazia a função protetiva do Estado em relação às mulheres em situação de vulnerabilidade.
Não se sustenta impunidade nem absolvições indistintas. Defende-se verificação rigorosa, caso a caso, sobre a exigibilidade concreta de conduta diversa e, se necessário, a aplicação da teoria da derrotabilidade. Antes de qualquer responsabilização penal, o Judiciário deve enfrentar essas questões com seriedade, sob pena de impor condenações divorciadas da realidade material e constitucional. O Direito Penal, quando bem aplicado, também sabe recuar. E recuar, nessas hipóteses, é proteger vidas que já foram suficientemente violadas.
Por isso, em casos de tráfico no cárcere com atuação de familiares, a combinação entre tipicidade restrita, exame real da exigibilidade e eventual derrotabilidade não é concessão, é técnica de contenção de danos sociais. Aplicada com parcimônia e motivação qualificada, impede punições por arrasto e evita a destruição silenciosa do núcleo familiar, sobretudo quando há crianças, idosos e dependentes em vulnerabilidade. O compromisso constitucional do julgador é fazer justiça no caso concreto sem romper laços essenciais de cuidado, com prova suficiente e atenção às contingências humanas que o processo, muitas vezes, não capta de imediato.
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Referências
Queiroz Paulo. Direito Penal – Parte Geral. 14 ed. Salvador JusPodivm 2020.
Martinelli João Paulo Orsini. De Bem Leonardo Schmitt. Direito penal parte geral lições fundamentais. 8 ed. Belo Horizonte São Paulo D’Plácido 2023.
Jurisprudência citada
HC 965390 Rel. Min. Og Fernandes Sexta Turma (DJe 05/03/2025) decisão monocrática.
AREsp 2791847 Rel. Min. Joel Ilan Paciornik Quinta Turma (DJe 21/03/2025) decisão monocrática.
HC 986484 Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca Quinta Turma (DJe 13/03/2025) decisão monocrática.
HC 990688 Rel. Min. Sebastião Reis Júnior Sexta Turma (DJe 28/03/2025) decisão monocrática.
REsp 2206760 Rel. Min. Rogerio Schietti Sexta Turma (DJe 30/06/2025) decisão monocrática.
AREsp 2290510 Rel. Min. Messod Azulay Neto Quinta Turma (DJe 05/08/2025) decisão monocrática.
HC 1022619 Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro Sexta Turma (DJe 08/08/2025) decisão monocrática.
HC 918476 Rel. Min. Ribeiro Dantas Quinta Turma (DJe 13/08/2025) decisão monocrática.
REsp 1.953.607/SC Tema 1.120 Rel. Min. Ribeiro Dantas Terceira Seção (DJe 20/09/2022).
AgRg no REsp 1.919.722/SP Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca Quinta Turma (DJe 20/08/2021).
AgRg no AREsp 2.389.611/MG Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca Quinta Turma (DJe 10/04/2024).
HC 124306 STF Primeira Turma j. 09/08/2016 (DJe 17/03/2017).