Migalhas de Peso

Pejotização: O custo social e econômico da fraude

Luciane Webber Toss e Adriana L. S. Lamounier Rodrigues

Fraude na contratação reduz renda, aumenta desigualdade e prejudica especialmente mulheres, comprometendo proteção social e direitos básicos.

24/10/2025
Luciane Webber Toss e Adriana L. S. Lamounier Rodrigues

“Por trás da aparência da autonomia

esconde-se uma reapropriação pelas direções

e pelas chefias da autonomia dos assalariados” (LINHART, 2007, p. 121). 

1. A reconfiguração do vínculo e o esvaziamento dos direitos

No primeiro trimestre de 2025, o Brasil registrou a abertura de 1.407.010 novos CNPJs, dos quais 78% correspondem a MEIs, segundo o Sebrae - Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas1. Esse crescimento representa um aumento de 35% no número de MEIs em comparação ao mesmo período de 2024, enquanto as MPEs - micro e pequenas empresas apresentaram uma alta de 28%.

Nesse contexto de aumento exponencial de ‘microempreendedores’, o Tema de repercussão geral de 1.389 (ARE 1.532.603) do STF discute a competência e ônus da prova nos processos que discutem a existência de fraude no contrato civil/comercial de prestação de serviços e a licitude da contratação de pessoa jurídica ou trabalhador autônomo para essa finalidade (prática conhecida como pejotização).

A pejotização é a substituição da relação de emprego pela contratação via pessoa jurídica individual e atualmente representa uma das faces mais emblemáticas da precarização das relações de trabalho brasileiras.

Trata-se de um fenômeno que “consiste na contratação de trabalhador subordinado como sócio ou titular de pessoa jurídica, visando mascarar vínculo empregatício por meio da formalização contratual autônoma, em fraude à relação de emprego”2. E, ainda de acordo com Lorena Porto e Paulo Vieira3, um neologismo que transforma artificialmente um empregado em pessoa jurídica.

Na perspectiva do Direito do Trabalho, um direito tutelar, os problemas são múltiplos, mas sobretudo relacionados à violação direta ao princípio da primazia da realidade (segundo o qual a essência fática deve prevalecer sobre a forma contratual) e o incentivo à fraude institucionalizada, a partir de interpretações liberais e economicistas que desconsideram a função social do trabalho e os princípios estruturantes da CLT4.  

Ou seja, a pejotização ou ‘cnpejotização’ das pessoas trabalhadoras, destrói uma rede de tutelas que tem como objetivo primordial respeitar limites mínimos de exploração do trabalho e preservar a dignidade e a integridade física, moral e emocional da pessoa.

O fenômeno, ainda que travestido de “modernização” ou “liberdade econômica”, causa danos mensuráveis: queda da renda, ampliação da desigualdade, evasão previdenciária e enfraquecimento da Justiça do Trabalho e da negociação coletiva5. O trabalho que não garante a subsistência deprime e adoece as pessoas trabalhadoras.

Esses efeitos, porém, não se distribuem de forma neutra, uma vez que atingem de modo mais severo as mulheres trabalhadoras, sobretudo gestantes e mães, que enfrentam dupla vulnerabilidade: a discriminação de gênero e a perda da rede protetiva que lhes assegurava estabilidade, licença e seguridade social6.

2. O custo econômico e social da pejotização

Estudos do CESIT7 revelam que a pejotização irrestrita provocaria uma redução de até 20% da renda disponível dos trabalhadores, além de queda de 0,5 ponto percentual no PIB real e um aumento de 10 pontos percentuais no desemprego. A eliminação de direitos como 13º salário, férias, FGTS, licença-maternidade e seguro-desemprego geraria, no curto prazo, um aparente “alívio” para o empregador, mas a longo prazo comprometeria o dinamismo econômico ao contrair o consumo e enfraquecer os fundos públicos de seguridade.

Além disso, a pejotização amplia a desigualdade social, com aumento projetado de até 10 pontos no índice de Gini, ao concentrar renda nas empresas e reduzir o poder de compra das famílias8. A precarização é, portanto, um pacto com a mediocridade econômica, que destrói a base da economia real e, consequentemente compromete o desenvolvimento do país. Nas palavras de Krein, Manzano, Welle e Petrini, “trata-se de uma solução falaciosa que sacrificaria o presente e comprometeria a vida das próximas gerações”9.

3. O impacto sobre a maternidade e as mulheres trabalhadoras

Se a pejotização já é socialmente destrutiva, ela se torna ainda mais cruel quando aplicada às mulheres trabalhadoras grávidas ou mães.  A perda do  regime jurídico do emprego compromete direitos securitários e trabalhistas fundamentais para elas.  A perda da estabilidade no emprego durante e pós gestação e o não pagamento de salário-maternidade e demais coberturas previdenciárias farão com que a mulher tenha que optar entre a maternidade e sua renda (regra geral, de subsistência).

A  pejotização reforça o ciclo de exclusão de gênero no mercado de trabalho. As empresas, ao preferirem contratar PJs, eliminam custos associados à maternidade e ao cuidado, penalizando justamente as trabalhadoras que mais necessitam de proteção legal. O resultado é uma feminização da precariedade e da pobreza: mulheres pressionadas a aceitar contratos frágeis, sem proteção contra demissão, assédio ou sobrecarga.

A aplicação da pejotização irrestrita representa uma violação concreta ao direito fundamental à maternidade e uma forma estrutural de marginalização das mulheres no acesso e na permanência no mercado de trabalho.

Ao desconstituir os mecanismos protetivos previstos na Constituição Federal (que asseguram à mulher trabalhadora condições especiais de proteção à maternidade) , essa prática fere também compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro, como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) e a Convenção 103 da OIT - Organização Internacional do Trabalho10, que determinam a adoção de políticas efetivas de amparo à gestante, à parturiente e à lactante.

O discurso do empreendedorismo feminino mascara essa realidade ao exaltar uma abstrata e inexistente “autonomia feminina”11, quando na prática trata-se apenas da supressão da rede de proteção. A retórica da “mulher empreendedora de si mesma” esconde o fato de que muitas são forçadas à informalidade ou à pejotização compulsória para manter algum rendimento, em um cenário marcado pela divisão sexual do trabalho e pela sobrecarga de cuidados.

4. Resistência e reconstrução

Ao cogitar a possibilidade de legalizar a fraude a contrato de trabalho, através da pejotização, o  STF atua em uma concepção política onde o nivelamento social, sobretudo o que regula o trabalho e as relações trabalhistas, deve se dar a partir da imposição da ideia de liberdade econômica e de decisão individual, sob a  justificativa de desenvolvimento e progresso econômico. Como se quem vive do trabalho de subsistência, como a maior parte das pessoas trabalhadoras no Brasil, gozasse de autonomia privada para negociar condições do contrato de trabalho.

Isso legitima e corrobora a ideia de que um sistema de direitos e garantias para as pessoas que vivem do trabalho  é o responsável pelo desemprego, que o direito do trabalho não deve se sobrepor à liberdade contratual e aos interesses do mercado e, por fim, que os sindicatos e o direito de greve são reminiscências de décadas passadas que precisam ser modernizados e superados.

O STF faz a inversão lógica protetiva e confunde o direito de empreender com o direito de explorar sem limites.

A pejotização não é sinônimo de modernização: é a institucionalização da fraude. Seus efeitos ultrapassam o campo jurídico e atingem o núcleo da coesão social e econômica do país. A falsa autonomia oferecida à pessoa trabalhadora esconde a vulnerabilidade e o isolamento; e, no caso das mulheres, intensifica desigualdades estruturais, aprofunda a exclusão e ataca direitos conquistados duramente por elas.

O combate à pejotização exige resistência jurídica, política e pedagógica. Cabe à Justiça reafirmar o princípio da primazia da realidade, ao Estado garantir proteção social universal, e à sociedade civil denunciar a narrativa falaciosa da “liberdade contratual” que esconde a precarização.

Se a proteção for suprimida, o direito do trabalho também o será. Então é importante que se perceba que o que se passa neste julgamento, não é alterar um modo ou um regime contratual específico e sim de extinguir o direito do trabalho.

Em última instância, trata-se de uma disputa civilizatória: entre um país que valoriza o trabalho digno e outro que legitima o simulacro da liberdade em meio à exploração. A escolha determinará não apenas o futuro das relações de trabalho, mas também o tipo de sociedade que o Brasil deseja ser : uma sociedade democrática que valoriza o trabalho digno ou que coloca a exploração do poder econômico acima de tudo.

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1 BRASIL, 2025. Disponível em: https://www.gov.br/secom/pt-br/assuntos/noticias/2025/04/brasil-registra-abertura-de-1-4-milhao-de-pequenos-negocios-no-primeiro-trimestre-do-ano. Último acesso em: 13. out. 2025.

2 PORTO, Lorena Vasconcelos; VIEIRA, Paulo Joarês. A “pejotização” na reforma trabalhista e a violação às normas internacionais de proteção ao trabalho. JusLaboris, 2019. Disponível em: https://hdl.handle.net/20.500.12178/162073. Acesso em: 13 out. 2025.

3 PORTO, Lorena Vasconcelos; VIEIRA, Paulo Joarês. A “pejotização” na reforma trabalhista e a violação às normas internacionais de proteção ao trabalho. JusLaboris, 2019. Disponível em: https://hdl.handle.net/20.500.12178/162073. Acesso em: 13 out. 2025.

4 RODRIGUES, Adriana L. S. Lamounier; BRANT, José Caldeira. Relação de emprego "versus" trabalho autônomo: fim do princípio da primazia da realidade?. In: HORTA, D. A; FABIANO, I.M.A; KOURY, L.R.N; OLIVEIRA, S.G. (Org.). Direito do Trabalho e Processo do Trabalho: Reforma Trabalhista: principais alterações. 1ed.São Paulo: LTr, 2018, v. , p. 167-173.

5 KREIN, Dari; MANZANO, Marcelo; WELLE, Arthur; PETRINI, Gabriel. Pejotização: armadilha para o Brasil. Disponível em: https://outraspalavras.net/trabalhoeprecariado/pejotizacao-armadilha-para-brasil/. Acesso em 13.out.2025.

6 CARVALHO, Lívia. Empreendedoras ou precarizadas? Como a pejotização penaliza as mulheres. Ribeirão Preto, 2025. Disponível em https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-por-elas/431432/empreendedoras-ou-precarizadas-como-a-pejotizacao-penaliza-as-mulheres. Acesso em 13.out.2025.

7 WELLE, Arthru; PETRINI, Gabriel. Nota Técnica (2025) usando modelos baseados em agentes (ABM) para avaliar os efeitos da adoção ampla da pejotização. In: KREIN, Dari; MANZANO, Marcelo; WELLE, Arthur; PETRINI, Gabriel. Pejotização: receita para uma economia mais frágil. São Paulo, 2025. Disponível em: https://jornalggn.com.br/artigos/pejotizacao-receita-para-uma-economia-mais-fragil/. Último acesso em 13.out.2025.

8 KREIN, Dari; MANZANO, Marcelo; WELLE, Arthur; PETRINI, Gabriel. Pejotização: armadilha para o Brasil. Disponível em: https://outraspalavras.net/trabalhoeprecariado/pejotizacao-armadilha-para-brasil/. Acesso em 13.out.2025.

9 KREIN, Dari; MANZANO, Marcelo; WELLE, Arthur; PETRINI, Gabriel. Pejotização: armadilha para o Brasil. Disponível em: https://outraspalavras.net/trabalhoeprecariado/pejotizacao-armadilha-para-brasil/. Acesso em 13.out.2025.

10 PINTO, Luiza O. Ramos.  A precarização do trabalho das mulheres na perspectiva do tema 1389 do Supremo Tribunal Federal Brasileiro. Anais do X Congresso Internacional de Direitos Humanos de Coimbra, v. 10 n. 1 (2025).

11 CARVALHO, Lívia. Empreendedoras ou precarizadas? Como a pejotização penaliza as mulheres. Migalhas. Ribeirão Preto, 2025. Disponível em https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-por-elas/431432/empreendedoras-ou-precarizadas-como-a-pejotizacao-penaliza-as-mulheres. Acesso em 13.out.2025.

Luciane Webber Toss

Doutoranda em Direito e Mestra em Ciências Sociais pela UNISINOS, Especialista em Nuevos Rectos de Derecho Publico pela Universidad de Burgos (UBU, Burgos, Espanha) e em Derechos Humanos Laborales y Regulación del Trabajo en la Crisis, pela Universidad Castilla La Mancha (UCLM, Toledo, Espanha). É advogada trabalhista, assessora corporativa e consultora na área de gênero e direitos humanos. Integra os grupos de pesquisas Sindicalismo da UDF e Trabalho e Núcleo de Direitos Humanos da Unisinos e Capital: Retrocesso Social e Avanços Possíveis da UFGRS. Diretora da AJURD, conselheira da AGETRA e do MATI, integra o corpo docente da Escola da ABRAT. É membra da AAJ-Rama Brasil e da comissão feminista da ABRAT. Membra do IGT e da ABMCJ.

Adriana L. S. Lamounier Rodrigues

Advogada sócia do escritório Caldeira Brant Sociedade de Advocacia, com atuação especial em Direito Coletivo do Trabalho. Integrante do Corpo Docente da Escola Superior da ABRAT (Associação Brasileira da Advocacia Trabalhista). Diretora de Relações Institucionais da Comissão Estadual de Direito Sindical da OAB/MG. Professora de Direito do Trabalho em cursos de pós-graduação. Pós-Doutorado em Direito do Trabalho pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Doutora em Direito pela UFMG em cotutela com a Universidade Roma II Tor Vergata. Master em Direito do Trabalho pela Universidade Roma II Tor Vergata. Integrante do grupo de Pesquisa sobre Sindicalismo no Centro Universitário UDF e co-coordenadora do subgrupo Sindicalismo com perspectiva de gênero. Membra do IGT e da AMAT (Associação Mineira da Advocacia Trabalhista).

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