1. Introdução
A utilização de bens imóveis pertencentes à pessoa jurídica por seus sócios, administradores ou familiares é prática comum no contexto das sociedades patrimoniais e holdings familiares. Em muitos casos, tais imóveis são destinados a uso pessoal, familiar ou funcional, sem que disso decorra qualquer receita ou contraprestação financeira.
Apesar de eventuais interpretações fiscais mais amplas, é importante compreender que o mero uso do bem, sem vantagem econômica mensurável, não caracteriza fato gerador do Imposto de Renda. O ordenamento jurídico brasileiro adota o princípio da legalidade tributária e define de forma precisa o conceito de renda tributável, de modo que apenas acréscimos patrimoniais efetivos podem ser objeto de tributação.
2. Fundamentos normativos e conceito de renda
O art. 43 do CTN estabelece que o fato gerador do Imposto de Renda é a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica de renda e proventos de qualquer natureza, compreendendo apenas os acréscimos patrimoniais.
Dessa forma, para que o imposto incida, é indispensável que exista um aumento efetivo do patrimônio do contribuinte, o que não ocorre nas hipóteses em que o empresário utiliza bem da empresa sem contraprestação financeira.
O regulamento do Imposto de Renda, aprovado pelo decreto 9.580/18, reforça esse entendimento em diversos dispositivos. O art. 35, inciso II, trata das despesas suportadas por terceiros, afirmando que apenas aquelas que representem vantagem econômica constituem rendimento tributável. O art. 60, por sua vez, define a distribuição disfarçada de lucros, exigindo que haja benefício econômico indevido e redução patrimonial da pessoa jurídica.
Quando o uso do imóvel não implica pagamento, nem redução do patrimônio da empresa, e quando a pessoa física arca apenas com os encargos inerentes à conservação do bem, como IPTU, condomínio e seguro, não há acréscimo patrimonial nem vantagem econômica a ser tributada.
3. O princípio da legalidade e a vedação à ampliação da incidência
A Constituição Federal, em seu art. 150, inciso I, e o art. 97 do CTN, asseguram o princípio da legalidade tributária, segundo o qual nenhum tributo pode ser instituído ou cobrado sem previsão legal expressa.
A tentativa de incluir o uso de bem da empresa como hipótese de incidência do Imposto de Renda, por analogia ou presunção de vantagem, violaria diretamente esse princípio, uma vez que tal situação não está tipificada em lei como fato gerador.
O art. 108, §1º, do CTN reforça que a analogia não pode ser utilizada para criar obrigações tributárias. Assim, a tributação de um uso meramente patrimonial, sem geração de receita ou de disponibilidade econômica, extrapola os limites da legalidade e compromete a segurança jurídica.
Além disso, o art. 145, §1º, da Constituição Federal, determina que os tributos devem respeitar a capacidade contributiva do contribuinte. Como não há acréscimo de riqueza nem disponibilidade econômica, a incidência do imposto violaria também esse princípio fundamental.
4. Jurisprudência consolidada sobre a inexistência de fato gerador
A interpretação de que o uso de imóvel da empresa não gera tributação encontra respaldo na jurisprudência administrativa e judicial.
O Carf - Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, no acórdão 9101-002.181, de 2016, reconheceu que “o simples uso de imóvel da pessoa jurídica pelo sócio, sem transferência de recursos ou redução do patrimônio da sociedade, não caracteriza fato gerador do imposto de renda”.
O STJ, no RESp 1.161.467/RS, de relatoria do ministro Herman Benjamin, decidiu que “a incidência do imposto de renda depende da existência de acréscimo patrimonial efetivo e mensurável”. Tal entendimento reforça que o simples uso ou posse de um bem não representa renda, pois inexiste aumento de riqueza real.
Esses precedentes consolidam a posição de que o Imposto de Renda exige ganho econômico concreto e mensurável, não podendo recair sobre atos de administração patrimonial legítima.
5. A função patrimonial da célula cofre e a autonomia da pessoa jurídica
No contexto das holdings familiares, especialmente quando organizadas em sistemas de células, a célula cofre exerce função essencialmente patrimonial. Sua finalidade é centralizar e conservar os bens da família, garantindo a gestão eficiente e a proteção do patrimônio.
A utilização eventual de imóvel dessa célula por membro da família ou administrador insere-se no escopo da própria função patrimonial da sociedade e não constitui fato gerador de tributos.
O art. 49-A do CC, incluído pela lei 13.874/19 (lei da liberdade econômica), reconhece expressamente a autonomia patrimonial das pessoas jurídicas, determinando que “a pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores”. Esse dispositivo reforça a licitude da estrutura patrimonial e a separação entre propriedade e uso, desde que não haja desvio de finalidade nem confusão patrimonial.
Assim, o uso de imóvel da empresa por seu administrador ou familiar, dentro de uma estrutura societária lícita e formalizada, é manifestação regular do exercício do direito de propriedade e da liberdade de organização empresarial, e não hipótese de incidência tributária.
6. Conclusão
O uso de imóvel pertencente à pessoa jurídica por empresário, administrador ou familiar, quando não há contraprestação financeira nem vantagem econômica mensurável, não gera tributação de Imposto de Renda nem para a pessoa física nem para a pessoa jurídica.
Essa conclusão decorre da correta aplicação dos princípios da legalidade, da capacidade contributiva e da tipicidade fechada em matéria tributária, além da observância do conceito constitucional de renda, que exige acréscimo patrimonial efetivo.
A tentativa de tributar o uso de imóvel da empresa, sem entrada de receita ou benefício econômico, configuraria interpretação abusiva e incompatível com o sistema jurídico brasileiro. O Direito Tributário não deve presumir riqueza onde não há fato gerador, mas garantir segurança jurídica às estruturas patrimoniais lícitas, amparadas pela autonomia das pessoas jurídicas e pela liberdade econômica assegurada em lei.
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BRASIL. Código Tributário Nacional. Lei 5.172, de 25/10/1966.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
BRASIL. Decreto 9.580, de 22/11/18. Regulamenta a tributação, fiscalização, arrecadação e administração do Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza.
BRASIL. Instrução Normativa RFB 1.515, de 24/11/14. Dispõe sobre normas gerais de tributação das pessoas jurídicas.
BRASIL. Lei Complementar nº 214, de 16/1/25. Dispõe sobre o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e o Imposto Seletivo.
BRASIL. Lei 13.874, de 20/9/19. Institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica e altera dispositivos do Código Civil.
CARF. Acórdão 9101-002.181, sessão de 2016.
STJ. Recurso Especial 1.161.467/RS, Rel. Min. Herman Benjamin, 2ª turma, julgado em 3/8/10, DJe 13/9/10.