Em meio às grandes discussões sobre fundos e federalismo, um dos alertas é um problema crônico e muitas vezes invisível ao grande público: a gestão dos créditos tributários. Longe de ser um detalhe técnico, a forma como o Estado lida com os créditos que pertencem aos contribuintes revela uma disfunção profunda no sistema atual. A reforma tributária não apenas expõe essa ferida, mas cria uma urgência para que os Tribunais de Contas assumam uma nova e vital missão: fiscalizar a receita com o mesmo rigor com que fiscalizam a despesa.
O primeiro ponto fundamental é desmistificar a natureza do crédito tributário. Em um sistema não cumulativo como o do ICMS (e do futuro IBS/CBS), o crédito não é um favor, um subsídio ou um benefício concedido pelo governo. Ele é, por definição, a devolução de um imposto que já foi pago na etapa anterior da cadeia produtiva. Quando uma empresa se credita, ela está apenas abatendo do imposto que deve pagar o valor que já foi embutido no preço de seus insumos. Negar ou atrasar a devolução desse crédito significa, na prática, forçar a empresa a pagar o imposto duas vezes, transformando um tributo não cumulativo em um imposto "em cascata", punindo a produção e encarecendo o produto final.
Apesar dessa lógica clara, tornou-se uma prática comum de governos estaduais e da União reter ou dificultar a devolução desses créditos. O motivo é puramente de caixa: ao segurar o dinheiro que pertence às empresas, o Estado cria um "colchão financeiro" artificial, melhorando seus balanços de curto prazo. Essa prática, embora financeiramente conveniente para o gestor público, é uma afronta à segurança jurídica e à boa-fé, criando um ambiente de imprevisibilidade e desconfiança que prejudica todo o ambiente de negócios.
A reforma tributária torna essa situação ainda mais crítica. A legislação de transição estabelece uma regra alarmante: os créditos de ICMS acumulados pelas empresas que não forem homologados (reconhecidos oficialmente) pelos estados até o final de 2032 só serão devolvidos ao longo de 240 meses, ou seja, 20 anos.
Isso cria uma verdadeira bomba-relógio. Empresas que possuem bilhões em créditos legítimos correm o risco de ter seu capital de giro confiscado por duas décadas, simplesmente pela ineficiência ou pela má-fé da administração tributária em processar suas devoluções a tempo. É aqui que o papel dos Tribunais de Contas se torna não apenas importante, mas essencial.
Historicamente, os Tribunais de Contas concentraram seus esforços na fiscalização da despesa pública - auditando licitações, obras e a aplicação dos recursos. A gestão da receita, por outro lado, sempre foi vista como uma área de discricionariedade do Poder Executivo. A reforma tributária exige uma mudança radical dessa mentalidade.
A nova missão dos Tribunais de Contas é expandir seu escopo para fiscalizar ativamente a gestão da receita, garantindo que o Estado não apenas arrecade de forma eficiente, mas que também cumpra suas obrigações para com o contribuinte. Isso inclui:
- Auditar os estoques de créditos acumulados: Verificar por que os créditos não estão sendo devolvidos e se há represamento intencional;
 - Fiscalizar os processos de homologação: Garantir que os pedidos de ressarcimento sejam analisados com celeridade e de acordo com a lei, sem entraves burocráticos;
 - Responsabilizar gestores: Apurar e punir os responsáveis por políticas que resultem no empoçamento ilegal de créditos.
 
Ao assumir essa nova função, os Tribunais de Contas se tornam os guardiões da segurança jurídica e da Justiça fiscal. Eles deixam de ser apenas os fiscais do gasto para se tornarem os protetores da cidadania fiscal, garantindo que a relação entre o Estado e o contribuinte seja pautada pela lei e pelo respeito mútuo, e não pela conveniência política do caixa do governo.
Renaldo Rodrigues Junior
Advogado, bacharel em ciências jurídicas e sociais pela Universidade de Taubaté (2006), com Formação Pedagógica em História (FCE), Licenciado em Filosofia, Sociologia e Letras - Português/Espanhol pela UNICV, Mestre em Educação pela Universidade Tuiuti do Paraná (CAPES 5), Integrante do Grupo de Pesquisas de Políticas Públicas e Gestão da Educação da Universidade Tuiuti do Paraná, Especialista em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná - PUC/PR, em Direito Eleitoral pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG, em Direito do Constitucional pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus e Licitações e Contratos Administrativos pela UNIBRASIL. em Direito Público pela Faculdade Legale.