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O clamor do Rio de Janeiro

Seria possível ao Estado do Rio de Janeiro instituir um Código Penal e Processual próprio, voltado ao enfrentamento dessa tragédia social e criminológica?

31/10/2025
Jeferson Botelho

Analisando a tormentosa realidade do Estado do Rio de Janeiro - esse território onde o medo se converteu em rotina e a lei perdeu o seu pulso vital -, vislumbra-se um cenário que tangencia o próprio estado de exceção, onde o crime se organizou como poder paralelo e o Estado, acuado, tenta sobreviver à própria inércia. Diante dessa guerra urbana, beligerante e brutal, emerge a reflexão jurídica profunda: seria possível ao Estado do Rio de Janeiro instituir um Código Penal e Processual próprio, voltado ao enfrentamento dessa tragédia social e criminológica? A resposta encontra guarida no art. 22, parágrafo único, da CF/88, que, mediante autorização do Congresso Nacional e por meio de LC, permite a delegação de competência legislativa aos Estados para tratar de matérias específicas.

Eis aí o fio constitucional que pode tecer um novo manto jurídico sobre o caos fluminense. Sob essa ótica, o legislador estadual poderia, com respaldo da Carta Magna, criar tipos penais autóctones, como o crime de narcoterrorismo, com regramentos mais rígidos, limitando benefícios processuais e reforçando instrumentos de persecução penal. Não se ignora, contudo, a dimensão interestadual e transnacional das facções criminosas, que desafiam fronteiras e zombam da soberania estatal. Com tal medida, o Governo do Estado do Rio de Janeiro conquistaria maior autonomia e independência jurídica para tratar de um problema que já ultrapassou o campo da segurança pública e ingressou no domínio da sobrevivência civilizatória. O Direito, quando silente, é cúmplice do caos; mas quando ousa reinventar-se, torna-se espada da justiça e escudo da sociedade. Acesse ao texto e conheça os fundamentos jurídicos dessa proposta que ousa recolocar o Direito à altura da barbárie que o desafia.

Introdução

O Direito Penal brasileiro é fruto de uma longa travessia histórica, marcada por transformações institucionais e crises sociais que moldaram a consciência jurídica nacional. Desde a Independência do Brasil, o país buscou, entre decretos e constituições, a consolidação de um sistema punitivo próprio, capaz de traduzir a essência de um Estado soberano e justo.

O decreto de outubro de 1822, ao manter as Ordenações Filipinas de 1603 enquanto não se criasse um Direito Penal brasileiro, já anunciava o dilema entre o passado colonial e o anseio de autonomia normativa. Com a Constituição Imperial de 1824 e o Código Criminal de 1830, o Brasil lançou as bases de sua soberania penal, orientado pelos ideais de justiça e equidade. Desde então, a codificação penal passou por múltiplas metamorfoses, até o vigente decreto-lei 2.848, de 7/12/1940, que, embora vigoroso em sua estrutura, tornou-se anacrônico frente à complexidade criminal contemporânea.

Hoje, o país enfrenta um dos maiores desafios de sua história republicana: o colapso humanitário e institucional do Estado do Rio de Janeiro. A violência, as milícias e o tráfico de drogas transformaram comunidades inteiras em zonas de exceção, onde o Estado formal é substituído pelo poder armado. A crise fluminense é o retrato mais visível de uma federação que adoeceu - centralizadora, lenta e ineficaz.

É nesse cenário que ressurge o debate sobre o federalismo penal, por meio do PLP 215, de 2019, com fulcro no art. 22, parágrafo único, da Carta Magna, uma proposta que ousa romper paradigmas e devolver aos Estados a capacidade de reagir às suas próprias tragédias, respeitando o princípio federativo e as singularidades de cada território. Trata-se de um convite à reflexão: poderá o Rio de Janeiro forjar um CP próprio, à altura de sua dor e de sua história?

Competência legislativa para matéria penal

A CF/88 estabelece, no art. 22, a competência privativa da União para legislar sobre Direito Civil, Comercial, Penal, Processual, Eleitoral, Agrário, Marítimo, Aeronáutico, Espacial e do Trabalho. Entretanto, o parágrafo único do mesmo dispositivo abre uma brecha relevante no pacto federativo ao dispor que lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias previstas nesse artigo.

Tal previsão constitucional reflete o princípio da flexibilidade federativa, permitindo que a autonomia dos Estados seja exercida de forma harmônica e subsidiária. Assim, a possibilidade de um Estado legislar em matéria penal, mediante autorização expressa da União, não afronta a unidade do sistema jurídico, mas antes o revigora, adaptando-o às realidades plurais do território nacional.

A crise da segurança pública fluminense é exemplo contundente de que o modelo penal centralizado se mostra ineficiente diante das especificidades locais. A competência legislativa, portanto, deve ser entendida não como fragmentação do poder, mas como instrumento de autonomia responsável, onde cada ente federativo possa elaborar normas mais eficazes à sua realidade criminal, sem romper com os princípios gerais do Direito Penal brasileiro.

O Direito Penal e o objeto do PLP 215, de 2019

Tramita no Congresso Nacional o PLP 215, de 2019, que visa permitir aos Estados e ao Distrito Federal a aprovação de leis específicas sobre matéria penal e processual penal. A proposta representa um marco histórico na evolução do federalismo brasileiro, pois confere autonomia legislativa limitada e orientada à realidade criminal de cada região.

Conforme o art. 1º do Projeto, os Estados e o Distrito Federal poderão tipificar condutas como crime ou contravenção, cominando penas privativas de liberdade ou restritivas de direitos nas seguintes hipóteses:

  1. crimes contra a vida;
  2. crimes contra a pessoa;
  3. crimes contra o patrimônio;
  4. crimes contra a liberdade sexual;
  5. crimes contra a Administração Pública estadual;
  6. crimes contra a Administração Pública municipal;
  7. tráfico ilícito de entorpecentes;
  8. comércio, posse, transporte e uso de armas de fogo e munições.

O autor da proposta justifica a medida com rara lucidez:

“A presente iniciativa tem como objetivo realizar uma delegação legislativa aos Estados e ao Distrito Federal, para que estes possam editar normas em matéria penal e processual penal, de forma autônoma. Historicamente, a legislação criminal brasileira pouco tem observado as marcantes diferenças deste imenso território. Ao contrário da federação norte-americana que serviu de inspiração, o Brasil adotou um modelo fortemente centralizador e homogêneo em seu direito penal e processual penal.”

Em sua fundamentação, o autor menciona o Estado do Rio de Janeiro como exemplo emblemático da falência da política criminal uniforme:

“O Rio de Janeiro é exemplo particularmente delicado de elevação desenfreada da criminalidade, que resiste mesmo a medidas extremas. A intervenção federal de 2018 não reduziu os índices de violência. Os roubos de veículos, cargas e celulares atingiram recordes históricos, segundo o Instituto de Segurança Pública.”

E conclui de forma lapidar:

“Faz-se necessário retornar à lógica fundamental do princípio federativo - o respeito às particularidades locais e à proximidade entre governantes e governados. Somos um país continental cuja vastidão impõe a diversidade também na legislação penal que rege esse território.”

Análise fático-contextual

A realidade do Rio de Janeiro transcende o conceito tradicional de criminalidade urbana. O que se observa é a formação de Estados paralelos, estruturados sob lógica empresarial, paramilitar e narcoterrorista. Facções e milícias não apenas dominam territórios, mas instituem normas, cobram tributos, impõem leis próprias e controlam a economia subterrânea de centenas de comunidades.

O cenário bélico da Operação Contenção, deflagrada em outubro de 2025, com mais de cem mortos e apreensão de grande quantidade de armamentos e drogas, ilustra a magnitude da crise. O Estado formal perdeu o monopólio da força em amplas áreas, configurando o que a doutrina de segurança internacional denomina “colapso da soberania interna”.

Tal contexto evidencia a inadequação de um sistema penal unificado, incapaz de responder a situações extremas com a celeridade e especificidade que o caso exige. A criminalidade fluminense demanda mecanismos processuais próprios, regimes de cumprimento de pena diferenciados e restrições de benefícios penais, como resposta legítima a uma realidade de guerra social.

O PLP 215/19, portanto, não deve ser visto como ruptura do Estado de Direito, mas como reinvenção do pacto federativo penal, fundado na legitimidade democrática e na urgência de resgatar a paz e a dignidade da população fluminense.

Reflexões finais

O Rio de Janeiro clama.

Clama nas vielas ensanguentadas, nos becos em que a infância morre antes de sonhar, nos olhos marejados de mães que enterram filhos culpados ou inocentes. Familiares de policiais civis e militares que perderam seus entes queridos, todos lutando como heróis em defesa dos interesses da coletividade. Clama pela presença de um Estado que não chegue apenas com fuzis, mas com justiça social, como saúde, educação, infraestrutura, moradia, trabalho e renda, assistência social.

A proposta de um CP fluminense não é utopia; é resistência jurídica e social diante do colapso civilizacional. É a tentativa de devolver ao povo fluminense o direito elementar de viver sem medo, de habitar sua cidade sem negociar a paz com o crime.

Enquanto as balas traçam constelações de dor sobre o céu carioca, a letra da lei deve se erguer como espada e escudo, protegendo o cidadão e devolvendo sentido ao conceito de humanidade.

O Brasil precisa compreender que a unidade da nação não está na homogeneidade das leis, mas na harmonia entre suas diferenças. Assim como cada rio encontra seu próprio leito, cada Estado precisa encontrar seu caminho jurídico, sem romper com o oceano da federação.

O Rio de Janeiro, terra de beleza e tragédia, pede não piedade - mas autonomia, coragem e justiça.

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Botelho, Jeferson. Reflexões sobre a crise humanitária no Rio de Janeiro. Vale do Mucuri, 2025.

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Código Penal Brasileiro (Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940).

Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Convenção de Palermo, 2000).

Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro (ISP-RJ), Relatórios 2018-2025.

Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013 - Define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal.

Lei nº 12.720, de 27 de setembro de 2012 - Inclui o art. 288-A no Código Penal (constituição de milícia privada).

Projeto de Lei Complementar nº 215, de 2019.

Jeferson Botelho

Delegado Geral aposentado da PCMG; prof. de Direito Penal e Processo Penal; autor de obras jurídicas; advogado em Minas Gerais. Jurista. Mestre em Ciência das Religiões - Faculdade Unida Vitória/ES;

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