Introdução
A complexidade da ordem econômica e social contemporânea impõe ao Estado não apenas o papel de arrecadador de recursos indispensáveis à manutenção da máquina pública e à provisão de serviços essenciais, mas também a função inarredável de agente indutor e regulador de comportamentos que atendam ao interesse coletivo e aos ditames constitucionais.
A extrafiscalidade, entendida como o uso estratégico do tributo para alcançar finalidades regulatórias, seja para estimular condutas desejáveis ou para inibir práticas prejudiciais, representa uma evolução na compreensão da natureza multifacetada do poder de tributar. Este mecanismo, ao adentrar o campo de fatos concretos e buscar a condução dos contribuintes a atividades consideradas necessárias ou, inversamente, a restrição daquelas tidas como danosas, desvela o potencial do sistema tributário para além da arrecadação.
Neste contexto, o presente artigo se propõe a analisar a profundidade desse mecanismo, focando especificamente em sua aplicação no domínio da proteção ambiental. O tema ganha particular relevância na medida em que a Constituição Federal eleva o meio ambiente ecologicamente equilibrado à categoria de direito fundamental, impondo ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Portanto, o uso estratégico dos tributos para fins ambientais não é apenas uma opção de gestão, mas uma manifestação concreta da obrigação constitucional de tutela.
A extrafiscalidade tributária
O objetivo da tributação é, prioritariamente, a arrecadação de receitas para fazer face às despesas públicas (CARBONI, 2019). Tal é o exercício primário do direito tributário, sendo a forma mais tradicional de se obter receitas derivadas aos entes públicos.
Ocorre que, muitas vezes, a mera função arrecadatória não se mostra suficiente para o planejamento intervencionista do Estado na ordem social, de tal modo que cabe ao poder público “o emprego deliberado do instrumento tributário para finalidades não financeiras, mas regulatórias de comportamentos sociais, em matéria econômica, social e política” (ATALIBA, 1968, p.151).
É através deste mecanismo, portanto, sem desconsiderar outros meios diretos ou indiretos de intervencionismo estatal, que poderá ser utilizada a norma jurídica de natureza tributária para fins de indução de comportamentos desejados ou a inibição de condutas vedadas, sendo o que a literatura destaca como a finalidade extrafiscal dos tributos.
Haverá extrafiscalidade tributária quando “o legislador, em nome do interesse coletivo, aumentar ou diminuir as alíquotas e/ou bases de cálculo dos tributos, com o objetivo principal de induzir os contribuintes a fazer ou deixar de fazer alguma coisa” (CARRAZZA, 2017, p. 133).
Trata-se do exercício da função de tributar como instrumento que influencia condutas diferentes da mera arrecadação, buscando induzir comportamentos, adentrando no campo de fatos concretos e conduzindo os contribuintes para atividades consideradas como necessárias ou, até mesmo, restringindo aquelas consideradas prejudiciais (CARVALHO; AMARAL, 2020).
Ocorre que a finalidade extrafiscal de um tributo pode atuar em dois aspectos diferentes. Como orienta o professor Paulo Kirchhof (1973), o tributo poderá buscar expressamente a indução do comportamento do contribuinte sob a “ameaça de prejuízos tributários”, o que é interpretado como a função sancionatória da finalidade extrafiscal.
Por outro lado, a finalidade extrafiscal pode, também, ofertar um prêmio aos contribuintes que optarem pela conduta que serve ao interesse público. Nesse caso, não se busca induzir o contribuinte às práticas recomendadas pela punição, mas se utiliza de outra técnica de convencimento, influenciando os contribuintes às práticas desejadas com um plano de incentivos, o que a literatura intitula como a função promocional ou positiva da finalidade extrafiscal.
É nesse âmbito de análise da função promocional ou positiva da finalidade extrafiscal, portanto, que ocorre a extrafiscalidade para fins ambientais, também denominada de tributação ambiental.
A tributação ambiental
O que motiva a atividade econômica são as necessidades humanas, as quais são ilimitadas. Em contrapartida, os recursos naturais são limitados, logo, deve haver “uma razoabilidade na fruição dos mesmos com vistas ao acautelamento das futuras gerações” (PAYÂO; RIBEIRO, 2016, p. 286).
Em outros termos, a sustentabilidade ambiental pressupõe três elementos, conforme Paulo Machado (2010, p. 71), “o tempo, a duração dos efeitos e a consideração do estado do meio ambiente em relação ao presente e ao futuro”. Ou seja, a sustentabilidade pode ser entendida como a capacidade da sustentação natural, em que o uso dos recursos naturais não deverá ser maior que a capacidade de regeneração e renovação, pois, do contrário, haverá comprometimento da própria existência. Como ensina Nalini (2010):
- Concepção de um mundo sustentável deflui de uma ideia singela: a concepção mais racional de economia doméstica. Assim como em cada lar é regra de ouro não gastar mais do que se ganha, assim também, para o Grande Lar Terra, não se pode exaurir sem reposição e sem pensar no amanhã. O mundo já deu insistentes sinais de que está em seus limites. O que viria após a exaustão dos recursos naturais? (NALINI, 2010, p. 126).”
Nesse cenário, as políticas tributárias com finalidades extrafiscais podem ser instrumentos de intervenção estatal na economia, mediante indução para a concretização dos ditames constitucionais, dentre eles, o direito fundamental ao meio ambiente saudável.
O professor Heleno Taveira Torres afirma que:
- Tentativa de construção de um Sistema Tributário Ambiental tem sido permanentemente referida como um dos principais instrumentos do desenvolvimento econômico sustentável, com o propósito de alcançar uma efetiva “economia verde” (green economy). De fato, os tributos, em suas distintas técnicas de aplicação, podem ser usados para reduzir ou eliminar externalidades ambientais, estimular a inovação e assegurar proteção ao meio ambiente, numa interação permanente com o aprimoramento da educação, da redução da pobreza e da melhoria da qualidade de vida da população (TORRES, 2012a, p. 1).”
Portanto, a tributação ambiental pode ser compreendida como a utilização de mecanismos tributários voltados, de um lado, para a arrecadação de recursos destinados à execução de serviços públicos de caráter ecológico (função fiscal) e, de outro, para a indução de condutas dos contribuintes em favor da preservação do meio ambiente (função extrafiscal) (COSTA, 2005, p. 330).
Tal forma de tributação, com finalidade predominantemente extrafiscal, pode objetivar as seguintes soluções: (i) indutora em sentido estrito: induz a comportamentos ambientalmente adequados; (ii) restauradora: restaura os danos ambientais já ocorridos; (iii) redistributiva: redistribui os custos ambientais das atividades causadoras de danos - internalização das externalidades negativas (CAVALCANTE, 2012, p. 177).
A professora Natália Grey (2009) orienta que se faz necessária a intervenção do poder público:
- Nas esferas do desenvolvimento econômico e social, a fim de que seja realizado o controle efetivo do uso dos recursos naturais. Nesse sentido é que a tributação ambiental surge como um dos instrumentos de controle para o desenvolvimento econômico. Os padrões atuais de consumo revelam-se como sendo insuportáveis a longo prazo, sendo que os tributos se apresentam como uma utilíssima ferramenta na tentativa de manutenção de um meio ambiente saudável (GREY, 2009, p. 82).”
Tal intervenção do poder público deve respeito, também, aos princípios que regem a responsabilidade fiscal, afinal, ao se utilizar a tributação com finalidade predominantemente diversa daquela arrecadatória, muitas vezes se gera despesa pública, ensina Heleno Torres:
- Incentivo fiscal ambiental não pode ser concebido como um “favor”, mas uma “despesa pública” do Estado para que o particular possa substitui-lo com mais eficácia onde sua presença seja imprescindível. Assim, quando empregados adequadamente, os benefícios ambientais neutralizam as supostas perdas de arrecadação. Incentivos à inovação e ao desenvolvimento de tecnologias menos ofensivas ao meio ambiente são fundamentais para o desenvolvimento sustentável. Deveras, não se deve conferir benefícios fiscais para o que é dever dos particulares. (TORRES, 2012b, p. 2).”
Em razão disso, o estudo sobre a tributação ambiental está estritamente vinculado à responsabilidade fiscal na gestão pública, tendo em vista que muitas vezes o gestor público bem-intencionado se encontra limitado pelas balizas legais e constitucionais na geração de despesas públicas.
Conclusão
A investigação sobre a extrafiscalidade tributária como instrumento de proteção ambiental revelou a profunda e necessária evolução da função do tributo, que, ao se despir da exclusividade arrecadatória, ascende à função de poderoso mecanismo regulatório e indutor de políticas públicas que visam à harmonia entre o desenvolvimento econômico e a preservação ecológica.
A premissa fundamental que permeia esta análise é a de que a inesgotabilidade das necessidades humanas contrasta dramaticamente com a finitude dos recursos naturais, exigindo uma reorientação comportamental que garanta a sustentabilidade intergeracional, princípio basilar do direito ambiental moderno.
A extrafiscalidade, neste contexto, não se apresenta como um desvio, mas como uma complementação essencial à função fiscal, permitindo que o Poder Público utilize alíquotas e bases de cálculo de maneira estratégica para influenciar os contribuintes a adotarem práticas menos impactantes ou a investirem em tecnologias mais limpas.
Entretanto, a concretização eficaz da extrafiscalidade ambiental, utilizando a função promocional, está intrinsecamente vinculada à observância rigorosa das regras de gestão e responsabilidade fiscal. A análise apontou que a concessão de benefícios e incentivos fiscais, embora fundamental para recompensar condutas ambientalmente adequadas, deve ser concebida não como um "favor" estatal ao particular, mas sim como uma despesa pública.
Desse modo, o gestor público, ao desenhar a política tributária ambiental, deve navegar com cautela entre o imperativo constitucional de proteger o meio ambiente e as balizas legais e constitucionais que regem a geração de despesas públicas, garantindo a sustentabilidade não apenas ecológica, mas também financeira do Estado.
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Referências
CAVALCANTE, Denise Lucena. Sustentabilidade financeira em prol da Sustentabilidade ambiental. In: GRUPENMACHER, Betina Trie- ger et al. Novos horizontes da tributação: um diálogo luso-brasileiro. Coimbra: Almedina.2012.
COSTA, Regina Helena. Apontamentos sobre a Tributação Ambiental no Brasil. In: TORRES, Heleno Taveira (Org). Direito tributário ambiental. São Paulo: Malheiros, 2005.
GREY, Natália de Campos. Tributação do meio ambiente. Revista Jurídica Tributária, Porto Alegre, v. 2, n. 5, p. 89-111, abr./jun. 2009.
KIRCHHOF, Paul. Besteuerungsgewalt und Grundgesetz. Frankfurt: Athenäum, 1973, p. 57.
MACHADO, P. A. L. Direito ambiental brasileiro. 20. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Malheiros, 2010.
NALINI, J. R. Ética ambiental. 3. ed. Campinas: Millennium, 2010.
PAYÂO, Jordana Viana. RIBEIRO, Maria de Fátima. A extrafiscalidade tributária como instrumento de proteção ambiental. Revista do Direito Público, Londrina, v. 11, n. 3, p.276-310, dez. 2016. DOI: 10.5433/1980-511X.2016v11n3p276. ISSN: 1980-511X
TORRES, Heleno Taveira. A tributação orientada à sustentabilidade ambiental. São Paulo: Consultor Tributário, 2012b. Disponível em: http://www.idtl.com.br/artigos/397.pdf. Acesso em: 15 jul. 2016.
TORRES, Heleno Taveira. Descompasso entre as política ambiental e tributária. São Paulo: Consultor Tributário, 2012a. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2012-jun-20/consultor-tributario-descompasso-entre-politicas-ambiental-tributaria. Acesso em: 15 jul. 2016.