Todos nós já passamos por isso: você chega ao hotel, pergunta se pode sair mais cedo ou entrar mais tarde, e a resposta vem vaga: "depende", "a gente vê", "vai custar extra". Ninguém explica quanto custa esse extra. Ninguém deixa claro qual é exatamente o horário. E você fica ali, hóspede pagante, sem saber direito qual é seu direito.
Mas há um problema ainda maior escondido nessa confusão. A prática comum era: check-in às 15 horas, check-out às 10 da manhã, por exemplo. Faça as contas: são 19 horas. 19 horas, não 24! Você pagava pela diária completa - aquele valor integral que o hotel cobra por 24 horas - mas recebia apenas 19. As cinco horas restantes? Desapareciam. Ninguém cobrava por eles, mas também ninguém os devolvia.
Aqui está a questão jurídica brutal: se a lei diz que a diária é 24 horas, por que o hóspede pagava o preço total, mas recebia apenas 19, por exemplo? Essa discrepância não era um detalhe operacional. Era uma apropriação sistemática de valor. O consumidor desembolsava pelo tempo integral, mas não o recebia. E essa prática se normalizou tanto que virou invisível.
Essa confusão não é acaso. É fruto de uma lacuna jurídica real. A lei geral do turismo, de 2008, já previa que a diária correspondia a um período de 24 horas. Mas qual era exatamente esse período? Quando começava? Quando terminava? A lei não dizia com precisão. E quando a lei não é precisa, o que sobra é o caos e, com ele, conflitos constantes entre hóspedes e empreendedores.
É exatamente esse vazio que a portaria 28 do Ministério do Turismo, publicada em setembro de 2025, veio preencher. Ela não inventa nada radicalmente novo. Ela faz algo bem mais importante: torna concreto o que era abstrato. E quando o Direito sai do abstrato, ele começa a funcionar de verdade.
O problema jurídico que ninguém falava
Antes de entender a portaria, é preciso compreender qual era a confusão... porque, sim, havia confusão. Hotéis, pousadas, resorts, airbnbs e albergues espalhados pelo Brasil funcionavam com critérios próprios quando se tratava de horários de entrada e saída. Alguns permitiam. Outros não. Alguns cobravam taxa extra. Outros fingiam que não cobravam, mas aumentavam a diária. O hóspede? Descobria tudo isso no último minuto.
Juridicamente falando, o problema é bem mais grave. A falta dessa transparência gerava conflitos, desentendimentos constantes entre hóspedes e empreendedores. E, para o Direito, conflito sem norma clara é um caos.
Aqui está o ponto central: quando a lei existe, mas ninguém sabe exatamente como ela funciona na prática, o risco jurídico é imenso. O consumidor não sabe seus direitos. O empresário não sabe suas obrigações. E isso é precisamente o vazio que a Portaria veio preencher
O que a portaria realmente faz
A portaria 28 não inventa nada radicalmente novo. Ela faz algo bem mais importante: ela torna concreto o que era abstrato. Estabelece que os meios de hospedagem devem fixar claramente os horários de entrada e saída, sempre permitindo que o tempo necessário para arrumação, higiene e limpeza não ultrapasse 3 horas.
Aqui está a lógica por trás dessa norma. A diária é um contrato. Como qualquer contrato, precisa deixar claro o que cada parte está oferecendo e o que está recebendo. Mas, ainda assim, pode surgir um outro questionamento: se você paga por vinte e quatro horas, como é justo que o meio de hospedagem reserve até três delas apenas para limpeza? A resposta jurídica é simples: porque a limpeza faz parte do serviço que você está pagando. Ela não é "extra". É organização mínima para garantir que a próxima pessoa tenha um quarto higienizado.
Mas aqui vem a sacada importante. A portaria não “furta” essas três horas do hóspede. Ela apenas permite que o estabelecimento as use para garantir qualidade. E, se você quer ficar mais cedo ou sair mais tarde, tudo bem, desde que seja comunicado com antecedência ou que você pague por isso, se for o caso.
Questão de transparência
O que diferencia uma boa norma de uma norma apenas “ok” é a capacidade dela de dar segurança jurídica a todos. A portaria 28 traz um dever que parece simples, mas é fundamental: informação. Os meios de hospedagem precisam informar ao hóspede e também a quem intermediou a venda, como plataformas de viagem, os horários exatos de entrada e saída, e quanto tempo será gasto com limpeza.
Isso não é apenas uma "recomendação bonitinha". É uma obrigação legal. E qual é o fundamento jurídico? O princípio da boa-fé contratual. Ora, quando você contrata um serviço, ambas as partes devem agir com clareza. Ninguém pode esconder informação crucial no contrato miúdo de uma plataforma ou na letra pequena de um flyer de hotel.
A intermediação digital também ganhou um capítulo nessa história. Se você aluga pelo Booking ou por uma agência de viagem, por exemplo, essas plataformas também têm o dever de passar a informação adiante. Não adianta o hotel comunicar se a plataforma cala.
Segurança sanitária como direito
A portaria também impõe obrigações positivas. Os estabelecimentos precisam oferecer, obrigatoriamente, higienização completa, troca de roupas de cama e troca de toalhas. Frequência e horários devem ser comunicados previamente. Sim, o hóspede pode dispensar isso, mas a decisão precisa ser expressa. E, mesmo assim, o meio de hospedagem não pode deixar a segurança sanitária em risco para os demais.
Aqui está mais uma vez a lógica jurídica funcionando. Não é apenas sobre o conforto do hóspede. É sobre saúde pública. É sobre o direito de todos de estar em um ambiente seguro.
Isso que foi dito até agora pode parecer apenas proteção ao consumidor. Mas a portaria também protege os empreendedores. Pela primeira vez, existe clareza. Todos sabem como proceder. Todos sabem o que pode e o que não pode fazer. Isso reduz litígios. Isso padroniza o mercado. E, quando o mercado é transparente, a concorrência é mais justa. A segurança jurídica de um empresário é tão importante quanto a proteção de um consumidor. Porque um empresário que não tem segurança jurídica tende a ter medo de investir, de expandir, de criar postos de trabalho.
Fiscalização e responsabilidade
Por fim, a portaria deixa claro quem fiscaliza: o Ministério do Turismo. Descumprimentos geram termos de fiscalização. Denúncias formais abrem processos administrativos com garantia de contraditório e defesa. Se confirmadas irregularidades, as penalidades previstas na Lei Geral do Turismo são aplicadas. Essa estrutura não é arbitrária. Ela segue os princípios do processo administrativo, com respaldo legal e garantias processuais.
Conclusão
A portaria 28 é, na verdade, um exercício de democracia jurídica. Ela pega uma realidade desordenada - horários diferentes em cada hotel, práticas vagas, consumidores confusos - e traz clareza, transparência e igualdade. Não é uma revolução. É uma organização necessária.
Porque o Direito não funciona bem quando está vago. Funciona bem quando é claro, quando todos entendem as regras, quando as regras fazem sentido. E essa portaria faz sentido.