Introdução
O Direito Previdenciário, alicerçado na Constituição Federal de 1988 como um direito fundamental (art. 6º), possui uma natureza eminentemente social e protetiva. Seu principal objetivo é amparar o trabalhador segurado diante de contingências da vida, como a incapacidade, a idade avançada ou o tempo de serviço em condições especiais.
No âmbito processual, contudo, essa natureza social frequentemente entra em tensão com institutos clássicos do Direito Processual Civil, como a coisa julgada - a qualidade que torna imutável e indiscutível a sentença que não mais está sujeita a recurso ordinário. A coisa julgada visa garantir a segurança jurídica e a estabilidade das relações sociais.
A questão crucial surge quando, após uma decisão judicial desfavorável, o segurado obtém uma nova prova substancial - como um PPP - Perfil Profissiográfico Previdenciário ou LTCAT - Laudo Técnico das Condições Ambientais de Trabalho retificado - que comprova as condições para a concessão do benefício pleiteado anteriormente.
O STJ, no julgamento do REsp 2.114.518/CE, confirmou um entendimento que harmoniza esses dois valores, priorizando a busca da verdade real e o caráter protetivo da Previdência Social em detrimento do formalismo excessivo da coisa julgada, desde que configurada uma nova situação fática. O cerne do entendimento que flexibiliza a coisa julgada previdenciária reside na aplicação de princípios constitucionais e na peculiaridade das demandas de natureza social.
Essa harmonização não se dá por mera liberalidade judicial, mas sim pela compreensão de que o Direito Previdenciário exige uma metodologia hermenêutica própria, que transcende o rigor processual civilista. Conforme salientado no julgamento do REsp 2.114.518/CE, as peculiaridades das demandas previdenciárias justificam a flexibilização da rigidez processual, sempre em vista dos cânones constitucionais da Seguridade Social. O contexto social adverso em que se inserem os segurados que buscam a proteção judicial impõe ao Judiciário o dever de buscar a solução que mais se aproxima do caráter social da Carta Magna, garantindo a efetividade do direito fundamental à prestação previdenciária.
Neste contexto, a apresentação de PPP's e LTCAT's retificados - documentos cruciais para a comprovação de tempo especial - configura uma nova causa de pedir apta a afastar a identidade de ações, requisito para o reconhecimento da coisa julgada. Não se trata de simplesmente reanalisar o mérito, mas de submeter ao Judiciário uma nova pretensão resistida baseada em um novo e robusto substrato fático-probatório. É essa prioridade dada ao interesse social e à busca da verdade real que direciona a interpretação do STJ. Com base nesse entendimento, o primeiro capítulo explorará em detalhes como o princípio da proteção social e a condição de hipossuficiência do segurado atuam como fundamentos inabaláveis para essa abordagem diferenciada da coisa julgada.
1. Os trechos da ementa do REsp 2.114.518 que merecem destaque
Para melhor compreensão dos leitores, a seguir, os trechos do precedente do STJ que é objeto do presente ensaio:
- (…) 1. Tradicionalmente, o Direito Previdenciário se vale da processualística civil para regular os seus procedimentos, entretanto, não se deve perder de vista as peculiaridades das demandas previdenciárias, que justificam a flexibilização da rígida metodologia civilista, levando-se em conta os cânones constitucionais atinentes à Seguridade Social, que tem como base o contexto social adverso em que se inserem os que buscam judicialmente os benefícios previdenciários. 2. As normas previdenciárias devem ser interpretadas de modo a favorecer os valores morais da Constituição Federal/1988, que prima pela proteção do Trabalhador Segurado da Previdência Social, motivo pelo qual os pleitos previdenciários devem ser julgados no sentido de amparar a parte hipossuficiente e que, por esse motivo, possui proteção legal que lhe garante a flexibilização dos rígidos institutos processuais. Assim, deve-se procurar encontrar na hermenêutica previdenciária a solução que mais se aproxime do caráter social da Carta Magna, a fim de que as normas processuais não venham a obstar a concretude do direito fundamental à prestação previdenciária a que faz jus o segurado.
- 3. Assim como ocorre no Direito Penal, em que se afastam as regras da processualística civil em razão do especial garantismo conferido por suas normas ao indivíduo, deve-se dar prioridade ao princípio da busca da verdade real, diante do interesse social que envolve essas demandas. (...) Ainda que o caso nos autos não diga respeito a ausência de provas, fato é que passou a se estabelecer nova situação fática em razão da qual se relativiza a coisa julgada em benefício da regra constitucional de proteção previdenciária. 5. No caso em pauta sequer é necessária a relativização de coisa julgada prevista no Pedilef nº 0031861-11.2011.4.03.6301 da TNU - Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais. Isso porque há nova causa de pedir apta a afastar a identidade de ações necessária ao reconhecimento da coisa julgada. Ante a regularização dos PPPs, cumpre reconhecer que ficou estabelecida nova situação fática apta a afastar a coisa julgada previdenciária. Assim, embora exista igualdade entre as partes e pedido nos dois processos, a apresentação de novos documentos, amparados pelo indeferimento do novo requerimento administrativo apresentado ao INSS no dia30/04/2021 (NB 1732190005), torna diversas as causas de pedir. E, no caso, houve novo processo administrativo previdenciário, no qual o novo documento dado pela Empresa foi acostado e mesmo assim o INSS negou a apreciação, alegando coisa julgada. Com essas considerações, não merece acolhida a preliminar de coisa julgada arguida pelo INSS/Recorrente. Referido entendimento está em consonância com a orientação do STJ que, em situações assemelhadas, tem relativizado a coisa julgada, em benefício de uma plena efetivação dos princípios norteadores do Direito Previdenciário. (...) No mesmo sentido, vejam-se também as seguintes decisões monocráticas: REsp 1.572.841/RS, Rel. Min. NAPOLEÃO NUNES MAIS FILHO, DJe de 09/06/2016 e AREsp 879.998/SP,1 Rel. Min. MAURO CAMPBEL MARQUES, DJe de 03/06/2016. Assim, não merece reforma o acórdão recorrido, posto que decidiu em consonância com o entendimento desta Corte Superior no sentido de que, em matéria previdenciária, por seu pronunciado cunho social, há espaço para a excepcional flexibilização de institutos processuais, até mesmo da coisa julgada. • ANTE O EXPOSTO, nego provimento ao recurso especial. (STJ - REsp: 2114518, Relator.: Ministro SÉRGIO KUKINA, Data de Publicação: Data da Publicação DJ 14/06/2024, grifou-se).
2. O cânone da proteção social e a parte hipossuficiente
O acórdão do STJ, conforme explicitado no item 2 do julgamento do REsp, enfatiza que a interpretação das diretrizes previdenciárias deve estar em perfeita sintonia com os valores éticos e constitucionais que salvaguardam o Trabalhador Segurado. O indivíduo que busca a tutela jurisdicional, no contexto previdenciário, é majoritariamente considerado a parte vulnerável da lide, justificando um amparo normativo que autoriza o abrandamento da "metodologia processual civil, excessivamente rigorosa".
Essa abordagem constitui uma clara manifestação do princípio in dubio pro misero (na incerteza, em benefício do desfavorecido), guiando o magistrado a encontrar a solução que melhor reflita a vocação social da Constituição Federal, evitando que o apego excessivo ao formalismo processual se torne um obstáculo intransponível à materialização de um direito fundamental. Quando se comprova que uma prova documental prévia continha imprecisões ou omissões - muitas vezes atribuíveis à conduta de terceiros (como empregadores ou a inércia fiscalizatória do próprio INSS) - e um novo documento atesta a realidade até então distorcida, qualquer hesitação remanescente deve, invariavelmente, conduzir à conclusão mais benéfica ao segurado.
A correta interpretação da coisa julgada, neste cenário, não é um privilégio, mas sim uma medida de equidade. O processo judicial não pode ser um fim em si mesmo, especialmente quando o objeto da disputa é a subsistência digna do cidadão. O reconhecimento da vulnerabilidade do segurado implica admitir que ele possui recursos limitados para fiscalizar a correta elaboração de documentos técnicos, como o PPP e o LTCAT, que estão sob o domínio e a responsabilidade da empresa empregadora.
A apresentação de documentos retificados (PPP’s e LTCAT’s) após um trânsito em julgado desfavorável materializa uma nova verdade processual. O que era, anteriormente, insuficiência ou fragilidade probatória (que deveria ter sido, inclusive, causa de extinção do feito sem resolução do mérito à luz do Tema 629 do STJ) transforma-se em plena demonstração do fato constitutivo do direito. Exigir que o segurado seja eternamente penalizado por erros que não cometeu, e que foram subsequentemente corrigidos e validados, seria perpetuar uma injustiça em nome de uma segurança jurídica que se revela puramente formal.
É essencial entender que a prova no Direito Previdenciário, particularmente a documental referente ao tempo especial, possui um caráter dinâmico. Sua validade e precisão dependem de fatores externos e alterações na legislação ou nas práticas de segurança e medicina do trabalho. Um laudo (LTCAT) ou perfil (PPP) pode ser legitimamente retificado quando há uma constatação posterior de falhas metodológicas, erros de registro ou inadequação às normas técnicas vigentes.
Nesse contexto, inclusive, convém ilustrar que, recentemente, o Tema 174 da TNU foi alterado pelo Tema 317 daquela mesma turma e, posteriormente, revisto para que o conteúdo do Tema 174 voltasse valer. As mudanças nas normas legais, regulamentares e na jurisprudência já dão o tom sobre a necessidade de flexibilização da coisa julgada, quando, para se conquistar um benefício previdenciário (direito material) se necessite apresentar provas (com exigências formais que fogem da responsabilidade do segurado).
A nova prova retificada não é, portanto, apenas um documento novo, mas sim a representação fidedigna da realidade laboral que deveria ter sido apresentada desde o início. O Judiciário, ao acolhê-la, não está desrespeitando a autoridade da coisa julgada anterior, mas sim reconhecendo que o pressuposto fático sobre o qual a decisão original se fundava (a qualidade da prova documental) foi modificado de forma substancial e inegável.
Nesses casos, como bem dito no julgado do STJ em comento: “sequer é necessária a relativização de coisa julgada prevista no Pedilef 0031861-11.2011.4.03.6301 da TNU - Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais. Isso porque há nova causa de pedir apta a afastar a identidade de ações necessária ao reconhecimento da coisa julgada” (grifou-se).
Adotar a interpretação rígida de que a coisa julgada é absoluta, mesmo diante de prova retificada, seria negar o Princípio do Acesso à Justiça (art. 5º, XXXV, CF) em sua dimensão material. Acesso à justiça não significa apenas o direito de iniciar um processo, mas sim o direito de obter uma solução justa e efetiva. O segurado que investe tempo e esforço para obter um PPP ou LTCAT corrigido demonstra sua boa-fé processual e sua busca incansável pela verdade.
Impedir o novo julgamento seria transformar o processo em um jogo de "tudo ou nada" baseado na perfeição da documentação inicial, ignorando que a realidade da documentação previdenciária, em nosso país, é marcada pela precariedade e pela constante necessidade de ajustes e retificações.
A decisão do STJ, ao privilegiar o substrato probatório atualizado, coloca a jurisprudência como um instrumento ativo de justiça social. Ela alinha o Direito Processual ao Direito Material Previdenciário, reforçando a ideia de que as normas processuais servem ao direito fundamental, e não o contrário. É o interesse social que está em jogo, e a prioridade deve ser dada à concretude do direito à seguridade social a que o segurado faz jus. Com este entendimento, abre-se o caminho para analisar a questão sob a ótica da busca pela verdade real, tema do próximo capítulo.
Leia o artigo na íntegra.