Migalhas de Peso

Julgando o invisível: A prova no Direito de Família

Este artigo defende standards probatórios no Direito de Família, analisando casos reais e criticando a subjetividade judicial para proteger vulneráveis contra a incerteza das quatro paredes.

27/11/2025
Beatrice Merten

1. Intimidade do lar e incerteza judicial: O desafio probatório familiar

O Direito de Família opera em um território que é avesso ao olhar público: a intimidade do lar. Diferente de um acidente de trânsito em via pública ou de um contrato assinado em cartório, os dramas que definem o destino de pais e filhos, como violência, abuso, negligência ou alienação, acontecem onde ninguém vê. Acontecem no silêncio do quarto, na sutileza de uma conversa de jantar, na manipulação psicológica invisível.

Essa característica estrutural cria um abismo para o Judiciário. Como o juiz pode decidir com justiça sobre fatos que não deixaram rastros? Hoje, no Brasil, vivemos sob o império da “livre convicção motivada”, um sistema onde o magistrado decide com base no que “sente” ser verdade, desde que fundamente. Mas isso gera um perigo real: decisões lotéricas. Em uma vara, um juiz exige certeza absoluta para afastar um pai agressivo; na vara ao lado, outro juiz se contenta com indícios. A falta de uma régua objetiva - o que chamamos de standard probatório - transforma processos vitais em jogos de azar.

A tese aqui é: precisamos abandonar a subjetividade e adotar critérios graduados de prova, como fazem as democracias mais avançadas. E para entender por que isso é urgente, não basta teoria. Precisamos olhar para as histórias reais, para os casos dramáticos que tribunais estrangeiros e brasileiros enfrentaram, e que nos ensinam como julgar o invisível sem destruir vidas.

2. De “quem prova” a “quanto prova”: Standards e suficiência da prova em família

Para entender por que decisões injustas acontecem, precisamos primeiro desfazer uma confusão técnica que custa caro. Aprendemos na faculdade sobre o “ônus da prova” (burden of proof). Mas a pergunta decisiva nas famílias não é “quem”, e sim “quanto”.

O ônus da prova é apenas uma regra de desempate, definindo quem perde a causa se, ao final, o juiz continuar em dúvida (o famoso impasse ou non liquet). É o “último recurso” do magistrado para não deixar o processo sem solução.

Já o standard probatório (standard of proof) vem antes disso. Ele é a régua, o “sarrafo” que define a altura que a prova precisa atingir para convencer o juiz de que um fato é verdade. Ele mede a qualidade e a suficiência da prova. Saber “quem” deve provar de nada adianta se o juiz não disser “o quanto” de certeza ele exige. Sem essa definição, a “livre convicção” vira um cheque em branco para o subjetivismo.

O mundo civilizado resolve isso abandonando a busca utópica pela “verdade real” e adotando escalas de certeza, calibradas de acordo com o risco de cada decisão. Em geral, podemos identificar três degraus principais nessa escada, plenamente coerentes com o sistema normativo brasileiro:

O da probabilidade preponderante (o “mais provável que não”): Este é o padrão do dia a dia da Justiça civil e deveria ser a regra para medidas protetivas. Aqui, não se exige certeza absoluta. A matemática é simples: se a versão da vítima for “mais provável que não” (ou seja, superar 50% de chance), o fato está provado. Se há indícios convergentes de violência, o juiz deve agir. É o padrão ideal para proteger crianças, pois aceita que a prova na intimidade nunca será perfeita.

No nível intermediário, a “prova clara e convincente”. Este standard é usado quando a decisão é grave e difícil de reverter, como a perda do poder familiar ou a acusação de fraude, e internação compulsória. Exige-se uma prova mais robusta do que a mera probabilidade, mas ainda abaixo da certeza. É a trava de segurança para evitar que o Estado interfira na família levianamente, protegendo o status quo contra falsas acusações sem deixar a vítima desamparada.

Por fim, o standard criminal “acima de qualquer dúvida razoável”. Este é o grande vilão quando importado indevidamente para o Direito de Família. É o padrão do Direito Penal, feito para evitar a prisão de inocentes, exigindo uma certeza quase absoluta (acima de 90% ou 95%). O problema? Quando o juiz de família usa essa régua criminal para decidir sobre guarda ou visitas, ele quase nunca consegue “condenar” o abusador, pois a prova no lar raramente atinge esse nível. O resultado é a desproteção das vítimas sob a desculpa da “falta de provas”.

Entender essa tipologia não é preciosismo acadêmico. É uma escolha política sobre quem vai suportar o risco do erro: se preferimos arriscar proteger uma criança de um pai que talvez não seja abusador (usando a probabilidade preponderante), ou se preferimos arriscar entregar a criança a um abusador real porque exigimos uma certeza impossível (usando o standard criminal).

3. Histórias de tribunal: O que os casos nos ensinam

O público geral, e até mesmo muitos juristas, desconhecem como a aplicação técnica desses padrões salva vidas na prática. Assim, selecionamos casos paradigmáticos do Canadá e do Reino Unido, além de exemplos nacionais, que ilustram o drama humano por trás da teoria probatória.

O caso do perito suspeito (KK v. MM)

Em Ontário, Canadá, desenrolou-se uma tragédia que poderia acontecer em qualquer comarca brasileira. Um juiz de primeira instância decidiu inverter a guarda de crianças, tirando-as da mãe, baseado puramente na opinião de um perito, o Dr. Goldstein, que diagnosticou “alienação parental”.

Parecia um caso técnico encerrado. Contudo, descobriu-se depois que esse perito havia firmado um “compromisso público” de não realizar mais esse tipo de avaliação devido a condutas profissionais questionáveis no passado. A Corte de Apelação interveio de forma exemplar.

A lição nesse caso foi sobre admissibilidade. O tribunal decidiu que a segurança das crianças está acima da formalidade do laudo. Não importava se o perito tinha o carimbo certo; se a sua credibilidade era duvidosa, a prova não atingia o standard de “confiabilidade”. A decisão foi revertida. Isso nos ensina que, em família, não se pode aceitar cegamente a “palavra do técnico” quando o histórico dele coloca em risco a imparcialidade do julgamento.

A “câmera escondida” do pai (Maharaj v. Wilfred-Jacob)

Imagine um pai que, durante as visitas, filma secretamente as interações com os filhos e a mãe para tentar provar que está sendo perseguido. Foi o que aconteceu no caso Maharaj. Normalmente, a Justiça rejeitaria esses vídeos editados e unilaterais, pois são fáceis de manipular (quem filma escolhe o ângulo e o momento).

Porém, a Corte Superior de Justiça de Ontário aplicou um standard inteligente de peso probatório. O tribunal só aceitou os vídeos porque eles foram analisados por um órgão independente, o “Advogado da Criança” (Children's Lawyer). Ao passarem pelo crivo de um terceiro imparcial, os vídeos deixaram de ser propaganda do pai e viraram prova técnica.

O resultado? O tiro saiu pela culatra. A análise isenta dos vídeos mostrou que o comportamento do pai era problemático e prejudicial à criança. A prova que ele produziu para atacar a mãe serviu para condená-lo, mas apenas porque houve um filtro técnico de validação.

Alienação ou Proteção? (D.S.W. v. D.A.W.)

Este caso da Colúmbia Britânica toca na ferida mais exposta das Varas de Família atuais: a acusação de alienação parental. Um pai alegava que o filho adolescente se recusava a vê-lo por culpa da mãe. Ele contratou uma perita particular famosa, defensora da teoria da alienação, que produziu um laudo confirmando a tese do pai.

O juiz Barrow, contudo, não se impressionou com o título da perita, e notou uma falha metodológica grave: a perita sequer havia entrevistado a criança ou lido os depoimentos da mãe. O juiz rejeitou o laudo por falta de base fática.

Ao julgar o mérito, o magistrado usou o standard da “preponderância de probabilidades”. Verificou o conjunto da obra e viu que a mãe, embora não fosse perfeita, havia feito esforços reais para reaproximar o filho do pai. A conclusão foi: não havia alienação. Havia um pai tentando forçar um vínculo através de um diagnóstico comprado, e uma mãe tentando gerenciar o caos. O pai perdeu porque sua prova técnica era enviesada e a realidade dos fatos (o esforço materno) era “mais provável” do que a tese da conspiração.

A solução para pais que se odeiam (Baker-Warren v. Denault)

Às vezes, a prova mostra que não há heróis nem vilões, apenas dois adultos incapazes de conviver. No caso Baker-Warren, a hostilidade entre os pais era tão “clara e convincente” que a guarda compartilhada tradicional seria um inferno para a criança.

O tribunal, focado no “melhor interesse da criança”, criou o regime de “parentalidade paralela”. É como se a criança vivesse em dois mundos estanques. Pai e mãe não se falam, não decidem juntos, não se cruzam. Cada um reina em seu tempo. Essa decisão radical só foi possível porque o juiz teve a coragem de reconhecer, através das provas, que a cooperação era uma fantasia inalcançável. Insistir no ideal romântico da “família unida pós-divórcio” seria condenar a criança ao fogo cruzado.

4. A realidade brasileira: O perigo das alegações cruzadas

Trazendo a discussão para o Brasil, enfrentamos hoje uma “guerra de narrativas” perigosa. É o fenômeno das alegações cruzadas: a mulher denuncia violência doméstica e, quase automaticamente, o homem responde acusando-a de alienação parental.

Aqui reside o maior erro do nosso Judiciário. Muitos juízes tratam essas duas alegações como se tivessem o mesmo peso. Pior: aplicam o standard penal (que exige certeza absoluta) para a violência doméstica, e um standard leve para a alienação parental.

O resultado é catastrófico: como a violência ocorre entre quatro paredes e raramente tem testemunhas, o juiz diz que “não há provas suficientes” da agressão (porque não há certeza de 100%). Mas, como a mãe tentou afastar o filho do pai (para protegê-lo da violência que o juiz não reconheceu), o juiz considera “provada” a alienação parental. A vítima de violência acaba perdendo a guarda do filho para o agressor.

Isso é uma falha sistêmica de racionalidade. Estudos internacionais mostram que a criança que presencia a violência contra a mãe sofre danos cerebrais e psicológicos tão graves quanto se ela mesma tivesse sido vítima direta. No Brasil, a lei Henry Borel reconhece isso, mas a prática forense ainda engatinha.

O exemplo mineiro: Quando a alienação é real

Para não dizer que a alienação parental nunca existe, o TJ/MG nos deu uma aula de como identificá-la corretamente, usando a lógica da verossimilhança.

No agravo de instrumento 0178794-74.2021.8.13.0000, a 4ª Câmara Cível, o tribunal analisou o caso de uma menina cuja mãe faleceu. Enquanto a mãe era viva, a menina adorava os avós maternos. Assim que a mãe morreu e começou a disputa pela herança, o comportamento da menina mudou da água para o vinho: passou a odiar os avós maternos, sem nenhum motivo aparente.

O tribunal não precisou de uma confissão do pai. Usou a linha do tempo. A mudança brusca de comportamento coincidiu exatamente com o interesse financeiro do pai, sem nenhuma outra causa que explicasse a rejeição. Pela “preponderância das evidências”, ficou claro que o pai estava manipulando a órfã. O dolo de alienar foi provado pelos fatos circunstanciais, não por prova direta. Foi uma decisão justa, baseada em lógica, não em adivinhação.

5. Por uma Justiça que proteja a criança

O que propomos não é importar leis estrangeiras, mas importar a racionalidade. O Direito de Família brasileiro precisa urgentemente adotar o princípio do in dubio pro infans (na dúvida, a favor da criança) como regra de desempate probatório.

Se há dúvida razoável sobre se um pai é abusador ou não, o juiz não pode aplicar a presunção de inocência criminal e forçar a criança a conviver com ele. O risco de entregar uma criança a um abusador (um erro fatal e irreversível) é muito mais grave do que o risco de suspender temporariamente as visitas de um pai inocente (um erro reparável).

A “certeza” absoluta é um luxo que a intimidade familiar raramente oferece. Ao exigirmos provas impossíveis de vítimas de violência doméstica, estamos lavando as mãos como Pôncio Pilatos. A Justiça não pode se dar ao luxo do non liquet (não decidir). Ela precisa decidir com base na melhor probabilidade, protegendo quem não tem voz.

Adotar standards probatórios claros - como a verossimilhança preponderante para medidas de proteção - é o único caminho para que o processo de família deixe de ser um instrumento de revitimização e passe a ser, de fato, um escudo para os vulneráveis. As histórias de D.S.W., KK, Baker-Warren e da órfã mineira nos mostram que é possível julgar o invisível, desde que se usem os óculos corretos.

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Nota sobre as fontes

Todas as informações fatuais e jurídicas citadas neste artigo baseiam-se no estudo “Entre a Intimidade do Lar e a Decisão Judicial: Standards Probatórios no Direito de Família à Luz do Direito Comparado”, de nossa autoria, ainda no prelo, com referências diretas ao texto original.

Beatrice Merten

Defensora Pública do Estado do Rio de Janeiro. Pós Graduada e Mestranda em Direito.

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