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Autonomia patrimonial e seus limites: A desconsideração da personalidade jurídica nas holdings familiares

Em quais condições a autonomia patrimonial da holding familiar deixa de produzir efeitos jurídicos próprios?

2/12/2025
Raphael Marcelino e Giulia Bastos

1. Estrutura e função da autonomia patrimonial nas holdings familiares

A autonomia patrimonial constitui fundamento estruturante do Direito Societário e estabelece a separação entre o patrimônio da pessoa jurídica e o patrimônio de seus sócios, de forma a garantir que obrigações assumidas pela sociedade não recaiam automaticamente sobre o acervo pessoal dos indivíduos que a compõem. A dissociação, positivada no art. 49-A do CC1, viabiliza a limitação de responsabilidade, favorece o investimento e assegura continuidade às atividades econômicas. No âmbito das holdings familiares, essa autonomia assume dimensão estratégica, pois essas sociedades são criadas, predominantemente, para centralizar ativos, organizar a administração patrimonial e estruturar a sucessão entre gerações de forma eficiente e previsível.

A expansão das holdings no Brasil reflete a busca por mecanismos que permitam racionalizar a gestão patrimonial, antecipar a partilha, evitar litígios hereditários e conferir unidade administrativa aos bens familiares. A integralização de imóveis, participações societárias e demais ativos em uma única sociedade facilita a gestão, reduz custos sucessórios e profissionaliza a tomada de decisões. Além disso, contratos sociais e acordos de quotistas possibilitam a padronização de regras de governança, mitigando conflitos internos e permitindo uma administração mais estável.

Entretanto, a autonomia patrimonial não é um direito absoluto. Sua legitimidade depende de observância à boa-fé objetiva, à função social da pessoa jurídica e à coerência entre o objeto social e os atos praticados2. A utilização da holding como mero repositório de bens pessoais, a realização de transferências patrimoniais desprovidas de causa econômica ou a mistura entre contas e despesas pessoais e societárias descaracterizam a separação patrimonial e indicam confusão entre as esferas econômicas dos sócios e da sociedade.

Com a edição da lei da liberdade econômica3, o art. 50 do CC passou a adotar critérios mais objetivos para identificação de abuso, delimitando as hipóteses de desvio de finalidade e de confusão patrimonial. No contexto das holdings familiares, tais parâmetros são especialmente relevantes, pois permitem distinguir o planejamento patrimonial legítimo das práticas voltadas à blindagem indevida. Assim, a autonomia patrimonial permanece como regra, mas sua manutenção exige substância econômica, escrituração regular, separação real entre bens e adequação da sociedade à finalidade para a qual foi constituída.

2. Desconsideração da personalidade jurídica e sua incidência nas holdings familiares

A desconsideração da personalidade jurídica é técnica excepcional4 destinada a afastar, de forma pontual, a autonomia patrimonial quando constatado que a pessoa jurídica foi utilizada como instrumento de fraude, abuso ou desvio de finalidade. Não se trata de sanção, mas de mecanismo de recomposição da integridade das relações jurídicas, voltado a impedir que a estrutura societária seja manipulada para frustrar credores ou para ocultar patrimônio. Nos termos do art. 50 do CC5, exige-se demonstração concreta de desvio de finalidade ou confusão patrimonial, sendo insuficiente a mera inadimplência ou a existência de dívida.

À luz do CC, desvio de finalidade e confusão patrimonial constituem categorias autônomas, embora frequentemente verificadas de forma cumulativa. O desvio de finalidade6 se relaciona ao emprego consciente da pessoa jurídica para objetivos incompatíveis com sua função social ou econômica, revelando descompasso entre a finalidade declarada e o uso efetivo da estrutura societária. Já a confusão patrimonial7 diz respeito à ausência de separação material entre os patrimônios social e pessoal, evidenciada por movimentações financeiras indiscriminadas, uso comum de bens e inexistência de escrituração regular. Enquanto o primeiro critério recai sobre o propósito anômalo da utilização da pessoa jurídica, o segundo incide sobre a forma irregular de administração dos ativos8. A análise conjunta desses elementos costuma reforçar o diagnóstico de abuso e evidenciar a perda de substância econômica da autonomia patrimonial.

A partir dessa distinção, o regime jurídico brasileiro organiza a superação da personalidade jurídica sob diferentes modelos teóricos. A teoria maior, positivada no art. 50 do CC, é a regra geral e exige demonstração concreta de abuso, seja por desvio de finalidade, seja por confusão patrimonial9. Por sua natureza restritiva, atua como filtro rigoroso, reservando o afastamento da autonomia patrimonial às hipóteses nas quais a pessoa jurídica foi efetivamente manipulada para impedir a satisfação de obrigações. 

Em contraposição, a teoria menor, aplicável apenas em microssistemas específicos - como o Direito do Consumidor e o Direito Ambiental -, permite a desconsideração com base na insolvência ou na evidente dificuldade de reparação do dano, independentemente de demonstração de fraude ou abuso. Trata-se de modelo excepcional, justificado por políticas públicas de proteção reforçada10.

A desconsideração inversa11, por sua vez, opera de maneira oposta à desconsideração clássica: em vez de atingir o patrimônio dos sócios para responsabilizar a sociedade, atinge-se o patrimônio da sociedade para satisfazer dívidas pessoais do sócio. Tal modalidade se mostra particularmente relevante nas holdings familiares, pois é comum que o sócio devedor transfira bens pessoais para a sociedade, de forma a esvaziar seu acervo individual e criar aparência de insolvência. Nessas hipóteses, a pessoa jurídica deixa de desempenhar função de organização patrimonial para se tornar instrumento de blindagem indevida, justificando sua superação.

Nas holdings familiares, os tribunais, em especial o TJ/SP, têm identificado padrões específicos de abuso, como transferências de bens realizadas logo após o surgimento de obrigações relevantes, ausência de atividade operacional, utilização da sociedade como prolongamento patrimonial dos sócios e esvaziamento do acervo individual por meio de integralizações artificiais. A caracterização dessas práticas evidencia manipulação da pessoa jurídica e reforça a pertinência da aplicação da teoria maior e da desconsideração inversa como formas adequadas de contenção do abuso12.

A incidência da desconsideração inversa é particularmente frequente nesse tipo de estrutura, permitindo que o patrimônio da sociedade seja alcançado quando demonstrado que o sócio a utiliza como abrigo artificial de seus bens13. A jurisprudência reconhece sua pertinência especialmente quando a holding concentra a totalidade dos ativos familiares, possui atividade meramente formal ou carece de separação contábil mínima - circunstâncias que evidenciam ausência de autonomia patrimonial substancial.

A análise judicial, portanto, recai sobre a substância econômica da sociedade, sobre a coerência entre a finalidade declarada e as práticas observadas e sobre a existência de separação real entre patrimônio pessoal e patrimônio social. Quando esses elementos não se comprovam, a autonomia patrimonial perde legitimidade, e a desconsideração emerge como instrumento necessário para restabelecer o equilíbrio jurídico, impedir o uso instrumental da pessoa jurídica e assegurar a efetividade da tutela executiva.

3. A jurisprudência e as holdings familiares 

A jurisprudência, especialmente no âmbito do TJ/SP, tem exercido papel determinante na delimitação dos contornos da autonomia patrimonial das holdings familiares, evidenciando a necessidade de análise substancial das operações realizadas. Em diversos julgados, a Corte examinou estruturas societárias constituídas ou reorganizadas em momentos temporalmente próximos ao surgimento de obrigações relevantes14, revelando um padrão de instrumentalização da pessoa jurídica para afastar bens do alcance de credores. Nessas hipóteses, verificou-se que a holding não desempenhava atividade econômica compatível com seu objeto social, atuando meramente como estrutura formal destinada à administração informal de bens utilizados indistintamente pela própria família.

A 13ª Câmara de Direito Privado, nos autos do agravo de instrumento 2100150-52.2023.8.26.0000, sob relatoria do desembargador Simões de Almeida15, representou exemplo expressivo dessa dinâmica. No caso, a holding recebeu imóveis por valores manifestamente irrisórios, os quais foram posteriormente transferidos a descendentes menores e, em seguida, alienados por valores substancialmente superiores. Os montantes obtidos foram direcionados a fundos e aplicações vinculadas aos mesmos beneficiários, demonstrando articulação patrimonial incompatível com uma separação societária legítima. A sequência de atos evidenciou a coexistência de desvio de finalidade e confusão patrimonial, revelando que a sociedade funcionava como mera projeção do patrimônio pessoal do sócio, destituída de substância econômica própria.

De modo convergente, a 3ª Câmara de Direito Privado, nos autos do agravo de instrumento 2145478-68.2024.8.26.0000, sob relatoria da desembargadora Viviani Nicolau16, analisou hipótese em que o sócio-fundador integralizou praticamente todo o seu patrimônio pessoal na holding e, logo em seguida, retirou-se da sociedade, transferindo as quotas aos herdeiros menores. Embora formalmente válida, a operação carecia de propósito econômico legítimo e revelava clara intenção de blindar o acervo patrimonial contra obrigações previamente existentes. Diante da inexistência de atividade econômica real, da administração exclusivamente familiar dos bens e da inequívoca utilização da pessoa jurídica como barreira artificial ao cumprimento de obrigações, o Tribunal aplicou a desconsideração da personalidade jurídica inversa para restabelecer a efetividade da execução.

Os precedentes ilustram a consistência do entendimento segundo o qual a análise judicial deve privilegiar a verdade econômica em detrimento da forma societária. A mera constituição de holding, ainda que acompanhada de documentação regular, não impede o controle jurisdicional sobre a finalidade efetiva da sociedade. Quando a estrutura societária é utilizada para dissimular patrimônio, frustrar credores ou simular separação patrimonial inexistente, a autonomia patrimonial deixa de produzir efeitos próprios, legitimando a superação da personalidade jurídica. Assim, a jurisprudência reafirma que o planejamento patrimonial é legítimo, mas não pode ser utilizado como instrumento para burlar a função econômica e social da pessoa jurídica.

4. Considerações finais

A análise da autonomia patrimonial nas holdings familiares demonstra que a separação entre patrimônio social e pessoal, embora seja pilar fundamental da atividade econômica, encontra limites claros quando a estrutura societária não reflete substância econômica real. O instituto, concebido para conferir segurança e previsibilidade ao planejamento patrimonial, perde legitimidade quando utilizado para desviar bens do alcance de credores ou para aparentar organização patrimonial inexistente. A desconsideração da personalidade jurídica, aplicada com base em critérios objetivos e não como mecanismo sancionatório, torna-se instrumento imprescindível para recompor os efeitos jurídicos distorcidos pelo abuso.

Assim, o planejamento sucessório e patrimonial realizado por meio de holdings familiares permanece lícito e amplamente reconhecido pela jurisprudência. Seu êxito, porém, exige governança adequada, separação efetiva de bens, escrituração idônea e alinhamento entre o objeto social e as práticas adotadas. A desconsideração da personalidade jurídica atua como elemento de equilíbrio, preservando a integridade do sistema jurídico e impedindo que a pessoa jurídica seja empregada como instrumento de blindagem indevida. Assim, garante-se que a autonomia patrimonial continue cumprindo sua função institucional de promover racionalidade econômica e estabilidade patrimonial, sem se transformar em mecanismo para frustrar direitos de terceiros.

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1 Art. 49-A.  A pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores. (Incluído pela Lei n.º 13.874, de 2019) Parágrafo único. A autonomia patrimonial das pessoas jurídicas é um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todos.   (Incluído pela Lei n.º 13.874, de 2019)

2 CARVALHOSA, Modesto. Comentários ao Código Civil: Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2014.

3 BRASIL. Lei n.º 13.874, de 20 de setembro de 2019.Lei da Liberdade Econômica. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/l13874.htm. Acesso em 21 nov. 2025.

4 TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial: sociedades. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2020.

5 Art. 50.  Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.

6 Art. 50 § 1º Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza. (Incluído pela Lei n.º 13.874, de 2019)

7 Art. 50 § 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por: (Incluído pela Lei n.º 13.874, de 2019) I - cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa; (Incluído pela Lei n.º 13.874, de 2019) II - transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e (Incluído pela Lei n.º 13.874, de 2019) III - outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial. (Incluído pela Lei n.º 13.874, de 2019)

8 TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial: sociedades. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2020.

9 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. 2. v. São Paulo: Saraiva, 2020.

10 CARVALHOSA, Modesto. Comentários ao Código Civil: Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2014.

11 MANGANELLI, D. L. Holding familiar como estrutura de planejamento sucessório em empresas familiares. Revista de Direito, v. 8, n. 02, p. 95–118, 2017.

12 NEGRÃO, Ricardo. Manual de direito comercial e de empresa. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2021.

13 FURLAN, Fabio. Blindagem Patrimonial: Holding Familiar, Planejamento Patrimonial e Prevenção de Risco. 2.a ed. –São Paulo: Editora Dialética, 2023.

14 FURLAN, Fabio. Blindagem Patrimonial: Holding Familiar, Planejamento Patrimonial e Prevenção de Risco. 2.a ed. –São Paulo: Editora Dialética, 2023.

15 TJSP - Agravo de Instrumento: 21001505220238260000 Diadema, Relator.: Simões de Almeida, Data de Julgamento: 25/10/2024, 13ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 25/10/2024.

16 TJ-SP - Agravo de Instrumento: 21454786820248260000 Carapicuíba, Relator.: Viviani Nicolau, Data de Julgamento: 17/10/2024, 3ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 17/10/2024.

Raphael Marcelino

Advogado de Direito Empresarial e Contencioso Cível e Estratégico - sócio do escritório Figueiredo & Velloso Advogados Associados.

Giulia Bastos

Advogada no Escritório Figueiredo e Velloso Advogados, graduada e pós-graduanda em Contratos e Empresarial pelo Centro Universitário de Brasília - CEUB.

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