A influência de Portugal sobre o Direito brasileiro não é apenas um fato histórico, é uma realidade viva.
Desde a chegada da esquadra portuguesa em 1500, o ordenamento jurídico nacional se desenvolveu sobre fundamentos lusitanos, criando um corpo normativo que atravessa os séculos. Essa trajetória construiu verdadeira família jurídica luso-brasileira, sustentada por princípios comuns, códigos compartilhados e cultura jurídica mutuamente nutrida.
Embora marcada por forte influência mútua, essa irmandade jurídica teve origem em um contexto de assimetria próprio do processo colonial. A formação do Direito brasileiro, profundamente vinculada à tradição portuguesa, ocorreu em meio a transformações sociais, culturais e institucionais de grande impacto.
Reconhecer a importância de Portugal nesse percurso implica também considerar os efeitos duradouros desse processo histórico.
Raízes fundadoras
O embrião do Direito português surgiu no século XII, no Condado Portucalense, sob influência de matrizes diversas — romana, germânica, canônica e muçulmana. Esse sistema floresceu com o renascimento da ciência jurídica em Bolonha, consolidando-se a partir das Cortes de Coimbra (1211) e da fundação da Universidade de Coimbra, em 1290.
Portugal moldou um modelo jurídico baseado na tradição romano-germânica (civil law), caracterizado por normas codificadas e estruturas hierárquicas. Esse modelo foi transplantado para o Brasil colônia, com as Ordenações Afonsinas, Manuelinas e, sobretudo, as Filipinas, que vigoraram por séculos.
A longevidade desses códigos em solo brasileiro - quase 50 anos além de sua vigência em Portugal - demonstra a força do legado normativo da metrópole.
Ordenações, controle e codificação
Essas Ordenações moldaram o Direito civil, penal, processual e administrativo da colônia.
Mais que organizar a vida jurídica, também perpetuaram estruturas de dominação. Normas sobre herança, propriedade e punição estavam a serviço da ordem colonial, e não da Justiça social.
A substituição por legislações nacionais só ocorreu gradualmente, com o Código Criminal de 1830, o Código de Processo Penal de 1832, o Código Comercial de 1850 e, finalmente, o Código Civil de 1916.
Este último, ainda que influenciado por modelos francês, alemão e argentino, preservava características lusas como o regime supletivo da comunhão universal e a tradição como forma de transferência da propriedade.
Do Iluminismo ao século XXI
O Direito português passou por ciclos de renovação. O Humanismo jurídico favoreceu uma leitura crítica das normas.
A Segunda Escolástica, com nomes como Francisco Suárez, introduziu ideias de soberania popular. O Iluminismo, com a Lei da Boa Razão (1769) e a reforma dos Estatutos da Universidade de Coimbra (1772), racionalizou o ensino jurídico e fortaleceu a primazia da lei sobre o costume.
Essas ideias ecoaram no Brasil.
Juristas como Teixeira de Freitas e Coelho da Rocha foram formados nessa matriz, operando com o Direito Romano, mas divergindo em temas importantes - como usucapião com má-fé ou legitimação de filhos. As discussões travadas por eles anteciparam embates jurídicos que só se resolveriam décadas depois.
O Código Civil de 2002, por sua vez, reafirmou a linhagem luso-brasileira, mas com atualizações: acolheu os direitos da personalidade, a função social da propriedade, o direito de superfície e uma modernização do regime de bens e das normas sucessórias.
Em temas como vocação hereditária do cônjuge e filiação fora do casamento, Brasil e Portugal convergiram novamente - ainda que de forma autônoma.
Ensino, Judiciário e estrutura replicada
A organização do Judiciário e do ensino jurídico brasileiro também reproduziu o modelo português. Tribunais de 1ª e 2ª instância, como as Relações e os Juízes de Fora, foram implantados nas capitanias e províncias. A criação do Tribunal da Relação do Rio de Janeiro, em 1751, exemplifica a tentativa de espelhamento institucional.
Até a criação dos cursos jurídicos no Brasil, em 1827, a formação jurídica ocorria exclusivamente em Coimbra. Mesmo após a independência, a universidade portuguesa permaneceu referência para a elite jurídica do país.
Portugal, hoje
Mais de cinco séculos após o início da colonização, Portugal segue sendo um polo relevante na produção jurídica de língua portuguesa. Mas o tom dos encontros acadêmicos evoluiu: da reprodução à reflexão crítica.
Nos dias 30 de junho e 1º de julho, a cidade de Coimbra sedia o Seminário de Verão, com o tema "Descortinando o Futuro: 30 Anos de Debates Jurídicos".
O evento celebra décadas de intercâmbio acadêmico, mas também propõe novos caminhos — menos eurocêntricos, mais inclusivos e adaptados aos desafios atuais.
Em seguida, de 2 a 4 de julho, Lisboa será palco do XIII Fórum Jurídico, com o tema "O mundo em transformação – Direito, Democracia e Sustentabilidade na Era Inteligente".
A proposta é pensar o Direito do futuro a partir das transformações tecnológicas, climáticas e sociais, com raízes no passado comum, mas sem ignorar os erros históricos e os imperativos de justiça global.
Referências
AMARAL, Francisco. Brasil 500 anos: influência do Direito português no Direito brasileiro. Revista da Academia Brasileira de Letras Jurídicas, Rio de Janeiro, v. 17, p. 85–90, 2000.
JUSTO, António Santos. A influência do direito português na formação do direito brasileiro. Revista Jurídica da FA7, v. 5, p. 197-242, 2008.