Nesta quarta-feira, 17, o STF voltou a analisar, em sessão plenária, a constitucionalidade das alterações promovidas pela lei 14.454/22, que ampliaram a possibilidade de cobertura de tratamentos e procedimentos médicos fora do rol da ANS - Agência Nacional de Saúde Suplementar.
Em abril, o caso foi iniciado com a leitura do relatório e a apresentação das sustentações orais das partes e dos amici curiae.
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Na sessão desta tarde, o relator, ministro Luís Roberto Barroso, votou pela taxatividade mitigada do rol, fixando critérios objetivos para as situações excepcionais. O entendimento foi acompanhado pelo ministro Nunes Marques, que antecipou o voto.
Ministro Flávio Dino, por sua vez, divergiu parcialmente, ao considerar que a abertura prevista no §13 da lei 9.656/98 deve ser interpretada em conjunto com o art. 10 da própria norma, cabendo à ANS regulamentar as exceções.
Para S. Exa., o STF não deve impor filtros adicionais, mas sim preservar a opção legislativa e reforçar a deferência técnica à agência reguladora.
Devido ao adiantado da hora, o julgamento foi suspenso e o caso voltará a ser analisado na sessão de quinta-feira, 18.
Voto do relator
Ao votar, o relator, ministro Luís Roberto Barroso, afirmou que as questões associadas à saúde pública e privada figuram entre os temas mais complexos enfrentados pelo tribunal.
"Não existe solução juridicamente simples nem moralmente barata. Aqui são feitas escolhas, e escolhas dramáticas, porque muitas vezes são as escolhas sobre quem vai viver e quem vai morrer", destacou. Para o ministro, a diretriz de seu voto é assegurar o máximo atendimento possível a quem precisa, preservando a integridade e a sustentabilidade do sistema.
O relator explicou que a definição do rol é fruto de juízo técnico-regulatório complexo, que considera fatores clínicos, assistenciais, operacionais e econômicos. Segundo o ministro, trata-se de um dos julgamentos mais difíceis de sua trajetória no STF, pois "errar a medida em favor de um lado ou de outro pode desproteger gravemente o próprio usuário do sistema".
Assim, votou pela taxatividade mitigada, reconhecendo o rol como parâmetro técnico obrigatório, mas admitindo, em hipóteses excepcionais, a cobertura de tratamentos não listados, desde que observados critérios rigorosos.
O ministro explicou que decisões judiciais que determinam coberturas fora do rol, sem critérios técnicos, afetam a lógica atuarial dos contratos e comprometem a previsibilidade do setor. A saúde suplementar atende mais de 52 milhões de beneficiários no Brasil e responde por cerca de 27% dos gastos em saúde do País, destacou.
Apresentando dados da ANS, Barroso mostrou três ciclos recentes das operadoras: crescimento até 2020 (R$ 18,7 bilhões em resultados líquidos), forte retração em 2021-2022 (com prejuízo de R$ 1,7 bilhão) e recuperação a partir de 2023, atingindo superávit de R$ 18,4 bilhões no segundo semestre de 2025.
Ressaltou ainda o aumento da judicialização (de R$ 1 bilhão em 2020 para R$ 4 bilhões em 2025) e fraudes estimadas em até R$ 34 bilhões anuais.
No exame da lei 9.656/98, Barroso julgou constitucional o §12 do art. 10, que delimita o rol como referência obrigatória para planos contratados após 1999.
Em relação ao §13, porém, entendeu ser necessário dar interpretação conforme à Constituição, por se tratar de dispositivo excessivamente aberto, que cria incerteza regulatória.
Para o relator, a cobertura de tratamentos não listados deve obedecer cumulativamente a cinco condições:
- prescrição por médico ou odontólogo habilitado;
- inexistência de negativa expressa ou pendência de análise da ANS sobre a tecnologia;
- ausência de alternativa terapêutica adequada já prevista no rol;
- comprovação de eficácia e segurança com base em medicina baseada em evidências (ensaios clínicos randomizados, revisões sistemáticas ou meta-análises);
- registro do tratamento na Anvisa.
Esses critérios, afirmou, espelham parâmetros já fixados pelo STF em julgamentos sobre fornecimento judicial de medicamentos pelo SUS (Temas 6 e 1234 da repercussão geral).
"A medicina é una. A avaliação de eficácia e segurança deve ser a mesma, independentemente de se tratar do sistema público ou privado", observou.
Barroso destacou que o Judiciário não pode substituir a função regulatória da ANS, devendo limitar-se a verificar a legalidade das negativas, com apoio técnico do NATJus.
"O Judiciário não pode se transformar na porta principal de entrada das demandas aos planos de saúde", advertiu, reforçando a necessidade de evitar judicialização desnecessária.
Ao final, acompanhado, na integralidade, pelo ministro Nunes Marques, propôs a seguinte tese:
"1. É constitucional a imposição legal de cobertura de tratamentos ou procedimentos fora do rol da ANS, desde que preenchidos os parâmetros técnicos e jurídicos fixados nesta decisão.
2. Em caso de tratamento ou procedimento não previsto no rol da ANS, a cobertura deverá ser autorizada pela operadora de planos de assistência à saúde, desde que preenchidos, cumulativamente, os seguintes requisitos:
(i) prescrição por médico ou odontólogo assistente;
(ii) inexistência de negativa expressa da ANS ou de pendência de análise em proposta de atualização do rol (PAR);
(iii) ausência de alternativa terapêutica adequada para a condição do paciente no rol da ANS;
(iv) comprovação de eficácia e segurança do tratamento à luz da medicina baseada em evidências, necessariamente respaldadas por evidências científicas de alto nível; e
(v) existência de registro na Anvisa.
3. A ausência de inclusão de procedimento ou tratamento no rol da ANS impede, como regra geral, a sua concessão judicial, salvo quando preenchidos os requisitos previstos no item 2, cujo ônus probatório incumbe ao autor da ação. Sob pena de nulidade da decisão judicial, nos termos do art. 489, §1º, V e VI, e art. 927, III, §1º, do CPC, o Poder Judiciário, ao apreciar pedido de cobertura de procedimento ou tratamento não incluído no rol, deverá obrigatoriamente:
(a) verificar se há prova do prévio requerimento à operadora de saúde, com a negativa, mora irrazoável ou omissão da operadora na autorização do tratamento não incorporado ao rol da ANS;
(b) analisar o ato administrativo de não incorporação pela ANS, à luz das circunstâncias do caso concreto e da legislação de regência, sem incursão no mérito técnico-administrativo;
(c) aferir a presença dos requisitos previstos no item 2, a partir de consulta prévia ao Núcleo de Apoio Técnico do Poder Judiciário (NATJUS), sempre que disponível, ou a entes ou pessoas com expertise técnica, não podendo fundamentar sua decisão apenas em prescrição, relatório ou laudo médico apresentado pela parte; e
(d) em caso de deferimento judicial do pedido, oficiar a ANS para avaliar a possibilidade de inclusão do tratamento no rol de cobertura obrigatória."
Veja trecho do voto:
Divergência parcial
Ao votar, ministro Flávio Dino concordou pela taxatividade mitigada, reconhecendo que o rol deve ser observado como referência obrigatória, mas com possibilidade de exceções.
Para o ministro, a saúde suplementar envolve "valores em conflito de grande magnitude", entre garantir a prestação de serviços aos beneficiários e preservar a sustentabilidade do sistema.
Destacou que o tema é dinâmico, influenciado por inovações tecnológicas, envelhecimento populacional e desigualdade social, o que exige constante atualização regulatória.
Dino sustentou que a CF legitima a regulação estatal sobre o setor privado de saúde, em razão de sua relevância pública (arts. 197 e 170). Nesse contexto, considerou que o Congresso já optou por um modelo de taxatividade mitigada, semelhante ao que o STJ vinha aplicando, e que essa escolha deve ser respeitada pelo Supremo.
Assim, acompanhou o relator quanto à constitucionalidade do §12 do art. 10 da lei 9.656/98, que estabelece o rol como referência básica. No entanto, divergiu quanto ao §13, que abre brecha para tratamentos fora do rol.
Barroso havia proposto restringir a aplicação do dispositivo mediante cinco requisitos cumulativos definidos pelo STF.
Dino, por sua vez, entendeu que não cabe ao Supremo criar filtros adicionais: o fechamento da abertura do §13 já está na própria lei, que remete à regulamentação da ANS.
"Não vejo razão para que avancemos para elaborar uma norma detalhada, sendo que a ANS pode e deve, na dicção legal, assim o fazer", afirmou.
Segundo Dino, os incisos do art. 10 já trazem hipóteses de exceção (como exclusão de tratamentos ilícitos ou antiéticos) e o §1º prevê que cabe à ANS regulamentar essas situações.
Assim, a interpretação sistemática do art. 10 e do §13 seria suficiente para assegurar a previsibilidade e a proteção dos beneficiários.
O ministro concluiu pela plena constitucionalidade dos §§12 e 13 do art. 10 da lei 9.656/98, frisando que o segundo deve ser interpretado em conjunto com o §1º, que atribui à ANS o papel de detalhar as exceções.
Para Dino, essa solução preserva a opção legislativa e reforça a deferência técnica à agência reguladora.
Veja trecho do voto:
A quem compete?
Após a exposição dos votos, Barroso e Dino travaram breve debate em plenário.
O relator destacou que a própria ANS, em resoluções anteriores, havia adotado postura mais restritiva que a do Supremo, defendendo, por isso, a fixação de critérios objetivos pela Corte.
Dino, contudo, rebateu que a tarefa deve permanecer com a agência reguladora, cuja função é justamente disciplinar as exceções ao rol.
Veja o momento:
O caso
A ação foi ajuizada pela Unidas - União Nacional das Instituições de Autogestão em Saúde, que questiona a validade da lei 14.454/22, responsável por alterar dispositivos da legislação dos planos de saúde.
A entidade sustenta que a norma amplia de forma indevida as obrigações das operadoras, desconsiderando o caráter complementar da saúde suplementar previsto no art. 199, § 1º da CF, e impõe encargos superiores aos exigidos do próprio SUS. Segundo a autora, isso compromete a lógica contratual e atuarial que sustenta o setor.
O pedido principal é pela declaração de inconstitucionalidade material de dois pontos específicos: a expressão "contratados a partir de 1º de janeiro de 1999" e a integralidade do § 13 do art. 10 da lei 9.656/98, que passou a tratar o rol de procedimentos da ANS como meramente exemplificativo.
Para a Unidas, essa interpretação impõe às operadoras a obrigação de cobrir tratamentos não previstos expressamente, gerando incertezas e aumentando a judicialização.
Subsidiariamente, requer uma interpretação conforme à Constituição, condicionando a cobertura excepcional à existência de protocolo de pedido na ANS, mora irrazoável da agência e inexistência de alternativa terapêutica já incorporada.
- Processo: ADIn 7.265
Desde 2022...
A controvérsia sobre a natureza do rol da ANS se intensificou em 2022, quando o STJ, após divergência entre suas turmas, fixou entendimento pela taxatividade mitigada, admitindo exceções em hipóteses específicas.
Poucos meses depois, o Congresso reagiu com a lei 14.454/22, que passou a tratar o rol como exemplificativo, ampliando a cobertura para procedimentos não listados em determinadas condições e reforçando a aplicação do CDC aos contratos de saúde suplementar.
Agora, a constitucionalidade dessa lei está em análise no STF.