Nesta quarta-feira, 24, o STF retomou o julgamento sobre os parâmetros para a quebra de sigilo de usuários da internet com base em pesquisas realizadas em sites de busca.
Na ocasião, ministros Gilmar Mendes e Nunes Marques apresentaram votos no sentido de admitir a medida em caráter excepcional, restrita a investigações de crimes hediondos.
Com isso, formaram uma "terceira corrente" no colegiado, entre as posições já delineadas.
Em abril, ministro André Mendonça acompanhou a relatora, ministra Rosa Weber (atualmente aposentada), para condicionar a medida a critérios estritos e objetivos, reforçando a necessidade de proteção aos direitos fundamentais.
Por outro lado, ministros Alexandre de Moraes e Cristiano Zanin defenderam a possibilidade da quebra de sigilo sempre que houver fundada suspeita de prática de ilícito penal, sem restringir a técnica apenas a determinados crimes.
O julgamento foi suspenso devido ao adiantado da hora e seguirá na sessão plenária de quinta-feira, 25.
Confira o placar:
Caso Marielle Franco
No caso, o Google recorreu ao STF contra decisão do STJ que restabeleceu a quebra de sigilo de usuários que pesquisaram termos ligados a Marielle Franco entre 10 e 14 de março de 2018. A medida buscava identificar IPs e identificadores de dispositivos, visando auxiliar na investigação do assassinato da vereadora.
O STJ entendeu que a ordem era fundamentada, proporcional e restrita a um recorte temporal e geográfico. Afirmou ainda que os dados não úteis seriam descartados, preservando os direitos fundamentais.
O Google, porém, alegou que a medida viola a privacidade dos usuários, por ser genérica e sem relação direta com o crime.
Argumentou que os dados buscados estão protegidos pela CF e que os termos pesquisados são comuns e ligados a figura pública, o que poderia afetar injustamente muitos inocentes.
A empresa alertou ainda para o risco de que tal decisão crie precedentes perigosos, permitindo quebras de sigilo amplas em futuras investigações, e destacou a importância da proteção de dados diante da crescente digitalização.
Voto da relatora
Em 2024, ministra Rosa Weber, relatora do caso, votou pela anulação de parte da decisão da 4ª vara Criminal do RJ. Facultou que nova decisão seja proferida, desde que respeite direitos fundamentais à privacidade, proteção de dados pessoais e devido processo legal.
S. Exa. propôs a seguinte tese:
"À luz dos direitos fundamentais à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao devido processo legal, o art. 22 da Lei 12.965/2014 (Marco Civil da Internet) não ampara ordem judicial genérica e não individualizada de fornecimento dos registros de conexão e de acesso dos usuários que, em lapso temporal demarcado, tenham pesquisado vocábulos ou expressões específicas em provedores de aplicação."
A ministra argumentou que não há base legal suficiente para uma medida tão ampla que afeta os dados pessoais de muitos usuários.
Além disso, considerou a medida desproporcional, pois o pedido incluía dados de todos que pesquisaram o nome da vereadora Marielle Franco no Google após seu homicídio, independentemente de envolvimento ilícito.
Rosa Weber destacou que essa ação comprometeria a privacidade de muitos usuários sem relação com os crimes investigados, caracterizando uma devassa indevida e desproporcional.
- Veja o voto da ministra.
Acompanhando a relatora
Em abril, ao votar, ministro André Mendonça manifestou preocupação com a possibilidade de que a quebra de sigilo telemático de grupos indeterminados de pessoas acabe se transformando em uma espécie de "fishing expedition" - expressão usada para designar investigações genéricas e amplas, sem base objetiva ou indícios concretos, em busca de eventuais ilícitos.
Para o ministro, autorizar medidas desse tipo representa risco direto a direitos fundamentais como a intimidade e o devido processo legal.
S. Exa. defendeu critérios estritos e objetivos para qualquer requisição judicial, como especificação do tipo de dado solicitado, correlação clara com a investigação e descarte das informações que não tenham relevância para o caso
Divergência
Ministro Alexandre de Moraes, ao apresentar voto-vista, abriu divergência.
Defendeu a possibilidade de quebra de sigilo de dados de buscas na internet, desde que a medida esteja amparada por indícios de ilícito, decisão judicial fundamentada e critérios de proporcionalidade. Ressaltou que nenhum direito fundamental é absoluto e que o sigilo não pode servir de escudo para práticas ilícitas.
Propôs a seguinte tese:
"I. É constitucional a requisição judicial de registros de conexão, ou de registros de acesso a aplicativos de internet, para fins de investigação criminal ou instrução processual penal, inclusive o fornecimento de dados pessoais por provedores, em cumprimento de medida de busca reversa por palavra-chave, com fundamento no art. 10 e no art. 22 da lei 12.965/14 (marco civil da internet), desde que preenchidos os requisitos de:
a. fundados indícios de ocorrência do ilícito;
b. motivação da utilidade dos registros solicitados para fins de investigação ou instrução probatória; e
c. período ao qual se referem os registros.
II. A ordem judicial poderá se referir a pessoas indeterminadas, mas determináveis, a partir de outros elementos de provas obtidos previamente na investigação e que justifiquem objetivamente a medida, desde que necessária, adequada e proporcional, justificando-se ainda a inexistência de outros meios menos invasivos para obter tais informações e a conveniência da medida em relação à gravidade do delito investigado.
III. A determinação judicial conterá, com precisão, os indexadores utilizados para a busca pretendida na base de dados do provedor, devendo a suspeita estar suficiente e formalmente fundamentada, de maneira proporcional. Esses indexadores podem envolver tanto as palavras-chave pesquisadas por indivíduos como determinações geográficas e temporais da busca."
Voto-vista
Nesta quarta-feira, 24, ao apresentar voto-vista, ministro Gilmar Mendes ressaltou que o tema exige do Supremo equilíbrio entre a proteção de dados e a segurança pública, diante dos novos desafios do chamado constitucionalismo digital.
O ministro aproveitou para refletir sobre o papel do STF e as críticas recorrentes de "ativismo judicial". Observou que muitas decisões da Corte são rotuladas dessa forma, ainda que inseridas nas competências constitucionais previstas no art. 102 da CF.
Reconheceu que essas atribuições podem, em certos momentos, se sobrepor às funções do Legislativo e do Executivo, mas destacou que isso decorre da própria moldura institucional traçada pela CF. Para Gilmar, cabe ao Supremo atuar, conforme o caso, como árbitro de conflitos políticos, legitimador de políticas públicas e, sobretudo, guardião dos direitos fundamentais.
Na sequência, o ministro retomou o debate histórico sobre a omissão inconstitucional. Recordou que, antes de 1988, predominava a visão de que normas dependentes de regulamentação legislativa configuravam "questão política" insuscetível de controle judicial. O constituinte, contudo, criou o mandado de injunção e a ação direta por omissão, instrumentos voltados a assegurar tutela subjetiva e objetiva diante da inércia legislativa.
A jurisprudência, lembrou, evoluiu de uma postura inicial de autocontenção para soluções mais pragmáticas.
Gilmar também mencionou sua atuação no Congresso durante a elaboração da lei 9.868 e observou que a Constituição brasileira, extensa e detalhada, reflete a experiência histórica de superação dos "entulhos autoritários" após 1988. Ilustrou esse ponto com a anedota do "taxista" na Constituinte, que simbolizava a percepção popular de que a CF contemplava uma miríade de demandas sociais.
Em seguida, o ministro abordou diretamente a questão em análise: a possibilidade de quebra de sigilo de dados de pessoas indeterminadas.
Enfatizou que o tema deve ser examinado à luz do direito fundamental à proteção de dados pessoais, autônomo em relação à privacidade.
Para Gilmar, o desafio não é regular cada nova tecnologia, mas estabelecer parâmetros gerais: necessidade de ordem judicial, proporcionalidade, tempo de duração da medida, limites de divulgação e mecanismos de controle.
Destacou que o Brasil ainda carece de uma lei específica sobre proteção de dados para fins penais, embora já exista anteprojeto em tramitação, e que a LGPD oferece princípios que devem orientar também as investigações criminais.
Afirmou, ainda, que a proteção de dados se coloca igualmente contra o Estado no processo penal, funcionando como barreira contra práticas de vigilância incompatíveis com a dignidade humana.
No plano prático, o ministro apontou a necessidade de balizas mais claras para a medida.
Defendeu que a quebra coletiva de dados em buscas reversas só seja admitida em investigações de crimes hediondos, dado o peso dos bens jurídicos envolvidos, e criticou o uso da técnica para delitos de baixo potencial ofensivo. Também propôs delimitar a tese especificamente às buscas reversas em provedores de internet, evitando generalizações para outros tipos de dados.
Além disso, destacou a importância de restrições temporais e semânticas - a medida deve se limitar a termos ligados ao crime e ao período imediatamente anterior à sua prática.
Advertiu que a busca reversa pode inverter a lógica tradicional da investigação, afetando garantias como a presunção de inocência e a vedação de autoincriminação, uma vez que pode atingir pessoas sem vínculo com o delito.
Por fim, sublinhou que a medida precisa estar sempre fundamentada em decisão judicial, nos termos do art. 22 do marco civil da internet. Embora esse dispositivo não trate diretamente de dados de pessoas indeterminadas, dele se extraem requisitos indispensáveis: autorização judicial, indícios da prática de ilícito, demonstração da utilidade da diligência e delimitação temporal.
Citando doutrina especializada, destacou que tais diligências não podem ser informais, aleatórias ou utilizadas como primeira medida investigativa, devendo respeitar a lógica da subsidiariedade: só são admissíveis em estágios mais avançados da apuração e quando estritamente necessárias.
Segundo Gilmar, cabe à autoridade policial demonstrar a utilidade e indispensabilidade da medida, enquanto o Judiciário deve avaliar sua proporcionalidade, ponderando o impacto sobre os direitos dos afetados e exigindo o descarte dos dados irrelevantes.
Essa salvaguarda, afirmou, evita que informações de terceiros alheios ao crime sejam utilizadas para formar dossiês ou em futuras investigações.
No caso concreto, considerou que os elementos apresentados pela polícia - restritos a buscas por termos relacionados a Marielle Franco, em período delimitado - atendiam a esses requisitos. Havia indícios da prática de crime hediondo e utilidade na obtenção dos dados, o que afastaria a ideia de uma devassa especulativa.
Veja trecho do voto:
Dessa forma, Gilmar Mendes acompanhou a divergência inaugurada pelo ministro Alexandre de Moraes e votou por negar provimento ao recurso do Google, sugerindo a incorporação, à tese a ser fixada, de salvaguardas como:
- a exigência de autorização judicial fundamentada;
- a restrição da medida a investigações de crimes hediondos;
- a possibilidade de atingir pessoas indeterminadas, mas determináveis a partir de outros elementos já colhidos;
- a delimitação precisa de termos e período de busca; e
- o descarte de dados sem relação com o inquérito.
Assim, propôs a seguinte tese:
"1) É constitucional a requisição judicial de registros de conexão ou de registros de acesso a aplicativos de internet para fins de investigação criminal ou instrução processual penal, inclusive o fornecimento de dados pessoais por provedores, em cumprimento de medida de busca reversa por palavra-chave, com fundamento no art. 10 e no art. 22 da Lei 12.965/2014 (Marco Civil da Internet), desde que preenchidos os requisitos de (a) fundados indícios de ocorrência do ilícito; (b) motivação da utilidade dos registros solicitados para fins de investigação ouinstrução probatória; (c) período ao qual se referem os registros.
2) Em casos de investigações relativas a crimes hediondos (Lei 8.072/90) e na hipótese específica de busca reversa de dados de pesquisa em buscadores da internet, a ordem judicial poderá se referir a pessoas indeterminadas, mas determináveis a partir de outros elementos de provas, obtidos previamente na investigação e que justifiquem objetivamente a medida, desde que necessária, adequada e proporcional, justificando-se, ainda, a inexistência de outros meios menos invasivos para obter tais informações e a conveniência da medida em relação à gravidade do delito investigado.
3) A determinação judicial conterá, com precisão, os indexadores utilizados para a busca pretendida na base de dados do provedor, devendo a suspeita estar suficiente e formalmente fundamentada, de maneira proporcional. Esses indexadores podem envolver tanto as palavras-chave pesquisadas por indivíduos como determinações temporais da busca.
4) A busca reversa e coletiva de dados de pesquisa não deve ser utilizada como primeira medida investigativa, sendo condicionada, ainda, à delimitação precisa dos termos e do período de busca, ao descarte dos dados de pessoas não vinculadas ao inquérito e à indicação das razões que justifiquem a proporcionalidade da medida por parte da autoridade policial ou do Ministério Público, com análise deste requisito na decisão judicial autorizativa."
Proposta "conciliatória"
Também nesta tarde, ministro Nunes Marques afirmou buscar posição de conciliação entre as preocupações já expostas no plenário: de um lado, o risco de criação de um precedente perigoso para direitos fundamentais; de outro, a necessidade de não inviabilizar instrumentos relevantes de investigação criminal.
O ministro contextualizou que a Constituição de 1988 e a lei 9.296/96 (interceptação telefônica) foram concebidas em ambiente analógico, anterior ao Google (1998) e à expansão da internet no Brasil (a partir de 1995). Por isso, considerou anacrônica qualquer leitura da CF que desconsidere o mundo digital.
Hoje, a internet funciona como infraestrutura da vida social, do consumo ao exercício da cidadania, e os motores de busca são a "porta de entrada da web", organizando o caos informacional e operando como extensão da cognição.
Esse ganho de autonomia, porém, traz novas vulnerabilidades: cada pesquisa deixa rastros que podem revelar identidade e padrões de comportamento - dados já explorados comercialmente por plataformas, o que indica que a exposição não nasce apenas com a requisição judicial.
O que o STF julga, frisou, é o uso estatal dessas informações dentro de parâmetros constitucionais.
No mérito, explicou a busca reversa digital: diferentemente de mandados tradicionais (focados em suspeitos), parte-se de palavras-chave (nome da vítima, endereço do crime) para identificar potenciais envolvidos - técnica comparável aos mandados geográficos (geofence), mas baseada no termo pesquisado, não no local.
Críticos a veem como "pente-fino" ou "mandado geral digital" por varrer dados de muitos inocentes; ainda assim, lembrou que lógicas semelhantes existiam no mundo offline (listas de compradores de calibre raro, registros de pedágio, listas de passageiros etc.).
Citou que o STF já admitiu modalidade análoga ao julgar a ADIn 5.642, permitindo certas requisições com controle judicial posterior para reprimir crimes contra a liberdade pessoal.
Reconheceu, porém, que o ambiente digital amplia exponencialmente a escala e a intrusão: históricos de busca tocam o âmbito íntimo do pensamento (hipóteses, medos, convicções), exigindo salvaguardas robustas para evitar transformar curiosos em suspeitos.
Mesmo assim, considerou excessivo proibir de forma absoluta a técnica, pois nenhum direito é absoluto e a privacidade precisa ser conciliada com outros valores constitucionais (vida, liberdade das vítimas). Comparou a contextos cotidianos (blitz, câmeras de vigilância) em que inocentes podem figurar em investigações sem que isso, por si só, viole a intimidade.
Distinguiu a busca reversa da interceptação em tempo real (mais invasiva). O histórico de buscas é dado estático, já armazenado, o que, com recortes adequados, contribui para minimização de dados.
Registrou que a LGPD (art. 4º, III) exclui segurança pública de sua aplicação direta e remete à legislação específica; no caso, o marco civil da internet autoriza requisições judiciais para fins penais.
Concluiu que a busca reversa digital é compatível com a Constituição sob regime de estrita excepcionalidade, propondo condicionantes:
- ordem judicial prévia e fundamentada, com clara demonstração de necessidade e proporcionalidade;
- delimitação estrita dos termos, proibindo expressões genéricas;
- recorte temporal e, quando possível, geográfico, reduzindo o universo afetado;
- acesso progressivo aos dados, começando por informações pseudonimizadas e só permitindo a desanonimização mediante justificativa adicional;
- subsidiariedade, com comprovação de que outros meios menos intrusivos se mostraram ineficazes;
- restrição a crimes hediondos ou equiparados;
- destruição supervisionada dos dados de pessoas não envolvidas;
- notificação posterior aos atingidos, sempre que possível;
- controle jurisdicional reforçado, inclusive com possibilidade de contraditório sobre a pertinência dos termos empregados.
Veja trecho do voto:
- Processo: RE 1.301.250