As sustentações orais realizadas no STF no julgamento da trama golpista, pela 1ª turma, colocaram no centro do debate uma questão recorrente: é pertinente citar literatura, música e cultura em sustentações orais?
Em sustentação realizada nesta quarta-feira, 12, o advogado Igor Laboissiere Vasconcelos Lima, que defende um dos réus do núcleo 3 da trama golpista, fez uma série de citações literárias, e recorreu a Tolkien e Dostoiévski para construir sua tese defensiva.
Em sua fala, o advogado afirmou buscar uma ilustração “vinda da literatura clássica e impressionantemente entusiasmante de Tolkien”, mencionando As Duas Torres, de O Senhor dos Anéis. Em seguida, citou Crime e Castigo para reforçar a insuficiência probatória: “de cem coelhos nunca se faz um cavalo, de cem suspeitas nunca se constrói uma prova”.
O presidente da sessão, ministro Flávio Dino, respondeu com nova referência cultural. Citou Ferreira Gullar para dizer que “a arte existe porque a vida não basta”. E recordou uma palestra da ministra Cármen Lúcia, em que ela evocou Drummond: “as leis não bastam, os lírios não nascem das leis”.
Dino reconheceu que há controvérsia no meio jurídico acerca das citações durante sustentação, mas elogiou o uso das imagens literárias: “gostei muito daquela de Crime e Castigo… sempre digo aos meus alunos: leiam Crime e Castigo para entender a produção de prova”.
Assista:
Petições literárias
O defensor público Marcel Mangili, de Santa Catarina, domina a técnica de lançar referências literárias, musicais e filosóficas em suas petições. “Tento integrá-las às minhas manifestações de modo objetivo e funcional – sem pedantismo”, disse ao Migalhas.
Doutor em Direito, ele faz críticas à linguagem do universo jurídico, ao afirmar que é, de modo geral, "bolorenta, rebuscada e cafona". "Procuro fazer tudo com mais leveza", diz.
Em um processo, o defensor citou Jean-Paul Sartre para descrever a conduta de um réu acusado de transmitir HIV à companheira. Da noção de “má-fé” em O Ser e o Nada, extrai a ideia de que o réu escolheu se enganar e não fazer o exame para fugir da angústia, mascarando a própria condição de saúde, causando, com isso, danos irreparáveis à autora.
Em outra peça (5023208-37.2022.8.24.0090), ele cita Tom Jobim e o clássico Samba de uma Nota Só para sustentar a inépcia da inicial: “quanta gente existe por aí que fala tanto e não diz nada”. Para ele, as longas 26 páginas dos autores “nada detalham”, justificando a alegação de falha técnica na petição.
O defensor ainda recorre a Agatha Christie, ironizando que, ao falarem em envenenamento, os autores “não oferecem sequer pistas sobre local, data ou horário em que a ré teria lançado cianureto no chá”.
Em um terceiro processo (0302153-15.2017.8.24.0091), Mangili evoca Sísifo, de Albert Camus, e o personagem K., de O Castelo, de Kafka, para ilustrar o sentimento dos autores que buscavam usucapião: empurravam a pedra montanha acima sem fim e, como o agrimensor de Kafka, permaneciam aprisionados na burocracia. Após as referências, o defensor conclui: os autores não são Sísifo nem K., mas compreendem perfeitamente como eles se sentem diante das exigências excessivas impostas pela Vara de Registros Públicos.
Desconfortos e críticas
Apesar do brilho retórico e da erudição evidente, nem todos veem tais recursos com bons olhos. Em manifestação no processo 0927850-43.2010.8.24.0023, o procurador do Município de Florianópolis, Carlos Flores, criticou o estilo: “A exceção é tão pródiga em colacionar poesias que acabou deixando de detalhar melhor a situação fática.”
Ele pediu ao juiz que determinasse a emenda da peça, chegando a solicitar a exclusão das poesias inseridas pelo defensor, por considerá-las, em sua visão, “ofensivas ao próprio Judiciário”.
Forma e conteúdo
O uso de literatura, música e arte no meio jurídico não se limita às petições. Migalhas já registrou uma série de casos em que a própria sustentação oral se transforma em espetáculo criativo.
Um exemplo marcante foi o episódio envolvendo o advogado José Cardoso Júnior, que fez sustentação em forma de poesia perante a 3ª turma do TRT da 4ª Região.
Apesar de não alterar o resultado do julgamento, sua performance arrancou elogios: “Cumprimento pela sustentação diferenciada e criativa, que revela leveza”, disse o desembargador Ricardo Carvalho Fraga.
Relembre:
O relator, Gilberto Souza dos Santos, completou: “Responder à altura fica difícil; talento de poeta não é dado a todos”.
A desembargadora Madalena Telesca concluiu: “Ouvir poesia nesse adiantado da hora faz muito bem”.
Casos assim mostram que, quando bem utilizadas, referências artísticas têm potencial para humanizar o processo, aproximar a Justiça da realidade cultural do país, e, muitas vezes, aliviar o peso de temas áridos.
Debate aberto
Seriam as citações literárias um instrumento legítimo de persuasão jurídica ou apenas um ornamento que ameaça a objetividade? Há quem veja ali uma oportunidade para um corte de Instagram, ou, quem sabe, impressionar algum ministro com um gosto literário comum.
De fato, a discussão está longe de um desfecho. Não há resposta definitiva - e talvez não deva haver.
O que se sabe é que, do Supremo à Defensoria, das varas cíveis às trabalhistas, a literatura segue atravessando os corredores do Judiciário. Enquanto o debate segue aberto, quem sabe esteja na arte a resposta para esta e outras dúvidas.