Migalhas Quentes

Direito Penal deve tutelar o humor? Veja o que dizem especialistas

Pena de prisão em casos de comédia ofensiva dividem opiniões no meio jurídico.

21/7/2025

Em outros tempos, a piada parecia não reconhecer fronteiras. Mesmo quando de "mau gosto", o humor era frequentemente protegido sob o manto da liberdade de expressão, servido como válvula de escape e até escudo contra acusações de preconceito. Hoje, o cenário é outro.

Casos recentes, como o envolvendo o comediante Leo Lins, condenado a oito anos de prisão, evidenciam uma crescente judicialização da comédia, sobretudo quando dirigida a grupos historicamente oprimidos.

Que o humor encontra limites nos direitos da personalidade é algo cada vez mais pacificado no meio jurídico. Mas uma pergunta incômoda e necessária ainda se impõe: o Direito Penal é o instrumento mais adequado para lidar com os excessos do humor?

Para uns, criminalizar o riso ameaça a democracia; para outros, é questão de dignidade.(Imagem: Arte Migalhas)

Prisão não é solução

Para os doutores em Direito Bruno Leitão e Francisco França, em artigo publicado no Boletim IBCCRim a resposta é negativa.

Eles defendem que o Direito Penal não deve ser a primeira trincheira na resposta a piadas ofensivas. Mais do que isso: uso desmedido pode comprometer o próprio alicerce da liberdade democrática. A crítica dos autores não relativiza a gravidade das ofensas, mas propõe enfrentá-las de forma juridicamente proporcional e culturalmente eficaz.

Os autores apontam que a liberdade de expressão, como todo direito fundamental, não é absoluta. Os contornos convivem com outros valores constitucionais: os direitos de terceiros, a dignidade da pessoa humana, a igualdade.

Quando o humor ridiculariza minorias, pode reforçar estigmas e atingir profundamente a autoestima coletiva de grupos vulnerabilizados. Ainda assim, eles defendem que nem toda falha ética justifica o acionamento da esfera penal.

A CF veda a censura prévia (art. 5º, IX), e o Direito Penal, por sua natureza subsidiária, deve ser acionado apenas quando as demais esferas jurídicas forem insuficientes. 

Os juristas lembram que há instrumentos menos gravosos e eficazes para coibir abusos: ações civis por danos morais, boicotes públicos, perdas contratuais e desmonetização em plataformas.

Além disso, a responsabilização criminal exige prova de dolo específico - o chamado animus injuriandi - e a identificação de vítima determinada (honra subjetiva), requisitos de difícil demonstração em contextos artísticos e performáticos.

Essa exigência ficou evidente em recente decisão que absolveu sumariamente o comediante Vinícius Teixeira Lima, do canal "Live da Ofensa", da acusação de injúria racial.

O juiz de Direito André Luiz Rodrigo do Prado Norcia entendeu que não houve dolo específico, elemento essencial para caracterização do crime previsto no art. 2º-A da lei 7.716/89. O magistrado destacou que, embora as falas tenham sido potencialmente ofensivas, estavam inseridas em um contexto de descontração e ironia, afastando a intencionalidade discriminatória.

Punitivismo simbólico

Segundo os autores do artigo, confiar ao Direito Penal a tarefa de resolver fenômenos culturais, como o racismo recreativo ou a misoginia disfarçada de piada, revela um vício do populismo legislativo: a crença de que criminalizar comportamentos é suficiente para transformá-los. O que se obtém, muitas vezes, é apenas um efeito simbólico.

A ameaça de prisão pode até intimidar manifestações de ódio, mas também pode criar mártires involuntários e inflamar discursos reativos em nome de uma suposta "liberdade irrestrita de expressão".

O caso do humorista Léo Lins ilustra esse paradoxo: após decisões judiciais determinarem a remoção de vídeos com piadas ofensivas, sua base de seguidores cresceu. A controvérsia alimentou sua audiênciam e não o contrário. Para parte do público, Lins passou a encarnar a resistência à censura.

Mais recentemente, no entanto, o caso ganhou novos contornos. Léo Lins foi condenado a oito anos, três meses e nove dias de prisão em regime inicial fechado por incitar preconceito e discriminação durante um show de stand-up. A decisão, proferida pela juíza Federal Barbara de Lima Iseppi, da 3ª vara Criminal de São Paulo/SP, também fixou o pagamento de R$ 303.600 a título de danos morais coletivos.

431791

A ação penal teve origem em denúncia do MPF, que apontou que o humorista publicou vídeos na internet com conteúdos preconceituosos e discriminatórios contra pessoas negras, indígenas, idosos, pessoas com deficiência, homossexuais, judeus, nordestinos, evangélicos, gordos e pessoas que vivem com HIV. O show, intitulado "Perturbador", foi transmitido no YouTube e acumulou mais de três milhões de visualizações.

A juíza rejeitou a tese de que se tratava apenas de conteúdo humorístico. Segundo ela, o fato de ser uma apresentação artística não isenta o réu de responsabilidade. A divulgação em massa extrapolou o teatro e ampliou os danos causados. Para a magistrada, houve dolo, ou seja, intenção deliberada, por parte do humorista.

"Não é humor, é crime"

Na direção oposta à crítica de Leitão e França, vozes do campo jurídico sustentam que o Direito Penal deve, sim, intervir com rigor diante de manifestações que naturalizam a violência simbólica. A criminalista e mestre em Direitos Humanos, Priscila Pamela, afirma que os discursos de Leo Lins ultrapassam o campo da ofensa: são criminosos.

"Os discursos proferidos pelo NÃO humorista Leo Lins não são apenas potencialmente ofensivos, mas criminosos, por isso a correta incidência do Direito Penal, que deve ser acionado nos casos de grave lesão a bens jurídicos relevantes, quando as demais áreas do Direito não se mostrem eficazes. É exatamente o caso!"

Segundo ela, práticas discriminatórias disfarçadas de piada atentam contra valores fundamentais (dignidade humana, igualdade, vida) cuja tutela penal é imprescindível. A complacência, adverte, seria repetir o erro histórico de normalizar o inaceitável.

"Não entender que há fomento de práticas discriminatórias por meio de frases que atentam contra a dignidade desses grupos para classificar o ato como piada ou mero dissabor é ser conivente com a violência diária imposta de forma desproporcional a grupos vulnerabilizados."

Sem impunidade

Enquanto Leitão e França reconhecem que a comédia pode machucar, sobretudo quando toca em feridas abertas da história social, advertem para os riscos de um Direito Penal moralizante, seletivo e, no limite, ineficaz. A crítica não está dirigida ao combate ao preconceito, mas à escolha dos instrumentos.

Já a criminalista Priscila Pamela chama atenção para o oposto: a complacência jurídica pode alimentar a impunidade e perpetuar estruturas de exclusão violenta.

Apesar das divergências, ambos os lados convergem em um ponto essencial: o humor não é neutro. O palco não está fora da sociedade. O que se disputa é o melhor caminho, e o menor custo democrático, para assegurar que esse espaço permaneça, ao mesmo tempo, livre e responsável.

Referência

SANTOS, Bruno Cavalcante Leitão; FRANÇA JÚNIOR, Francisco de Assis de. É comédia ou ofensa? Ponderações jurídico-criminais sobre os limites da liberdade de expressão artística. Boletim IBCCRIM, v. 31, n. 368, 2023.

Veja a versão completa

Leia mais

Migalhas Quentes

Juiz vê censura e Leo Lins não indenizará município por ofensas em show

21/7/2025
Migalhas Quentes

Juiz absolve humorista de injúria racial e diz que arte não se censura

17/7/2025
Migalhas Quentes

Leo Lins é condenado a oito anos de prisão por falas preconceituosas em show

3/6/2025
Migalhas Quentes

Justiça retira show de Leo Lins do YouTube por piadas com minorias

17/5/2023