Nesta quarta-feira, 15, Dia do Professor, o STF, em sessão plenária, declarou inconstitucionais leis municipais que proibiam a inclusão de conteúdos sobre gênero e orientação sexual na rede pública de ensino.
O plenário julgou em conjunto duas ações: a ADPF 466, proposta pela Procuradoria-Geral da República, contra lei do município de Tubarão/SC, e a ADPF 522, de autoria do PSOL, que impugnava normas de Petrolina e Garanhuns/PE.
Ambos os processos tramitavam inicialmente no plenário virtual.
Na ADPF 466, a relatora original, ministra Rosa Weber (aposentada), votou pela inconstitucionalidade formal e material da norma, sendo acompanhada, naquela oportunidade por Cármen Lúcia, Alexandre de Moraes e Marco Aurélio (também aposentado).
Após pedido de destaque do ministro Nunes Marques, o caso passou ao plenário físico, com reinício da votação — permanecendo válidos apenas os votos de Rosa Weber e Marco Aurélio. Assim, seus sucessores, Flávio Dino e André Mendonça, não participaram dessa ação.
Na ADPF 522, o relator original, ministro Marco Aurélio, também havia votado pela inconstitucionalidade formal e material das leis pernambucanas, por entender que os municípios usurparam competência da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional (art. 22, XXIV, CF).
O caso foi igualmente levado ao plenário físico após destaque do ministro Nunes Marques, reiniciando-se o julgamento, mantido apenas o voto do relator - razão pela qual André Mendonça, seu sucessor, também não votou nessa ação.
Confira os detalhes do julgamento.
Amici curiae
Antes da votação, os amigos da Corte sustentaram da tribuna.
Representando a Anadep - Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos, o defensor público Ilton Norberto Robl Filho, defendeu a inconstitucionalidade formal e material das leis que proíbem o ensino e o debate sobre gênero e orientação sexual nas escolas.
Ilton destacou que as normas violam liberdades constitucionais, como a liberdade acadêmica, a liberdade de ensinar e aprender e o pluralismo de ideias, previstos nos arts. 5º, 205 e 206 da CF. Segundo ele, a censura a temas ligados à diversidade "ataca a própria ética da pesquisa e a essência da democracia".
"A educação pautada na Constituição é o melhor remédio para a manutenção de uma sociedade democrática", afirmou.
O defensor lembrou que compete à União legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional (art. 22, XXIV), cabendo aos municípios apenas suplementar a legislação federal, e que o Supremo já declarou inconstitucionais leis semelhantes nas ADPFs 457, 460, 461 e 526.
Encerrando, Ilton ressaltou o simbolismo do julgamento, realizado no Dia dos Professores, e pediu a procedência das ações "em defesa dos vulneráveis, das crianças e da educação como direito fundamental de todos".
O advogado Carlos Nicodemos Oliveira e Silva, representante do Grupo Arco-Íris de Cidadania LGBT, defendeu a inconstitucionalidade das leis municipais que proíbem o debate sobre gênero e orientação sexual nas escolas, por violarem o pacto federativo e direitos fundamentais como a igualdade, o pluralismo de ideias e a liberdade de ensinar e aprender.
Segundo ele, trata-se de um movimento de censura que "rompe a democracia e invade competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional".
Nicodemos ressaltou a necessidade de observância do controle de convencionalidade, previsto na resolução 123/22 do CNJ, e dos tratados internacionais de direitos humanos, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, os Princípios de Yogyakarta e as recomendações da CEDAW e da Unesco, que garantem o direito à educação inclusiva e livre de discriminação.
A professora Carolina Rolim Machado Cyrillo da Silva, representante da Clínica Interamericana de Direitos Humanos da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ, destacou que os standards do Sistema Interamericano de Direitos Humanos devem servir de parâmetro tanto para a admissibilidade quanto para o mérito das ADPFs, por integrarem o chamado "bloco de fundamentalidade".
Segundo explicou, a Constituição de 1988 é dotada de dupla abertura - material, aos direitos fundamentais, e internacional, aos direitos humanos -, o que faz com que os tratados internacionais de direitos humanos e a Constituição componham um mesmo sistema normativo.
A advogada lembrou que esse entendimento foi reconhecido pelo STF na ADPF 462, que declarou inconstitucional a lei de Blumenau/SC que proibia o uso das expressões "identidade de gênero" e "orientação sexual" em documentos escolares.
Ao concluir, Carolina afirmou que negar a aplicação desses parâmetros seria restringir o alcance da Constituição cidadã e reafirmou que o sistema interamericano "não é fonte externa, mas parte integrante do direito constitucional brasileiro".
Nunes Marques
Ao proferir voto, o ministro Nunes Marques reconheceu que o STF possui firme jurisprudência no sentido de que os municípios não têm competência para legislar sobre conteúdos pedagógicos na rede pública de ensino, matéria de competência privativa da União.
Apesar de acompanhar a relatora ministra Rosa Weber quanto à incompetência legislativa municipal, o ministro ponderou que tal entendimento não pode ser interpretado como uma autorização irrestrita para inclusão de conteúdos pedagógicos sobre gênero e sexualidade no ensino fundamental.
Ressaltou que a liberdade de cátedra, embora fundamental, encontra limites quando o público-alvo é formado por crianças, cuja formação cognitiva e emocional ainda está em desenvolvimento.
Com base em pesquisas em neurociência e psicologia do desenvolvimento, Nunes Marques afirmou que crianças e pré-adolescentes não possuem maturidade para compreender plenamente conceitos abstratos como identidade de gênero desvinculada do sexo biológico.
Citou estudos sobre a maturação do córtex pré-frontal e a formação da identidade, defendendo que a exposição precoce a tais debates pode gerar sobrecarga cognitiva e "eliminar o direito de amadurecer no seu próprio ritmo".
O ministro destacou também a lei 15.211/25, que instituiu o Estatuto Digital da Criança e do Adolescente, como exemplo do compromisso estatal com a proteção da infância frente à "adultização precoce".
Argumentou que o princípio da proteção integral da criança (art. 227 da CF) deve orientar a prática pedagógica, de modo que a liberdade de ensino seja compatibilizada com o dever de resguardar o desenvolvimento harmonioso e emocionalmente saudável dos menores.
"Preservar a infância não é conservadorismo; é reconhecer que toda liberdade genuína nasce da maturidade", afirmou.
Ao concluir, o ministro acompanhou o voto da relatora para julgar procedentes as ADPFs, reconhecendo a incompetência dos municípios para legislar sobre diretrizes educacionais, mas ressalvou seu posicionamento pessoal quanto ao mérito da discussão sobre o conteúdo das políticas educacionais.
Flávio Dino
Votando apenas na ADPF 522, ministro Flávio Dino acompanhou o relator.
Para S. Exa., o tema deve permanecer sob competência da União, conforme a lei de diretrizes e bases, e qualquer tentativa de discipliná-lo localmente rompe o pacto federativo e compromete a coerência do sistema nacional de ensino.
Logo no início de seu voto, Dino ressaltou que a Constituição de 1988 consagra uma visão plural das formas de viver e constituir família, rejeitando a ideia de um modelo único de "família tradicional".
Fez referências bíblicas para ilustrar a diversidade de arranjos familiares e lembrou que a própria dogmática constitucional brasileira rejeita concepções exclusivistas de moral ou estrutura familiar.
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O ministro também abordou as preocupações levantadas no voto de Nunes Marques quanto à "hipersexualização" e à "adultização" das crianças, classificando-as como justas e necessárias, mas desvinculadas da noção - que qualificou como "exótica" e "sem base teórica sólida" - de ideologia de gênero.
Segundo Dino, o que existe não é uma ideologia, mas sim uma abordagem plural sobre a experiência humana, compatível com a Constituição e com os direitos fundamentais.
"Qualquer que seja o paradigma de organização do nosso pensamento, ninguém pode desejar a hipersexualização e a adotização das crianças. Ninguém, ninguém, porque isso, de fato, é profundamente nocivo", afirmou o ministro, que disse falar também como pai de quatro filhos.
Flávio Dino destacou que a liberdade de ensinar e aprender não é absoluta, devendo coexistir com o dever de proteção integral à criança, previsto no art. 227 da CF.
Para S. Exa., o equilíbrio entre liberdade pedagógica e tutela da infância exige adequação de conteúdos e metodologias conforme a idade e a maturidade dos alunos - princípio que, em seu entendimento, deve orientar políticas públicas e currículos escolares nacionais.
O ministro enfatizou ainda que o papel da escola deve ser compartilhado com famílias, igrejas e demais instituições sociais, evitando uma visão idealizada de que a educação resolveria sozinha todos os conflitos morais e éticos da sociedade.
Defendeu que a deliberação sobre temas educacionais deve ocorrer no plano Federal, com base na LDB e na Base Nacional Comum Curricular, a fim de garantir uniformidade e evitar 5.570 legislações antagônicas sobre o mesmo tema.
"Não existe sistema educacional, ou de ensino, exitoso, em que cada um faz o que quer. O modelo constitucional é justo e equilibrado, na medida em que permite que haja uma esfera nacional de debate e solução dessas naturais controvérsias existentes na sociedade", pontuou.
Ao concluir, Flávio Dino reafirmou o caráter vinculante da LDB e da competência da União para tratar das diretrizes educacionais, acompanhando a relatora pela procedência das ações.
Fez, contudo, uma ressalva de caráter pedagógico, ao defender que o combate à discriminação no ensino com base em gênero e orientação sexual deve ser implementado com "atenção e respeito aos preceitos pedagógicos de adequação do conteúdo e da metodologia, os diferentes níveis de compreensão e maturidade de acordo com as faixas etárias e ciclos educacionais".
Cristiano Zanin
Ao votar, Zanin afirmou que a jurisprudência do Supremo é pacífica no sentido de que os municípios não têm competência para legislar sobre conteúdo programático ou diretrizes curriculares, matéria de competência privativa da União (art. 22, XXIV, CF).
Citou precedentes do Tribunal e destacou que essas normas violam preceitos fundamentais da liberdade de ensinar, do pluralismo de ideias e da igualdade de gênero.
O ministro, contudo, fez ressalvas pontuais.
Assim como os ministros Nunes Marques e Flávio Dino, defendeu que o ensino sobre diversidade deve respeitar os critérios pedagógicos de adequação à idade e maturidade dos alunos, conforme as faixas etárias e ciclos educacionais. Mencionou, inclusive, precedente de sua relatoria na ADIn 5.668, em que o STF reconheceu a necessidade de adequação metodológica dos conteúdos a diferentes níveis de compreensão infantil e juvenil.
Em relação às disposições que tratavam das bibliotecas municipais, Zanin apresentou divergência parcial em relação ao voto do ministro Marco Aurélio.
Entendeu que, nesse ponto, não haveria inconstitucionalidade formal, mas apenas inconstitucionalidade material, uma vez que os municípios poderiam regulamentar aspectos administrativos das bibliotecas, mas não proibir obras ou restringir conteúdos.
"É pertinente frisar a necessidade de conformação das obras e conteúdos às diferentes faixas etárias e níveis de compreensão e maturidade das crianças e adolescentes, o que mesmo em ambientes públicos, tais como bibliotecas municipais, concretiza-se no apoio oferecido por bibliotecários e demais responsáveis pelo local", observou, citando o art. 78 do ECA.
Alexandre de Moraes
Ministro Alexandre de Moraes acompanhou os relatores.
Em seu voto, Moraes afirmou que as normas impugnadas representam um retrocesso civilizatório, comparando-as a práticas de censura típicas do período da Inquisição.
Citando os trechos das leis, observou que elas proíbem o uso de qualquer material ou livro que trate, direta ou indiretamente, de temas ligados à diversidade sexual, chegando a vetar obras de educação sexual até mesmo em bibliotecas públicas.
O ministro reconheceu a importância de preservar a infância, mas ponderou que isso não significa esconder a realidade ou privar as crianças de informações sérias e adequadas sobre identidade de gênero e sexualidade.
Destacou que, enquanto as escolas são censuradas, as redes sociais bombardeiam crianças e adolescentes com conteúdos distorcidos, e criticou a contradição de grupos que defendem liberdade total na internet, mas buscam impor censura ao ensino formal.
"A liberdade de expressão, para essas pessoas, existe para o discurso de ódio contra a população LGBT nas redes sociais, só que não existe a liberdade de expressão e a liberdade de ensino nas escolas, para o antídoto a esse discurso de ódio", afirmou.
Citando dados do Atlas da Violência (2024), Moraes lembrou que a violência contra a população LGBTQIA+ cresceu mais de mil por cento na última década, e que o Brasil é, pelo 16º ano consecutivo, o país que mais mata pessoas trans e travestis. Para o ministro, esse cenário é fruto da "política do avestruz na educação" - a tentativa de fingir que essas realidades não existem.
"Não é possível fingir, inclusive para as crianças, que não existem pessoas trans, que não existem travestis, que não existe diferença de gênero. Não é possível nessa altura do século XXI", afirmou.
Ao final, Moraes reforçou que os municípios não podem legislar sobre diretrizes educacionais, competência exclusiva da União, e defendeu uma educação séria, responsável e inclusiva, que ensine o respeito à diversidade e combata o discurso de ódio.
Fez ainda um ajuste em seu voto para acompanhar o ministro Cristiano Zanin no ponto relativo às bibliotecas públicas, reconhecendo que os municípios até poderiam regulamentar seu funcionamento, mas jamais proibir livros de conteúdo educativo.
Edson Fachin
Ao acompanhar os relatores, ministro Edson Fachin ressaltou que o direito à educação orienta-se para a realização dos valores republicanos de liberdade e igualdade, impondo ao Estado o dever de garantir um ambiente escolar plural, democrático e acolhedor às diferenças.
Segundo o ministro, essas finalidades se concretizam por meio da liberdade de expressão acadêmica e da liberdade de cátedra, princípios indispensáveis à formação crítica e ao desenvolvimento humano.
"Não há verdadeira educação quando o medo substitui a reflexão. Não há emancipação pela educação quando a liberdade de ensinar dos professores e das professoras não é assegurada", afirmou Fachin.