COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas >
  3. Direito e Sexualidade >
  4. O erro e o acerto da decisão do STJ que determinou a inclusão de gênero neutro no registro civil

O erro e o acerto da decisão do STJ que determinou a inclusão de gênero neutro no registro civil

quinta-feira, 22 de maio de 2025

Atualizado em 21 de maio de 2025 10:42

Foi recebida com grande alegria pela comunidade LGBTIAPN+ a decisão da 3ª turma do STJ garantindo o direito à indicação de gênero neutro no registro civil.

Após ter o pedido negado nas instâncias ordinárias, com o TJ/SP fundamentando seu entendimento em premissas como a previsão de que o "ordenamento jurídico prevê apenas a existência dos gêneros feminino e masculino", bem como que "a eventual adoção do gênero neutro exigiria antes um amplo debate e o estabelecimento de uma regulamentação a respeito", o processo chegou ao STJ que, em decisão unânime, entendeu pela possibilidade de retificação do registro civil a fim de que dele passasse a constar, no campo designado para o sexo, a expressão "gênero neutro", consignando o órgão colegiado que, em que pese a carência de legislação específica versando sobre o tema, inexiste razão jurídica a lastrear uma "distinção entre pessoas transgênero binárias - que já possuem o direito à alteração do registro civil, de masculino para feminino ou vice-versa - das não binárias, devendo prevalecer no registro a identidade autopercebida pelo indivíduo"1.

O posicionamento adotado se lastreia na ideia do direito à autodeterminação de gênero e à identidade sexual, aspectos que se associam de forma plena com o "livre desenvolvimento da personalidade e ao direito do ser humano de fazer as escolhas que dão sentido à sua vida", tendo ainda destacado o órgão colegiado que "a decisão não elimina o registro de gênero da certidão de nascimento, mas apenas assegura à pessoa o reconhecimento formal de sua identidade"2.

Nas palavras da ministra Nancy Andrighi, relatora do recurso, "Todos que têm gênero não binário e querem decidir sobre sua identidade de gênero devem receber respeito e dignidade, para que não sejam estigmatizados e fiquem à margem da lei"3.

Como o processo tramita em segredo de justiça, não se tem acesso aos exatos termos dos autos, mas segundo o material disponibilizado pelo STJ, a pessoa que ajuizou a ação de retificação de registro civil alegou "ter enfrentado dificuldades emocionais e psicológicas, tendo feito cirurgias e tratamento hormonal para mudar de sexo" e após ter realizado a retificação de seu registro para se adequar o nome e o "gênero" constatou que ainda assim não havia a real correspondência com a sua percepção de pertencimento, já que não se identificava como homem ou como mulher, reconhecendo-se como uma pessoa não-binária4.

A questão que permeia toda essa decisão é o cerne da Coluna Direito e Sexualidade, bem como do grupo de pesquisa de mesmo nome que tenho o prazer de conduzir junto à Universidade Federal da Bahia. Trata-se do objeto dos meus estudos já há mais de 15 anos, tendo como frutos uma tese de doutorado, um estágio pós-doutoral e 2 livros específicos sobre a identidade de gênero, além de uma grande quantidade de artigos científicos que tem a sexualidade como pano de fundo.

E toda essa experiência me leva a uma situação bastante peculiar ao ver a referida decisão. Um misto de alegria e tristeza.

A alegria se dá por constatar que o STJ mais uma vez se coloca na vanguarda da defesa dos direitos das minorias sexuais, como se deu outrora, por exemplo, na paradigmática decisão que pela primeira vez autorizou a realização da mudança do nome e sexo nos documentos de uma pessoa em razão de sua identidade de gênero transgênero independentemente da realização prévia de intervenções cirúrgicas ou tratamentos hormonais (REsp. 1.626.739, 4ª turma, relatoria do ministro Luis Felipe Salomão), na qual tenho a alegria de ter sido citado.

Toda sorte de decisão que possa conferir alguma proteção à integridade da pessoa transgênero, garantindo-lhe os direitos mais elementares que são ofertados a todo e qualquer cidadão5, calcados em parâmetros basilares insculpidos nos Direitos Humanos, direitos fundamentais e direitos da personalidade, merece aplausos e deve ser sempre enaltecida.

Contudo não há como simplesmente ignorar as questões preocupantes que circundam tal decisão, especialmente por revelar a institucionalização de uma das maiores preocupações que me acompanham nessa intersecção entre direito e sexualidade, a qual tem sido expressa em inúmeros textos por mim publicados, tanto nessa coluna como em outros escritos.

A enorme confusão existente entre a concepção técnica de cada um dos pilares de sustentação da sexualidade6 segue causando seus efeitos, fazendo com que a compreensão inadequada dos conceitos venha a gerar equívocos técnicos preocupantes. Mesmo quando eles acabam acertando e gerando um benefício para um grupo tão vulnerabilizado como as minorias sexuais, não podemos nos furtar de cumprir com nossa responsabilidade acadêmica e científica e indicar os equívocos.

Não foram poucas as vezes que aqui mesmo nessa coluna me coloquei quanto ao risco de se confundir a concepção técnica do que há de ser compreendido, ao menos no universo jurídico, como sexo e gênero. Já relatei minhas considerações com relação às consequências dessa confusão tanto de forma geral7 quanto específica, como no pacote antifeminicídio (lei 14.994/24)8, no que consta da Declaração de Nascido Vivo9 e Registro de Nascimento10, manifestando-me com relação à premência de que o Estado brasileiro como um todo venha a adotar uma padronização quanto aos elementos que versam sobre a sexualidade11.

A questão da utilização da expressão "não-binário" no registro foi objeto específico do capítulo 5 do meu "Manual de Direitos Transgênero", na seção 5.1.1, denominada de "A impropriedade técnica da mudança do gênero no documento"12.

Ali menciono expressamente que, apesar de toda a luta em busca da proteção das minorias sexuais que pauta meu trabalho, não posso me furtar a discutir toda a impropriedade técnica que circunda a ideia de se admitir a "alteração da informação do gênero nos documentos", exatamente porque o que há de ser consignado nos documentos é o sexo, laborando com a distinção elementar de que não há de se misturar o que seja cada um desses aspectos da sexualidade.

A institucionalização dessa confusão entre sexo e gênero não passa incólume, gerando um efeito cascata13 que culmina na imposição de se argumentar sobre a impropriedade técnica de tal decisão, mas de também reconhecer a adequação social de se mudar os documentos da pessoa quando ela não se reconhece inserida no contexto do gênero esperado em razão do sexo que lhe foi atribuído quando de seu nascimento.

Se houvesse a adequada compreensão e correta utilização de nomenclaturas quanto aos parâmetros da sexualidade não haveria qualquer celeuma a ser resolvida, pois não teríamos que conviver com a imprecisão de tratar o sexo na perspectiva binária de "masculino" e "feminino", e sim como homem/macho, mulher/fêmea e intersexo14.

O pior é nos depararmos com assertivas como a indicada no material disponibilizado pelo STJ, que afirma que na decisão proferida pelo TJ/SP haveria a afirmação de que o "ordenamento jurídico prevê apenas a existência dos gêneros feminino e masculino". De se notar que nem a lei de registros públicos, nem o Código Civil mencionam gênero, tampouco afirmam que há uma perspectiva binária a ser seguida, sendo certo que até mesmo a lei que estabelece as normas para a DNV - Declaração de Nascido Vivo não o faz, como se pode verificar do art. 4º, III, da lei 12.662/12, surgindo tal construção binária apenas no modelo desse documento, apresentado pelo anexo II da portaria 116, de 11/2/2009, da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde15.

Entendo até mesmo que a exposição dessa informação nos documentos de identificação revela-se como uma manifesta ofensa ao direito à intimidade, sendo inconcebível sua manutenção no chamado novo RG, pontuando que a informação quanto ao sexo, constante da DNV - Declaração de Nascido Vivo, haveria de ser protegida, não sendo nem mesmo exposta na certidão de nascimento, salvo solicitação expressa devidamente fundamentada16.

Como afirmo no "Manual dos Direitos Transgêneros" é preponderante deixar claro que a questão aqui passa totalmente ao largo do direito à autodeterminação, recaindo especificamente sobre a análise dos motivos pelos quais tal informação quanto a sexualidade consta dos documentos oficiais, bem como da absoluta impropriedade de se confundir o que há de ser entendido como sexo e como gênero. 

Se o que consta dos documentos decorre do que é aferido pelo médico quando do nascimento de uma pessoa qual seria a plausibilidade de se acreditar que aquela informação esteja atrelada ao gênero, considerando que esse é decorrente de uma construção social? O que o recém-nascido expressou que fez com que se constatasse seu gênero?

O que é aposto na DNV é tão somente o reflexo de uma constatação visual que relaciona o sexo biológico com base no fenótipo apresentado pelo recém-nascido, associando a existência de um pênis e bolsa escrotal ao homem/macho, contraposto com a ausência dessas estruturas para a configuração da mulher/fêmea, como se isso fosse uma indubitável consequência de ser portador de uma estrutura genética binária de XX ou XY, que cientificamente não se consubstancia, ainda mais quando se tem em mente que existem 150 variações17 entre esses "opostos".

O fato é que a decisão do STJ quanto a possibilidade de aposição da informação de "gênero-neutro" no campo destinado ao sexo não é conduta isolada do Poder Público sobre o tema, podendo se constatar que existem provimentos de alguns Tribunais de Justiça, como o do Estado da Bahia (provimento conjunto 8 CGJ/CCI/2022-GSEC) e o do Estado do Rio Grande do Sul (provimento 16/22) a manifestar-se institucionalmente com relação à acolhida de tal sorte de pleito.

Com base em todo o exposto é que mais uma vez afirmo que não sei se tal decisão me alegra ou entristece, pois ainda que seja claramente favorável que a alteração ocorra em razão dos aspectos sociais que a permeiam não há como não constatar que ela é fruto de uma série de equívocos que revelam a falta de letramento institucionalizado quando se está diante de um tema tão relevante quanto a sexualidade.

As batalhas travadas pelas minorias sexuais seguem atingidas por uma premissa que ainda vai exigir muito daqueles que buscam a concessão dos direitos elementares a elas pois mesmo quando ganhamos, perdemos.

__________

1 Disponível aqui. 

2 Disponível aqui. 

3 Disponível aqui.

4 Disponível aqui. 

5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 312

6 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 3.

7 Disponível aqui.

8 Disponível aqui. 

9 Disponível aqui. 

10 Disponível aqui. 

11 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A necessidade da fixação da concepção jurídica dos pilares da sexualidade. Revista Direito e Sexualidade, Salvador, v. 5, n. 2, p. III-VIII, jul./dez. 2024

12 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 93.

13 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 94.

14 CUNHA, Leandro Reinaldo da; SANTOS, Thais Emilia de Campos dos; FREITAS, Dionne do Carmo Araújo. Intersexolidade e intersexualidade das pessoas intersexo: confusão e invisibilidade. Revista Direito e Sexualidade, Salvador, v. 4, n. 2, p. 147-165, 2023.

15 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 87.

16 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 97.

17 SANTOS, Thais Emilia de Campos dos; ALBUQUERQUE, Céu Ramos; FREITAS, Dionne do Carmo Araújo. 150 variações intersexo. Paraná: CRV, 2024.