Usucapião familiar: Um instituto eminentemente feminino
quinta-feira, 26 de junho de 2025
Atualizado em 25 de junho de 2025 11:48
Para comemorar a 50ª edição da Coluna Direito e Sexualidade decidi escrever mais uma vez sobre a confluência das duas searas jurídicas que mais me motivam e que me trouxeram até aqui.
A intersecção entre o Direito Civil e aspectos da Sexualidade, apesar de extremamente elementar, segue sendo um campo pouco explorado tanto na academia quando na prática jurídica, o que reforça a necessidade de que essa correlação seja suscitada e apresentada de forma a atingir a maior quantidade de pessoas possíveis, a fim de que possa passar a ser pensada de maneira mais recorrente pelos juristas e ganhe massa crítica, visando a construção de uma doutrina especializada.
Nesse contexto optei por trabalhar exatamente uma das perspectivas do Direito Civil que se mostra menos associada com aspectos vinculados à sexualidade: os Direitos Reais (ainda que, no caso concreto, seja uma vertente dessa área que se mostra revestida de contornos sólidos de Direito de Família).
Toda essa relação será trabalhada sob as lentes de um dos pilares da sexualidade1: o gênero.
Feita essa introdução, como já mencionado no título da presente coluna, é de se ressaltar que um dos temas mais clássicos do Direito Civil, atrelado aos Direitos Reais, reside na aquisição da propriedade pelo exercício reiterado da posse por meio da usucapião. Esse instituto clássico, com previsão tanto na Constituição Federal como em leis infraconstitucionais (CC e Estatuto das Cidades), encontrou, há cerca de 15 anos, uma inclusão que fez com que ele se aproximasse do universo do Direito de Família.
Em 2011 a lei 12.424 inseriu no CC o art. 1.240-A, que instituiu o que passou a ser chamada de usucapião familiar.
Aqueles que acompanham essa coluna podem se perguntar quanto aos motivos pelos quais um tema já imensamente discutido estaria presente nesse espaço dedicado a questões tão atuais. E a resposta está em algo bastante simples.
A usucapião familiar está imersa em um manifesto recorte de gênero.
A referida lei que nos deu o art. 1.240-A foi, em verdade, aquela que instituiu o PMCMV - Programa Minha Casa, Minha Vida, e está inserido no art. 9º da lei 12.424/11, fato que gera até mesmo o questionamento quanto a adequação da sua instituição por meio dessa norma2.
Há até mesmo aqueles que sustentem que, na gênese, o "instituto foi pensado para amparar mulheres de baixa renda"3, ainda que tal informação não seja expressa. A perspectiva de constituição visando a proteção da mulher será objeto de mais atenção a seguir, contudo é importante que se assevere que, ainda que a intenção tenha sido a de atender as mulheres de baixa renda, não só elas poderão ser beneficiadas, bastando para tanto se considerar que o critério espacial previsto na lei, que delimita a dimensão do imóvel a ser usucapido a 250 m2, revela que este não se circunscreve necessariamente a bens de valor reduzido.
Retomando a apreciação atrelada à questão de gênero é interessante se constatar que a conexão entre a usucapião e o feminino é tão pouco usual que, apesar de parecer óbvia, não se faz presente no Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero elaborado pelo CNJ. Seria bastante pertinente que o protocolo tivesse trabalhado diretrizes no sentido de que os magistrados considerassem as desigualdades de gênero ao proferir decisões nas ações de usucapião familiar.
Como o objetivo aqui não é discorrer de forma exaustiva sobre essa modalidade de prescrição aquisitiva, o texto será estruturado de uma forma pouco usual no que se refere aos estudos realizados sobre a usucapião, com a análise de apenas alguns dos requisitos que tangenciam mais a questão de gênero. Com isso, toda a tecnicidade inerente ao instituto da usucapião estará vinculada aos aspectos que efetivamente podem encontrar algum tipo de aderência com o recorte de gênero que norteia o escopo ao qual me proponho aqui.
O primeiro ponto que confere sentido ao título dado ao presente texto reside no fato de que a expressão "usucapião" há de ser acompanhada do artigo definido feminino "a". Assim, o correto é se referir ao instituto como a usucapião, retomando a concepção que vigia originalmente e que havia sido afastada com o CC de 1916.
Passando à análise do instituto em si, é de se constatar que a usucapião familiar, prevista no art. 1.240-A do CC, foi modalidade instituída depois do início da vigência do atual texto legal e apresenta uma série de requisitos a serem atendidos para a sua configuração, os quais vão dos mais clássicos, como a posse ad usucapionem e o prazo, chegando em parâmetros extremamente específicos que se vinculam a uma perspectiva essencialmente subjetiva.
Outro dos motivos que nos conduz a afirmar que a usucapião é um instituto feminino lastreia-se no fato de que, ordinariamente, em sede de ruptura de relacionamentos, quem deixa o lar conjugal, é o homem, ou quem expressa o masculino naquela estrutura familiar.
Seja em um relacionamento entre pessoas de sexos ou gêneros distintos, como também naqueles em que se constituem entre pessoas do mesmo sexo ou gênero4, a tendência é que a mulher ou quem expressa o feminino, mantenha-se naquele lar conjugal que até então era compartilhado. Tal assertiva tem uma conexão direta com a atribuição dos deveres de cuidado às mulheres e ao feminino, especialmente quando aquele casal tem uma prole, o que faz com que quem exerce os deveres diretos com relação aos filhos siga onde esses descendentes estão.
Como a usucapião tem como premissa básica a posse direta, é elementar que aquele que permanecesse no lar conjugal seja o autor ordinário de tal sorte de pleito e, se as mulheres são as que permanecem no imóvel, é natural que a maior incidência de pleitos seja formulada por tais pessoas.
Quanto ao momento adequado para a propositura da ação é relevante que, considerando que um dos requisitos para a configuração de qualquer usucapião é a ausência de oposição, é essencial uma atenção especial a fim de conseguir demonstrar de maneira clara que tal requisito se faz presente, o que pode exigir dessa mulher uma atuação estratégica, não promovendo, por exemplo, a ação visando a dissolução do casamento ou da união estável antes de cumprido o prazo legal, para que o seu cônjuge ou companheiro não venha a apresentar a oposição à sua posse e, com isso, inviabilizar a aquisição da propriedade plena do bem.
Importante se consignar que não se está aqui fazendo qualquer relação com a restrição existente outrora de um critério temporal de rompimento de fato do relacionamento para o pleito da dissolução do casamento. O que se pondera é que ao se orientar quanto a propositura da ação apenas 2 anos após o rompimento de fato daquele relacionamento, o objetivo é apenas que não se corra o risco de que o outro cônjuge/companheiro possa vir a exercer sua objeção à posse exclusiva em sede de defesa naquela ação. Nada relacionado ao divórcio em si, mas sim ao cumprimento dos requisitos legais para a usucapião familiar.
Outro dos requisitos que apresenta nuances de gênero é o elemento subjetivo que marca a usucapião familiar, que é a necessidade, para a sua configuração, de que tenha ocorrido o abandono do lar conjugal pelo ex-cônjuge ou ex-companheiro.
De se pontuar, de plano, que a questão aqui não está atrelada a uma perspectiva de culpa pela dissolução do casamento, marcadamente em razão da natureza potestativa que permeia o divórcio5, tampouco se está discutindo a figura do abandono como forma de perda da propriedade6.
Trata-se de um abandono que recai, em verdade, sobre a família, tanto no âmbito material/assistencial quanto extrapatrimonial7.
Em uma perspectiva simples, o mais usual em nossa sociedade é que o homem venha a largar toda a família para trás, abandonando-a. Apesar da inexistência de estatísticas oficiais, isso pode se depreender da constatação de que compete ordinariamente às mulheres os deveres de cuidado, o que envolve a atenção aos filhos e ao lar. A isso pode se associar o fato de serem os homens os maiores autores do abandono afetivo dos filhos.
É possível ainda se concluir que abandonar está mais afeito aos homens do que às mulheres pela análise dos julgados que podem ser encontrados versando sobre o tema.
Verifica-se, também, que quando a mulher sai de casa, deixando o lar conjugal, dificilmente ela pratica uma conduta de abandono. O mais ordinário, quando ela deixa o seu lar, é que tenha sido vítima de violência doméstica ou tenha sido de lá expulsa. Raros são os relatos de mulheres que simplesmente tomam a decisão de deixar sua família e aquele lar conjugal que fora constituído.
Premente se faz expor que o abandono pressupõe uma conduta volitiva individual, tomada de forma particular e não negociada. Abandonar é deixar o lar sem dar explicações, de maneira deliberada. É uma saída voluntária e injustificada8. E esse desprendimento é uma das características que culturalmente constituem um marcador dos homens e do masculino em nossa sociedade.
Construída essa trajetória lógica é importante tecer, ao fim, algumas ponderações críticas com relação à ideia de que a usucapião familiar se configuraria como uma grande conquista para as mulheres, já que elas é que ordinariamente são as beneficiadas pela aquisição da propriedade por meio dessa modalidade.
O que há de questionar é: a qual preço essa "benesse" é alcançada?
Às custas de abandono familiar, rompimento de um projeto familiar e todas as consequências psicológicas?
Será que essa possibilidade de tomar para si parte do bem que foi do casal é o bastante?
Quando se fala do quanto é bom que venha a se tornar dona da integralidade do bem normalmente não se menciona que essa modalidade apenas assiste a quem tem unicamente um imóvel residencial compartilhado com o cônjuge ou companheiro.
Aqui sim podemos vislumbrar aquela premissa de que esse direito ordinariamente beneficia uma camada da população que tem um menor potencial aquisitivo, ainda que possa haver exceções.
Se ignora também que, de fato, são poucas as pessoas que efetivamente são detentoras da propriedade de um bem imóvel, haja vista que a grande maioria daqueles que têm um patrimônio mais singelo residem em imóveis alugados. E os que afirmam ser proprietários dos bens, em muitos casos, efetivamente não o são, pois, no mais das vezes, a aquisição daquele imóvel que tem como sendo seu se dá por meio de financiamento com alienação fiduciária, hipótese em que a propriedade só passa a ser efetivamente do comprador após a quitação do empréstimo bancário.
Em outra senda, é recorrente que essa aquisição seja vista como um grande benefício, se ignorando que é capaz que o valor referente à parte do imóvel que será usucapida não seria suficiente para saldar todas as obrigações que essa mulher, especialmente quando tenha uma prole comum, teve que assumir sozinha em razão da inadimplência do cumprimento dos deveres daquele cônjuge que abandonou o lar conjugal.
Como usualmente ocorre com os grupos vulnerabilizados, aqui se vê as mulheres recebendo um "prêmio de consolação" por ter visto o seu lar ser destroçado com o abandono do seu cônjuge ou companheiro, algo que, provavelmente, acabaria podendo ser direcionado a ela, de forma indireta, por todas as despesas assumidas individualmente com a família.
Muitas vezes esse sujeito que abandonou se converte exatamente no pai que não cumpre com seus deveres, não arcando com o sustento dos filhos, e, aquela mãe que há de garantir a mantença da prole comum sozinha, ganhou o poder de se consolidar como única proprietária do imóvel comum, o que não basta para suprir todas as responsabilidades assumidas por ter sido abandonada.
Com isso surge uma inquietação que quero compartilhar: para as mulheres, destinatárias mais recorrentes do benefício previsto na usucapião familiar, essa modalidade de aquisição da propriedade é um real benefício ou mais uma das várias situações em que se parece que está sendo-lhe garantido direitos quando, na verdade, o que lhe é conferido não passa de mais uma das inúmeras falácias da construção de uma igualdade de gênero?
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1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 1.
2 SOUZA Adriano Stanley Rocha de; THEBALDI, Isabela Maria Marques. Usucapião familiar: uma análise crítica do novo instituto sob o ponto de vista do direito civil. Revista de Direito Civil Contemporâneo, RT: Sa~o Paulo, v. 2, p. 195-215, 2015.
3 Disponível aqui.
4 Disponível aqui.
5 Disponível aqui.
6 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Revisitando o abandono presumido dos bens imóveis. Considerações atuais após a Lei 13.465/17. Revista Conversas Civilísticas, Salvador, v. 4, n. 2, p. 123-148, 2025.
7 Acórdão 1248779, 07534826920188070016, Relator: ANGELO PASSARELI, Quinta Turma Cível, data de julgamento: 13/5/2020, publicado no PJe: 22/5/2020.
8 Acórdão 1370179, 00024335520178070019, Relator: JOÃO EGMONT, Segunda Turma Cível, data de julgamento: 8/9/2021, publicado no PJe: 17/9/2021.