Múltiplas doações de órgãos
domingo, 27 de julho de 2025
Atualizado em 25 de julho de 2025 10:10
No Brasil, somente é permitida a doação de órgãos, tecidos e partes do próprio corpo vivo, feita por quem seja capaz, desde que se trate de órgãos duplos, como os rins ou partes renováveis do corpo humano, que não coloquem em risco a vida ou a integridade física e que também não comprometam as funções vitais do doador. Além disso, por ser uma regra de exceção, a doação para fins terapêuticos ou para transplantes, só pode contemplar o cônjuge, parentes consanguíneos até o 4º grau, ou ainda mais excepcionalmente, qualquer outra pessoa, desde que seja mediante autorização judicial. O procedimento será realizado em estabelecimentos de saúde públicos ou privados credenciados, assim como por equipes médicas especializadas.
Quando, no entanto, se tratar de doação post mortem, há necessidade da comprovação da morte encefálica, com a juntada dos exames realizados para sua confirmação e da autorização do cônjuge ou parente em linha colateral ou reta até o segundo grau.
Nem sempre, porém, ocorre a doação de órgãos. Após o evento morte, familiares são consultados a respeito da autorização para doar os órgãos do parente. É, sem dúvida, um momento crucial e que pode fazer prevalecer o sentimento altruísta ou o silêncio que acompanha a própria morte emudecida na vala da impotência.
A morte ocorre com a falência da atividade encefálica, mesmo que os outros órgãos estejam ativos, ainda que impulsionados por drogas e aparelhos. A volição, as ordens, a manipulação de todo sistema nervoso, dos órgãos sensoriais, são ditadas pelo cérebro, que é o administrador deste grande latifúndio chamado corpo humano.
Pois bem. Confirmada a morte encefálica pelos exames neurológicos realizados por dois médicos não participantes das equipes de captação ou transplante, com aptidões específicas, faz-se a comunicação à Central de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos do Estado, que indicará o nome do receptor, devidamente cadastrado. De nada valerá a doação feita em vida, aquela em que a pessoa fazia constar da CNH sua intenção de doar seus órgãos. Esta declaração perdeu validade e a legislação revogadora legitima somente o cônjuge ou parente maior de idade até o segundo grau, para autorizar a retirada dos órgãos (lei 10.211/2001).
É muito difícil para a família decidir a respeito da doação de vários órgãos e tecidos de um ente que faleceu, às vezes prematuramente. Em primeiro lugar, porque nunca se cogitou sobre tal possibilidade e, em segundo, porque carece de informações a respeito do ato. Na realidade, o sentimento que aflora de imediato é para que fique intocável o cadáver, de tal forma que ele represente sempre a imagem última do ente falecido. Se o homem ainda não se encontra preparado para a vida, muito distante se encontra da morte. Daí o dilema crucial em autorizar a retirada de órgãos.
Se o falecido, em vida, deixou transparecer que tinha intenção de fazer a doação de seus órgãos, a decisão fica mais fácil. Os responsáveis pela autorização não se inibirão e, prontamente, assinarão o termo autorizativo. Do contrário, sempre ocorrerá uma junta familiar para decidir a respeito da doação. É sempre um momento difícil porque concorre com o evento morte, em que, por ironia, o paciente ainda registra batimento cardíaco, mesmo com a declaração da morte encefálica. Dá-se a impressão que é um apressamento da morte, uma modalidade de eutanásia. Na verdade, é a oportunidade única para se decidir a respeito da doação, pois o paciente já expirou em razão da falência do tronco cerebral. A vida se esvaiu e no leito há um corpo movido a uma propulsão biológica conduzida, por tempo limitado. A morte determina o divórcio inevitável da pessoa e da sua vida biológica. Morre a pessoa e assume o cadáver.
A disponibilidade do corpo tem seus limites e somente poderá ocorrer quando, para fins terapêuticos e humanitários, ficar evidenciado o benefício. Sacrifica-se um bem em favor de outro, levando-se em consideração o progresso das técnicas médicas que possibilitam uma reposição com considerável margem de sucesso.
Descobre-se agora que o corpo humano é um repositório infindável de órgãos, com a possibilidade de doá-los e recebê-los. E, importante, sem conhecer o receptor beneficiado. É um ato de extrema solidariedade revelador de um sentimento indizível que transcende a natureza humana, merecedor de todo respeito e admiração. Vale a pena lembrar o verso do poeta Renato Castelo Branco: "Posso partir, porque já semeei minhas sementes. Podes plantar meu corpo no ventre do mundo".