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Apenas os Estados soberanos são pessoas para o Direito Internacional Privado?

segunda-feira, 19 de maio de 2025

Atualizado às 07:16

Quando sugerimos à douta subcomissão de Teoria Geral, ao ensejo dos estudos de atualização do Código Civil, a inclusão de parágrafo único ao artigo primeiro do Código Civil, temíamos que o texto pudesse parecer redundante e, por essa razão, desnecessário.

"Art. 1º ..................................................................................

Parágrafo único. Nos termos dos tratados internacionais dos quais o País é signatário, reconhece-se personalidade internacional a todas as pessoas naturais em território nacional, garantindo-lhes direitos, deveres e liberdades fundamentais."

Os debates que se abriram em torno desse tema merecem, entretanto, análise mais detida, porque o entendimento de que apenas os Estados podem ser sujeitos de Direito Internacional privado não nos parece o mais acertado, venia concessa dos que pensam diversamente.

O primeiro artigo do Código Civil celebra a subjetividade jurídica de todos quantos são titulares de posições subjetivas, juridicamente garantidas e juridicamente sancionadas: (a) pessoas naturais: por seu substrato real de natureza biopsíquica = humanidade); b) pessoas jurídicas: por seu substrato real de natureza político-social ou econômico social, no claro dizer de Giuseppe Lumia 1.

Em matéria de Direito Internacional Privado é importante lembrar que vigora no Brasil o Código de Direito Internacional Privado, conhecido como Código Bustamante,2 tratado de direito internacional de grande espectro na América Latina.3

O Cod Bustamante 3.º prevê categorias das leis dos estados contratantes para que as pessoas possam exercer seus direitos civis com fundamento no Código. Reconhece, portanto, a qualidade de sujeito de direito de que goza a pessoa física ou jurídica que queira fazer valer direito internacional privado.4

O Cod Bustamante 27.º trata da capacidade civil das pessoas individuais, pressupondo, portanto, a existência de personalidade, eis que somente se pode falar em capacidade de Direito e de exercício para os que têm personalidade jurídica.5 A lei de cada estado signatário determina o início6 e o fim7 da personalidade civil das pessoas naturais e jurídicas.

Evidentemente, compreende-se que existe distinção entre o direito internacional privado e o direito internacional público (Völkerrecht), pois neste os sujeitos são os Estados soberanos. O objeto do direito internacional público não é a relação jurídica entre pessoas privadas.8 Porém, ao contrário, o direito internacional privado trata da relação jurídica entre particulares, razão para que se considerem as pessoas físicas e jurídicas privadas como sujeitos desse ramo do direito, pessoas que se servem das fontes celebradas pelos Estados para fazerem valer seu direito.

Além disso, a doutrina reconhece profunda diferença entre "Direito Internacional Objetivo" e "Direito Internacional Subjetivo". O primeiro respeita ao Estado soberano que celebra tratados e impõe ordens a seus súditos. O Direito Internacional Subjetivo tem como sujeitos as pessoas físicas e jurídicas, que acatam as "ordens" dos Estados soberanos, mas têm vontade própria para clamar por seus direitos subjetivos internacionais. Isso só faz sentido se se reconhecer que elas também têm personalidade jurídica e, consequentemente, capacidade de exercício de Direito Internacional.9

O regulamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos em vigor - aprovado nas sessões de 16 a 28.11.2009 - prevê, sem a intervenção do Estado, a possibilidade de participação de pessoas, que podem ajuizar petições individuais e autônomas diretamente à Corte, o que significa reconhecer às pessoas personalidade jurídica de Direito Internacional.10

Insta observar, também, que a experiência da Corte Interamericana de Direitos Humanos tem sido muito rica nesse tema, conforme relatado em excelente artigo de Cançado Trindade,11 que expõe a jurisprudência firme e iterativa da Corte e de robusta doutrina jusinternacionalista, no sentido de reconhecer às pessoas físicas e/ou jurídicas personalidade jurídica de Direito Internacional e, também, capacidade para poder fazer valer seu direito perante a Corte, e ter acesso ao "his day in Court".

A doutrina brasileira não é infensa ao tema, como se pode perceber a propósito da opinião de que "A soberania estatal deixou de ser considerada como princípio absoluto, e os indivíduos passaram a apresentar, ao lado dos Estados, o status de sujeitos de Direito Internacional".12

Ao tratar da pessoa jurídica, Romero del Prado diz que ela possui personalidade jurídica de direito internacional porque sujeito de direito que deve ser admitida como tal em qualquer país, o mesmo ocorrendo com a pessoa física.13

Pensamos que o fato de o sugerido parágrafo único do art. 1.º ter aludido expressamente à "direitos, deveres e liberdades fundamentais", situou precisamente os limites de seu comando, que se limita às questões alusivas a direitos fundamentais de pessoas físicas e jurídicas, típicos de direito internacional privado e não adentra em tema de Direito Internacional Público.

__________
1 Giuseppe Lumia, Lineamenti di teoria e ideologia del diritto, Milano: Giuffrè, 1981, 3ª. ed., item n. 30, p. 105 (tradução, com adaptações e modificações de Alcides Tomasetti Jr, versão terminada em agosto de 1995).

2 Código Bustamante - Código de Direito Internacional Privado, Convenção Internacional celebrada em Havana (Cuba), em 13.2.1928, da qual o Brasil é signatário. Aprovada pelo Congresso Nacional por meio do DL 5647, 8.1.1929. Promulgada e mandada executar pelo D 18871, 13.8.1929. Está em vigor no direito brasileiro.

3 Jan Kropholler. Internationales Privatrecht (einschließlich der Grundbegriffe des Internationalen Verfahrensrechts), 6.ª ed., Tübingen: Mohr Siebeck, 2006, § 9.º, III, 2, b, p. 64.

4 CodBustamante: "Art. 3.º. Para el ejercicio de los derechos civiles y para el goce de las garantias individuales idénticas, las leyes y reglas vigentes en cada Estado contratante se estiman divididas en las tres clases siguientes: I. Las que se aplican a las personas en razón de su domicilio o de su nacionalidad y las siguen aúnque se trasladen a otro país, denominadas personales o de orden público interno. II. Las que obligan por igual a cuantos residen en el territorio, sean o no nacionales, denominadas territoriales, locales o de orden público internacional. III. Las que se aplican solamente mediante la expresión, la interpretación o la presunción de la voluntad de las partes o de alguna de ellas, denominadas voluntarias o de orden privado."

5 CodBustamante: "Art. 27. La capacidad de las personas individuales se rige por su ley personal, salvo las restricciones estabelecidas para su ejercicio por este Código o por el derecho local."

6 CodBustamante: "Art. 28.  Se aplicará la ley personal para decidir si el nacimiento determina la personalidad y si al concebido se le tiene por nacido para todo lo que le sea favorable, así como para la viabilidad y los efectos de la prioridad del nacimiento en el caso de partos dobles o múltiples."

7 CodBustamante: "Art. 30. Cada Estado aplica su propia legislación para declarar extinguida la personalidad civil por la muerte natural de las personas individuales y la desaparición o disolución oficial de las personas jurídicas, así como para decidir si la menor edad, la demencia o imbecilidad, la sordomudez, la prodigalidad y la interdicción civil son únicamente restricciones de la personalidade, que permiten derechos y aún ciertas obligaciones."

8 Jan Kropholler. Internationales Privatrecht (einschließlich der Grundbegriffe des Internationalen Verfahrensrechts), 6.ª ed., Tübingen: Mohr Siebeck, 2006, § 8.º, p. 51.

9 Ernst Zitelmann. Internationales Privatrechts, Erster Band [v. 1], Leipzig: Duncker & Humblot, 1897, Erstes Kapitel, II, 1, pp. 42/45.

10 Regulamento da CIDH: "Artigo 25. Participação das supostas vítimas ou seus representantes. 1. Depois de notificado o escrito de submissão do caso, conforme o artigo 39 deste Regulamento, as supostas vítimas ou seus representantes poderão apresentar de forma autônoma o seu escrito de petições, argumentos e provas e continuarão atuando dessa forma durante todo o processo. 2. Se existir pluralidade de supostas vítimas ou representantes, deverá ser designado um interveniente comum, que será o único autorizado para a apresentação de petições, argumentos e provas no curso do processo, incluindo nas audiências públicas. Se não houver acordo na designação de um interveniente comum em um caso, a Corte ou sua Presidência poderá, se o considerar pertinente, outorgar um prazo às partes para a designação de um máximo de três representantes que atuem como intervenientes comuns. Nessa última circunstância, os prazos para a contestação do Estado demandado, assim como os prazos de participação nas audiências públicas do Estado demandado, das supostas vítimas ou de seus representantes e, dependendo do caso, do Estado demandante, serão determinados pela Presidência. 3. No caso de eventual discordância entre as supostas vítimas no que tange ao inciso anterior, a Corte decidirá sobre o pertinente".

11 Antônio Augusto Cançado Trindade. A pessoa humana como sujeito do direito internacional: a experiência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, in Carlos Alberto Menezes Direito, Antônio Augusto Cançado Trindade e Antônio Celso Alves Pereira (coordenadores). Novas perspectivas do direito internacional contemporâneo: Estudos em homenagem ao Professor Celso D. de Albuquerque Mello, Rio de Janeiro-São Paulo-Recife: Renovar, 2008, pp. 495-532.

12 Nádia de Araújo. Direito Internacional Privado: teoria e prática brasileira, 8.ª ed., São Paulo: Thomson Reuters/Revista dos Tribunais, 2019, I, n. 1.1, p. 36.

13 Victor N. Romero del Prado. Las personas juridicas en el derecho internacional privado, Cordoba (Argentina): Imprenta de la Universidad, 1926, Capítulo III, pp. 53/55.