COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas >
  3. Reforma do Código Civil >
  4. O conceito de ato ilícito e a reforma do Código Civil

O conceito de ato ilícito e a reforma do Código Civil

quinta-feira, 12 de junho de 2025

Atualizado em 11 de junho de 2025 14:09

1. Dano, culpa e ilicitude

A compreensão comum sobre o conceito de ato ilícito nas relações de Direito Privado tem sido, não raro, impropriamente limitada à ilicitude apta a desencadear a eficácia reparatória, mediante dever de indenizar.

Trata-se de leitura sobre a ilicitude civil que não apenas é insuficiente no contexto contemporâneo, em que se ampliam as fronteiras e as funções da responsabilidade civil, como, também, peca por tomar conceito particular como se fosse bastante para atender ao todo.

Parte dessa compreensão limitada sobre o conceito de ilicitude deriva de leitura isolada e parcial do disposto no art. 186 do Código Civil.

O art. 186, ao versar sobre o ato ilícito, o faz com enfoque na função compensatória da responsabilidade civil. Define-o, assim, como a "ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência" que "violar direito e causar dano a outrem".

A figura do dano parece, à primeira vista, elemento integrante do suporte fático do ato ilícito descrito no referido artigo.

Há, porém, na Parte Geral, um segundo conceito de ato ilícito, que consiste no exercício abusivo de direitos. A descrição normativa do suporte fático hipotético, constante do art. 187, define esse ato ilícito como o exercício de um direito que "excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes".

Não há, na definição do art. 187, o elemento dano. Com efeito, o exercício abusivo de um direito pode ter efeitos diversos da reparação civil, que será, também, devida se desse ilícito emergir dano. Não é o dano, porém, elemento integrante do conceito de ilicitude de que trata a norma em comento.

Essa constatação já permite cogitar de um conceito de ilicitude, na própria legislação vigente, mais abrangente do que aquele que a dicção literal do art. 186 parece apontar.

Em reforço a essa compreensão sobre um conceito geral de ilicitude, que não tem o dano como elemento essencial do suporte fático, tem-se o comando do art. 927 do Código Civil, no capítulo especificamente dedicado à responsabilidade civil, com a seguinte dicção:

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

O referido dispositivo aponta para caminho hermenêutico a respeito do sentido que se deve atribuir ao ato ilícito, haja vista dispor que, caracterizada a conduta eivada de ilicitude, haverá dever de reparar se, do ilícito, emergir dano.

O dano, assim, sob o ponto de vista técnico, pode não ser elemento essencial da ilicitude, mas, sim, fator eficacial pertinente ao dever de reparar danos, no âmbito da função compensatória da responsabilidade civil.

É de se notar que da conjugação entre os arts. 186 e 927 emerge uma aparente redundância, uma vez que o art. 927 exige, para o dever de reparar, a ocorrência de dano, ao passo que o art. 186, aparentemente, traria o dano como elemento do suporte fático do próprio ato ilícito nele descrito.

O comando do art. 927 do Código Civil permite compreender que o dano é o fator de eficácia do ato ilícito para fins de reparação civil (ou seja, é o fator que desencadeia a eficácia compensatória que pode derivar do ato ilícito), mas não se trata de elemento constitutivo do ato ilícito em si mesmo.

2. Ilicitude e tutela inibitória

O art. 12 do Código Civil, na redação vigente, parece reforçar essa conclusão, ao dispor que se pode exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.

A eficácia reparatória emerge da consumação do dano. O Direito, porém, por meio de tutela inibitória, pode atuar desde o momento em que se caracteriza a ameaça de ilicitude, mesmo sem dano.

Trata-se de exemplo de função preventiva da responsabilidade civil, já constante na norma vigente, ainda que na Parte Geral do Código Civil. A prevenção a que se refere o art. 12 não se dirige, necessariamente, ao dano, que é incerto, mas, sim, à conduta contrária ao direito. Trata-se de inibição do ilícito.

Isso vem em linha com a regra que define, a um só tempo, a tutela inibitória sob o ponto de vista do direito material e a técnica processual de inibição da prática do ilícito, constante do parágrafo único do art. 497 do CPC, que dispõe: "para a concessão da tutela específica destinada a inibir a prática, a reiteração ou a continuação de um ilícito, ou a sua remoção, é irrelevante a demonstração da ocorrência de dano ou da existência de culpa ou dolo".

Trata-se de norma que, quanto à tutela em si mesma, tem por objeto o direito material de seu titular, visando a impedir a prática do ato ilícito, por meio da técnica processualmente adequada, assegurando a prevenção em face do ilícito, independentemente de dano (MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela contra o ilícito: inibitória e de remoção - art. 497, parágrafo único, CPC/2015. São Paulo: RT, 2015, p. 60).

Seu pressuposto fundamental é o reconhecimento de que o ilícito não se confunde com o ato lesivo, conforme explica Marinoni: "Imaginou-se que a lei, por obrigar quem comete um dano a indenizar, não diferenciasse ilícito de dano, ou melhor, considerasse o dano, como elemento essencial e necessário da fattispecie constitutiva do ilícito. Entretanto, o dano não é uma consequência necessária do ato ilícito. O dano é requisito indispensável para o surgimento da obrigação de ressarcir, mas não para a constituição do ilícito".  (MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela contra o ilícito (art. 497, parágrafo único, do CPC 2015). Revista do TST, Brasília, vol. 81, no 4, out/dez 2015, p. 81)

Inibir é, pois, antes de evitar o dano, obstar a conduta ilícita.

Isso revela que o conceito do art. 186 do Código Civil, tal como vigente, é insuficiente para dar conta do sentido contemporâneo de que se reveste a ilicitude relevante para o Direito Privado - e, mesmo, para a responsabilidade civil, imantada de sua inevitável multifuncionalidade.

3. A ilicitude civil no PL 04/25 e as funções da responsabilidade civil

O PL 04/25 propõe norma definidora da ilicitude civil para qualificá-la não pelo resultado danoso, mas pela violação a direito, como expressão da ofensa ao ordenamento jurídico.

Em seu caput, a regra proposta para a redação do art. 186 do Código Civil vincula o suporte fático da ilicitude civil à violação a direito, para, em seu parágrafo único, dispor que o ilícito que gerar dano (fator de eficácia) ensejará responsabilidade civil, no âmbito de sua função compensatória:

 Art. 186. A ilicitude civil decorre de violação a direito.

Parágrafo único. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, imprudência ou imperícia, violar direito e causar dano a outrem, responde civilmente

A norma vai além: não exige, para fins de definição da ilicitude civil, o elemento subjetivo da conduta de quem viola direito. A ilicitude decorre da violação à norma que assegura direitos de per se.

Isso não significa afirmar que existiria, no projeto, dever de reparação sem dano, ou que restaria eliminado o critério subjetivo de imputação, como regra geral, para fins de reparação civil.

É que, diversamente da crença derivada da confusão conceitual entre ilicitude e dano, foi estabelecido um senso comum que associa, automaticamente, ilicitude e dever de reparar. Essas associações automáticas são equivocadas.

É possível haver ilicitude sem dolo ou culpa, assim como a ilicitude, conceitualmente, não depende de dano. Mas isso não significa que o ilícito não culposo que não gere dano ensejará dever de indenizar. Não haverá dever de indenizar, a despeito da prática do ato ilícito, em razão da carência do fator necessário à eficácia compensatória, que é o dano.

Essa ilicitude, que abstrai o elemento subjetivo da conduta e o efeito lesivo, é conceito geral. A eficácia jurídica que o ilícito produzirá, no âmbito da responsabilidade civil, dependerá dos demais requisitos legais e fatores eficaciais que a norma exige para cada uma de suas funções.

A função compensatória depende de dano como fator de eficácia e, em regra, de culpa ou dolo como critério de imputação (salvo nas hipóteses de responsabilidade objetiva).

A função preventiva, porém, não depende nem de dano, como fator eficacial, nem de culpa, como critério de imputação.

Isso fica evidenciado, no projeto de reforma do CC, no capítulo sobre responsabilidade civil.

O inciso I do parágrafo único do art. 927, no projeto, dispõe que o dever de reparar derivará, além das demais hipóteses descritas na referida norma, do ato ilícito que houver causado dano:

Art. 927. Aquele que causar dano a outrem fica obrigado a repará-lo.

Parágrafo único: Haverá dever de reparar o dano daquele:

I - cujo ato ilícito o tenha causado, nos termos do parágrafo único do art. 186 deste Código; (...)

Observe-se que a norma se reporta ao parágrafo único do art. 186 (e não apenas ao caput), para deixar claro que o critério de imputação do dever de reparar ao agente que, por ato ilícito, tenha causado dano, consiste na demonstração de dolo ou culpa.

O ilícito que não causa dano não desencadeia a função compensatória. Nem por isso, porém, o dano será reputado como elemento do suporte fático do ato ilícito, uma vez que a ilicitude civil, mesmo sem gerar dano, será relevante para a função preventiva da responsabilidade civil. É o comando que emerge do parágrafo 3º do art. 927, na redação proposta pelo PL 04/2025: 

Art. 927. (...)

§ 3º Sem prejuízo do previsto na legislação especial, a tutela preventiva do ilícito é destinada a inibir a prática, a reiteração, a continuação ou o agravamento de uma ação ou omissão contrária ao direito, independentemente da concorrência do dano, ou da existência de culpa ou dolo. Verificado o ilícito, pode ainda o interessado pleitear a remoção de suas consequências e a indenização pelos danos causados.

O ilícito civil, em si mesmo, precisamente por consistir em violação a direitos, há de ser repelido pelo ordenamento, mesmo que não cause dano e não decorra de ação culposa ou dolosa. Mas a ordem jurídica não irá sancionar esse ilícito puro, em seu conceito geral, mediante dever de indenizar, à míngua dos elementos que integram a função reparatória: a resposta se dá na antessala, por meio da função preventiva, que integra a responsabilidade civil.

No Código Civil e Comercial da Nação Argentina, por exemplo, a função preventiva é expressamente enunciada no art. 1.708, ao lado da função compensatória. Aquele Código Civil prevê, ainda, expressamente, no campo da função preventiva (art. 1.710, "a" e "b"), o dever geral de evitar danos não justificados e tomar as medidas razoáveis para evitar que se produza um dano, bem como o ressarcimento por despesas preventivas (art. 1.710, "b") e a tutela inibitória (art. 1.711).

A relevância central da prevenção no âmbito da responsabilidade civil não foi ignorada pelos autores do PL que originou o Código Civil de 2002. A cláusula geral do risco que, ao final, restou plasmada no parágrafo único do atual art. 927, assim foi originalmente redigida pela refinada pena de Agostinho Alvim, no parágrafo único do art. 963 do projeto de 1975:

Art. 963. (...)

Parágrafo único. Todavia, haverá a obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente  desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, grave risco para os direitos de outrem, salvo se comprovado o emprego de medidas preventivas tecnicamente adequadas.

No Congresso Nacional, foi suprimida a parte final do parágrafo, que expressamente reconhecia a relevância das medidas preventivas. Isso não afasta, porém, a constatação de que a prevenção não era finalidade estranha ao escopo original do projeto de 1975.

A exemplo do Código Civil Argentino, e retomando, de modo ampliado, o valor da prevenção já reconhecido pelos autores do Código Civil, o PL 04/25 não limita a responsabilidade civil à sua função compensatória, embora esta continue a ser a sua função primordial. À função compensatória é agregada a função preventiva - havendo, ainda, no PL, regras que visam a assegurar, também, a função sancionatório-pedagógica, a função restitutória e a função promocional da responsabilidade civil.

A função sancionatório-pedagógica e a função promocional, a rigor, guardam vínculo instrumental à prevenção, ainda que operem mediante mecanismos técnicos autônomos.

O ponto de partida, sempre, será a ilicitude civil, em seu conceito geral, depurado, em seu suporte fático, de elementos que, tecnicamente, não são definidores da ilicitude em si mesma, referindo-se, apenas, aos fatores eficaciais necessários para que o ilícito desencadeie a função compensatória da responsabilidade civil e imponha o dever de indenizar.