Circus

Sexto conto

Sexto conto

19/9/2008

 

As crianças vivem a surpreender-nos com suas tiradas espirituosas, que demonstram a presença nelas da inteligência, coisa que nos deixa envaidecidos, como se fôssemos os responsáveis por isso, o que não deveria admirar-nos, pois até em animais irracionais os cientistas já encontram reações demonstrativas da presença de algo muito semelhante à inteligência humana.

Os macacos não aprendem, uns com outros, a utilizar duas pedras grandes para quebrar a casca dura de pequenas nozes que eles encontram caídas das árvores ? Não se utilizam de uma vareta para recolher formigas, enfiando a varinha no formigueiro e esperando as formigas subirem por ela ? Eu mesmo não tinha coragem de dirigir automóvel, o que, aliás, ocorre com muita gente, tanto que há psicólogos especializados em lidar com essa espécie de medo. Indo a um circo, lá eu vi um enorme urso dirigindo uma motocicleta, dando voltas e mais voltas no picadeiro. Saí do circo decidido : no dia seguinte matriculei-me em uma auto-escola.

"- Vô, fala mais alto que, com a televisão ligada, eu não ouvo o que você está me dizendo."

"- Ovo ? Você disse ovo ? Mas ovo é de galinha, de pata, de marreca. O certo é ouço. Ouviu bem ? Ouço" corrige o avô, elevando a voz justamente por causa do som da televisão.

"- Mas, vozinho. Osso também é de galinha, de pata, de marreca." E faz um riso debochado, como a dizer te peguei, espertinho.

É comum dizerem que as crianças de hoje já nascem sabendo. Não sei se isso é verdade, mas um amigo meu, passeando com a família no zoológico, contava aos netos a velha história da cegonha, que tem aquele bico enorme que vocês estão vendo porque carrega com ele os bebês que lhe são encomendados. Quando ele pegou no colo o mais novo, para mostrar-lhe o que havia além do muro, onde estavam as aves, ouviu um dos netos sussurrar a outro : "não conte a verdade ao vovô que ele já não tem idade para essas revelações."

Certa ocasião, o André levantou-se, tirou o pijama, que jogou sobre a cama, tomou banho, vestiu o uniforme do colégio e desceu para o café da manhã. A Patrícia repreendeu-o : "Você não sabe que deve guardar o pijama na gaveta ?" E ele, a título de explicação : "Então você não sabe que eu não sou perfeito ?"

Para aguçar ainda mais a inteligência de meus netos, reuni-os certo dia na sala de visitas e lhes fiz esta pergunta, dramatizando a apresentação : você entra em casa à noite e a luz está apagada. A casa está toda no escuro porque acabou a força naquele quarteirão e ainda não foram acesas velas, como se faz necessário nessas ocasiões. Você vê um vulto no corredor e balbucia "sua bênção, vovô." O vulto responde : "Deus te abençoe, meu neto, mas eu não sou seu avô." Pergunto : quem era aquele vulto ?

Meus netos passaram a analisar o problema e, enquanto não chegassem a uma resposta que satisfizesse a todos, nenhum deles arriscaria uma resposta qualquer. Ponto para eles, pois é comum adultos inventarem respostas, especialmente nossos alunos universitários, como se o seu professor fosse um débil mental. Aliás, os testes utilizados nos concursos públicos incentivam essa conduta reprovável, pois o fato de o candidato errar o seu palpite não lhe traz qualquer prejuízo. No meu tempo, cada três respostas erradas do teste eliminava uma resposta certa. Isso acabou. É assim que hoje se vai formando o caráter dos nossos jovens.

Pois eu, que imaginei que teria uns bons minutos para apreciar o meu cachimbo lá fora na varanda da casa, sou surpreendido pelo neto mais velho, já com jeito de rapaz e modos de galã de televisão, que se sai com esta :

"- Vozão, já que você não vai ter o que fazer enquanto aguarda que seus netos decifrem a charada apresentada, posso apresentar-lhe também uma charada para ocupar seu tempo ?"

Notem a habilidade do garoto. Eu havia apresentado um teste para avaliar a inteligência deles, como lhes havia dito, mas o meu neto primogênito, com muita sagacidade, em lugar de dizer que também está testando a minha inteligência, enfeita o teste de inteligência dizendo ser ele um simples passatempo. Tem tudo para ser advogado ou, melhor ainda, diplomata.

"- Que venha o teu teste de inteligência" disse eu, dando o nome correto aos bois.

"- Pois lá vai. Pense que você é um pesquisador, que descobriu que em certa selva existe uma tribo cujos componentes só falam a verdade. Você viaja para aquela selva a fim de entrevistar alguns de seus membros. Mas você é avisado de que, perto daquela, há uma outra tribo cujos componentes só dizem mentira. Eles são incapazes de dizer a verdade em qualquer circunstância."

Devo registrar aqui, por dever de justiça, que fiquei muito impressionado com a fluência verbal do meu primogênito, que até outro dia era um bebê gatinhando pela casa de minha filha. Como essas crianças envelhecem rápido, Deus meu ! Pois ele, já anunciando um futuro orador de júri, prossegue em sua exposição.

"- Quando você chega a certo ponto da selva, sempre caminhando, nota que a estrada se divide em duas : um ramo segue para a esquerda e outro segue para a direita."

Nós dizemos que a estrada se bifurcou, esclareci, professoral.

"- Que seja. Você então conclui, acertadamente, que uma daquelas duas novas estradas vai dar na tribo que só fala verdade, enquanto a outra estrada te levará para a tribo que não te interessa. Enquanto você medita sobre o problema, aparece um rapaz, vindo pela estrada da esquerda. Então você pergunta a ele : você vem vindo de qual das duas tribos?"

Alto lá. Digamos que o recém-chegado dissesse que pertence à tribo que fala só a verdade. Se ele, de fato, está dizendo a verdade, ele pertence à tribo que só fala a verdade, mas, se ele estiver dizendo uma mentira, ele pertence à outra tribo. Ou seja, a resposta dele não me servirá para nada, antecipei.

"- Grande, vozão. Aí é que vem o problema que o senhor deve resolver. Ele diz, de fato, que pertence à tribo que só fala a verdade. Eis a questão : você deve fazer a ele outra pergunta, cuja resposta lhe dirá se ele está falando a verdade ou mentindo. Que pergunta você faria a ele ?"

Ora, ora, ora. Criamos filhos, mimamos netos para sermos, a esta altura da vida, encostados na parede com uma charada dessas ? Fui à varanda saborear o meu cachimbo, pedindo às estrelas que me inspirassem, para que eu não passasse vergonha diante daqueles fedelhos. Lá dentro, certamente felizes com a esnucada que me haviam dado, eles discutiam a solução do problema que eu lhes havia proposto.

 

1O livro Descontos para Meus Netos, em preparação.

 

Colunista

Adauto Suannes foi desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, membro fundador do IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, da Associação Juízes para a Democracia e do Instituto Interdisciplinar de Direito de Família.

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