IA em Movimento

Imperativo da dominância regulatória em IA

A nova corrida tecnológica dos EUA combina sigilo, supercomputação e disputa pela liderança global em IA, reeditando o espírito urgente e estratégico do Projeto Manhattan.

9/12/2025

A Ordem Executiva do presidente Donald J. Trump, publicada em 24/11/25, intitulada “Lançamento da Missão Gênesis”, estabelece um esforço norte-americano de âmbito nacional. Pode ser comparável em urgência e ambição ao Projeto Manhattan, também de pesquisa e desenvolvimento das primeiras armas atômicas durante a Segunda Grande Guerra, sob o comando do físico J. Robert Oppenheimer. A nova missão tem como objetivo primordial de assegurar a liderança norte-americana no desenvolvimento da IA. Como afirmou Oppenheimer, “a dúvida é o primeiro passo para o conhecimento; nunca devemos parar de questionar”.

Tão sigilosa e imediata quanto o Projeto Manhattan, a Ordem Executiva do presidente Donald J. Trump, publicada em 24/11/25, lançou a  “Missão Gênesis" para criar infraestrutura e acelerar esforços de pesquisa em sistemas de IA nos EUA.O Projeto Manhattan desenvolveu as primeiras armas atômicas durante a Segunda Grande Guerra em trabalho intensivo, sob o comando do físico J. Robert Oppenheimer, que afirmou que “a dúvida é o primeiro passo para o conhecimento". No mesmo rito acelerado, o Gênesis postula apresentar os primeiros desafios tecnológicos e inovadores para empresas de tecnologia e academias dos EUA.

Analogicamente, se a ciência tradicional é similar a um artesão trabalhando com as ferramentas que conhece, a Missão Gênesis constrói uma fábrica digital e segura - a Plataforma Americana de Ciência e Segurança - onde o governo fornece o maquinário (supercomputação e datasets), os engenheiros (cientistas e parceiros) propiciam a perícia, e o regulador (DOE – Departamento de Energia e APST – Ciência e Tecnologia) deve desenhar as regras, as patentes e os protocolos de segurança antes que a linha de produção de descobertas comece a funcionar em capacidade total.

A iniciativa visa desencadear uma nova era de inovação e descoberta aceleradas pela IA para solucionar os problemas mais desafiadores do século, o que inclui impulsionar descobertas científicas, fortalecer a segurança nacional, assegurar o domínio energético, aumentar a produtividade da força de trabalho e multiplicar o retorno sobre o investimento Federal em P&D -pesquisa e desenvolvimento.

A pedra angular dessa missão nacional reside na  criação e operação da Platform - Plataforma Americana de Ciência e Segurança, pela qual o Secretary - Secretário de Energia é responsável por estabelecer e operar, garantindo que todos os recursos do DOE - Departamento de Energia sejam integrados em uma plataforma segura e unificada. O Secretário comandará a implementação direta da Missão no DOE e a coordenação interagências, pela qual o APST - Assistente do Presidente para Ciência e Tecnologia fornece a liderança geral e a coordenação das agências participantes através do NSTC - Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia, assegurando o alinhamento com os objetivos nacionais.

A Plataforma é projetada para aproveitar uma das maiores coleções de datasets científicos federais já reunidas, que incluem dados proprietários, federais curados, abertos e sintéticos. O acesso a esses dados deve ser seguro e consistente, empregando a lei, proteções aplicáveis de classificação, privacidade e propriedade intelectual e padrões federais de acesso e gestão de dados. Além disso, exige-se que o Secretário desenvolva um plano, com medidas apropriadas de cibersegurança baseadas em risco, para incorporar datasets de pesquisa financiada pelo governo federal, instituições acadêmicas e parceiros do setor privado aprovados.

Um dos aspectos mais inovadores da Missão Gênesis e de grande interesse para a área jurídica concentra-se na determinação de como a PI - Propriedade Intelectual será tratada em um ecossistema, no qual a IA (especialmente agentes de IA) automatiza fluxos de trabalho e testa novas hipóteses. Entre outras medidas, o secretário deve estabelecer políticas claras para a titularidade, licenciamento, proteções de segredo comercial e comercialização da propriedade intelectual desenvolvida no âmbito da Missão. Atualmente, o mercado tem enfrentado violações massivas de PI, como o caso da Anthropic PBC, empresa que utilizou milhões de obras “piratas” supostamente protegidas por copyright, sem autorização dos autores, para o treinamento dos modelos de linguagem da empresa.

Notavelmente, essas novas políticas devem abordar especificamente as "inovações decorrentes de experimentos dirigidos por IA". Este requisito antecipa a complexidade legal de determinar a autoria e a titularidade quando agentes de IA realizam ou auxiliam o processo de descoberta. A definição de "políticas claras" é crucial para incentivar a participação do setor privado e garantir a maximização do benefício público, conforme estabelecido na Ordem.

Embora a Ordem não mencione explicitamente “direitos humanos”, suas disposições de segurança, controle de acesso e vetting têm impactos indiretos sobre liberdades civis e garantias individuais, suas disposições relativas à segurança nacional e ao controle de acesso impõem considerações éticas e societais que impactam diretamente os direitos individuais e a abertura da pesquisa.

O foco primordial na segurança e na dominância tecnológica leva a um regime de controle de Acesso e Vetting, ou seja, devem ser instituídos procedimentos rigorosos de triagem de pessoal (vetting) e de autorização de acesso, com critérios uniformes aplicáveis tanto a colaboradores federais quanto a parceiros privados. Nesse tópico, tornam-se relevantes parcerias com o setor privado,  pois, embora a colaboração externa seja incentivada, são impostos padrões uniformes e rigorosos de acesso e gestão de dados, além de cibersegurança, para colaboradores não federais.

A concentração de poder computacional e dados científicos Federais para acelerar tecnologias críticas (como biotecnologia e materiais avançados) sob um rigoroso regime de segurança levanta questões sensíveis sobre o equilíbrio entre segurança nacional, liberdade acadêmica, transparência científica e os limites éticos de tecnologias de dupla utilização. A menção à necessidade de aderir às proteções de privacidade, é o ponto de contato regulatório que visa proteger os direitos fundamentais em meio ao impulso por aceleração científica.

O caráter regulatório da Missão Gênesis torna-se evidente em suas exigências de conformidade. A implementação deve observar a legislação aplicável e está condicionada à disponibilidade de dotações orçamentárias aprovadas pelo Congresso. Embora a Missão vise à colaboração, a Ordem incorpora o disclaimer padrão segundo o qual suas disposições não criam direitos ou benefícios, substantivos ou processuais, oponíveis ao governo Federal, suas agências ou agentes.

Em síntese, a Missão Gênesis inaugura um novo paradigma regulatório em que infraestrutura estatal, segurança nacional e inovação convergem para sustentar a pretensão norte-americana de liderança global em Inteligência Artificial. Resta saber se tal modelo - centralizado, seguro e orientado à supremacia tecnológica - servirá de referência para outras jurisdições ou se funcionará apenas como um marco singular da política industrial dos Estados Unidos em um momento de intensa competição estratégica.

Colunistas

Fabio Rivelli é advogado, sócio do escritório Lee, Brock, Camargo Advogados (LBCA); Doutorando em Direito pela PUC-SP, Mestre em Direito PUC-SP; MBA pelo INSPER, Pesquisador efetivo registrado no CNPq pela PUC-SP no grupo de Pesquisa do Capitalismo Humanista e ESG à Luz da Consciência Quântica, Palestrante da Sorbonne de Paris pelo terceiro ano consecutivo; Secretário-adjunto do Instituto do Capitalismo Humanista; DPO Setorial da Subseção Guarulhos da OAB/SP, Presidente da Comissão de Gestão Inovação e Tecnologia da OAB/SP - Subseção de Guarulhos (gestão até 2024); Coordenador adjunto em bioética e governança corporativa da Comissão de Privacidade de Dados e IA da OAB-SP; professor e autor de livros.

Ricardo Freitas Silveira é sócio da Lee, Brock, Camargo Advogados. Doutor e Mestre em Direito pelo IDP – Instituto Brasileiro de Ensino,Desenvolvimento e Pesquisa.Especialista em gestão de contencioso de volume pela FGV e gestão de departamentos jurídicos pelo Insper.Especialista em Negócios Sustentáveis pela Cambridge University.Autor do livro "Análise Preditiva e o Consumidor Litigante".Professor convidado da Saint Paul, FIA, EDP, EBRADI e PUC-PR para cursos de pós-graduação.Coordenador da pós-graduação LEGALE em Gestão de Escritórios e Departamentos Jurídicos.Coordenador do núcleo de privacidade, proteção de dados e inteligência artificial da ESA SP.Membro consultor da Comissão de Acesso à Justiça da OAB Federal.Eleito pela Revista Análise nos anos de 2020, 2021 e 2023 como um dos Advogados Mais Admirados do Brasil em Direito Digital.

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