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A relevância do cão-guia

Entre algoritmos e afetos, o texto revela que, enquanto a IA simula razão, o cão-guia ensina humanidade - tecnologia e empatia em contraste harmônico.

12/10/2025

A humanidade já convive e respira a inteligência artificial, em que a criatividade humana, de antemão, rascunhou de forma definitiva sua tendência de se apropriar dos engenhos produzidos pelos algoritmos, que não criam, mas com agilidade necessária, reciclam o que já foi produzido. Na conjugação da máquina, que articula as palavras adequadas, com a atuação do humano que delas se apropria e impõe sua criatividade, nasce, consequentemente, uma parceria híbrida.

Além dessa nova realidade já tomou assento o movimento conhecido por transumanismo, como se ainda vivesse no tempo da ficção científica, em que se procura capacitar o homem com as tecnologias emergentes para que ele possa atingir a cobiçada potencialidade da vida.

Ao lado e ao cerco de toda essa parafernália, inofensivo, encontra-se o cão-guia, desprovido de toda tecnologia, mas com radar e waze acionados pela sua natureza.

O deficiente visual no Brasil, compreendendo a cegueira e a baixa visão, passa por sérias dificuldades de locomoção em nossas cidades, muitas delas antigas, sem sinalização sonora ou no solo, com inúmeros obstáculos arquitetônicos que dificultam sua inclusão social. Daí as novas vias e logradouros públicos, em virtude das recentes legislações, pelo menos nos locais de grande circulação, vão implantando adaptações que visam melhorar a acuidade visual. Muitas vezes o portador de deficiência visual opta pelo uso da bengala, mas as calçadas irregulares, os degraus imprevisíveis e até mesmo os obstáculos de maior porte, como um suporte metálico instalado para ostentar uma propaganda, por exemplo, não são alcançados pelo tatear da bengala. E, inevitavelmente, ocorre a queda com graves ferimentos ou fraturas.

Apesar de se ter notícia que a integração do cão e do homem remonta à própria história da humanidade, o cão de assistência teve sua origem logo após a Primeira Guerra Mundial, com o treinamento de cães para acompanhar os soldados veteranos que ficaram cegos. Como os resultados foram positivos a ideia prosperou e, hoje há escolas com profissionais habilitados para a seleção de cães de serviços e responsáveis por um treinamento rigoroso e intensivo para que os animais possam interpretar situações de perigo e conduzir com segurança seu par. No Brasil, um cão adestrado e pronto para o trabalho importa em investimento considerável, valor inacessível para maioria das pessoas com restrições visuais.

A relevância do cão-guia, definido como animal castrado, isento de agressividade, de qualquer sexo, de porte adequado, treinado com o fim exclusivo de guiar pessoas com anomalia visual, ganhou tanta importância que a lei 11.126, de 27/7/05, regulamentada pelo decreto 5.904, de 21/9/06, conferiu o direito do portador de deficiência visual de ingressar e permanecer em ambientes de uso coletivo acompanhado de cão-guia. Isto quer dizer, em consonância com a cidadania plena apregoada pela Constituição Federal, que a pessoa usuária de cão-guia tem o direito de ingressar e permanecer com o animal nos veículos, compreendendo todas as modalidades de transporte interestadual e internacional com origem no território brasileiro, e nos estabelecimentos públicos e privados de uso coletivo. Nada mais é do que a celebração do princípio da isonomia.

Recentemente, no Rio de Janeiro, ocorreu um caso em que o cão-guia, registrado como Teddy, foi impedido de embarcar com sua tutora, autista, com 12 anos, em um voo internacional. Foi necessário invocar a tutela jurisdicional para expedir liminar autorizando o embarque.

A lei é um instrumento social de enorme valia. Justifica-se por si só, vez que dita as regras que devem ser observadas no relacionamento entre as pessoas, tudo visando um convívio social harmônico numa sociedade adequadamente ordenada. O animal, por sua vez, deixa a categoria de coisa e ingressa na especial de seres sencientes, com capacidade suficiente para demonstrar emoções, como o sofrimento e angústia, além de receber a tutela necessária de proteção à vida, à segurança e ao seu bem-estar.

O animal, preparado para uma missão tão nobre, passa a ser uma extensão do corpo do deficiente visual, integrando-se a ele como o L’Oeil Qui Voit ou, como dizem os americanos, The Seeing Eye. Na realidade, apesar de se apresentarem como uma dupla, formam um só conjunto, com movimentos harmônicos e coerentes, num silêncio quase que indizível, num linguajar expressivo que se lê pelo leve contato corporal, e ao som de suave comando de voz caminham com mesma naturalidade do pacato cidadão. Para tanto, o cão de assistência, com o equipamento obrigatório, composto por coleira, guia e arreio com alça, portará também sua identificação e seu condutor deverá exibir, quando solicitado, documento comprobatório do registro da escola de cães-guia, acompanhado do atestado de vacina e sanidade do animal.

É indiscutível, e causa até mesmo admiração, que um cão que passa por um austero e rigoroso treinamento, deve reunir inteligência acima do padrão normal para realizar todas as ações programadas com a segurança recomendada. Não se limita a uma parceria unicamente para desviar o tutor dos obstáculos que surgem à frente, mas sim compreende uma convivência extremada em razão do companheirismo. Ambos se entendem por palavras e gestos em perfeita sintonia pelo espírito colaborativo que os une.

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Coordenação

Eudes Quintino de Oliveira Júnior promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde e advogado.