Meio de campo

Muralha da China

Muralha da China.

6/9/2017

O mundo inteiro já percebeu o potencial econômico do futebol. São bilhões de dólares movimentados anualmente com patrocínios, direitos de transmissão e de jogadores, produtos licenciados, ingressos, dentre outras várias fontes de receitas.

O reflexo disso pode ser facilmente identificado não só pela inflação das cifras nas últimas transferências de atletas – como no caso da negociação de Neymar com o Paris Saint Germain –, mas, também, pela entrada massiva, nos clubes transformados em empresas, de agentes do mercado financeiro, especialmente fundos de investimento, e pelo crescimento de ligas periféricas, a exemplo das asiáticas.

A China ilustra essas proposições. Donos da segunda maior economia mundial, os chineses voltaram seus olhos de vez para o futebol. A sua liga vem recebendo investimentos vultosos e importantes atletas internacionais foram contratados.

A evolução é nítida. Alguns anos atrás, seria impossível imaginar que estrelas como Carlitos Tévez, Jackson Martínez e Hulk trocariam clubes europeus, e até mesmo sul-americanos, para disputar o campeonato chinês.

E não há qualquer segredo no discurso: a China quer se tornar, até 2050, uma potência mundial, iniciando com a meta de classificar a seleção nacional para a Copa do Mundo de 2022, a ser disputada no Catar. Com esse objetivo lançou, aliás, um plano ousado, cujas bases estão fincadas no fomento à criação da cultura do futebol e no desenvolvimento dos atletas locais.

Apesar do crescente sucesso da liga, com a valorização dos direitos de transmissão televisiva das partidas – muito em razão da presença de atletas internacionais –, os chineses perceberam que o modelo pautado na importação não se adequava aos objetivos do país no longo-prazo.

O emprego de recursos em contratação midiática não formaria, como de fato não formará, uma base local sólida e competitiva. Ademais, esse movimento passou a ser visto como espécie de "evasão de divisas", gerando riqueza direta e imediata apenas aos times vendedores, geralmente alocados no estrangeiro.

Afinal, os montantes gastos com as transferências internacionais poderiam ser aplicados dentro do país, em escolas, profissionais e infraestrutura voltados à prática do futebol pelos próprios chineses, o que serviria melhor ao propósito de transformação da China em uma potência mundial.

Partindo dessa premissa, a Associação Chinesa de Futebol (Chinese Football Association – CFA) instituiu a cobrança de uma espécie de "taxa", com alíquota de 100% (cem por cento), sobre as contratações de jogadores estrangeiros.

Assim, caso um clube chinês da primeira divisão que estiver em déficit – e, aparentemente, este é o caso de quase todos eles – contrate um atleta estrangeiro, deverá depositar em um fundo governamental o mesmo valor pago ao clube vendedor pela transferência, o que dobra o custo da contratação de jogadores de outras nacionalidades.

Designado especificamente para o desenvolvimento do futebol local, e gerido pelo governo nacional, o fundo terá a missão de formar novos atletas chineses e promover o esporte no país.

Os efeitos dessa nova medida já foram sentidos: na última janela de transferências, a maior contratação de estrangeiro por um clube chinês movimentou 5,7 milhões de euros, em uma negociação envolvendo o empréstimo do atacante Anthony Modeste, pelo Colônia, clube alemão, ao Tianjin Quanjian, onde joga o brasileiro Alexandre Pato.

Criou-se uma nova "Muralha da China". E sob o mesmo pretexto: proteger o país da invasão estrangeira.

Naturalmente, as semelhanças entre a regra instituída pela CFA e a estratégia militar, adotada há mais de 2 mil anos, param por aí. Mas, é curioso notar os traços dessa tendência protecionista, justificada pelo desejo de fortalecer o meio local, aprioristicamente, para, em seguida, galgar uma posição de hegemonia em escala mundial.

Caso totalmente diferente do brasileiro: o país é o maior exportador de jogadores do mundo. Enquanto do outro lado do planeta estão "fechando os mercados", preocupados com o desenvolvimento dos atletas nacionais e a criação um "DNA futebolístico", os jogadores nacionais já nascem praticamente prontos, de berço, com o futebol correndo em suas veias.

Apesar da abundância em matéria-prima, esses meninos não recebem a formação adequada para tornarem-se profissionais e competir em ambientes hostis e altamente competitivos. Poucos resistem e se destacam.

O Brasil dispõe de todos os elementos que comporiam um ecossistema sustentável e inimitável: jogadores, times, campeonatos, seleção e torcida local, e que poderia se expandir, atraindo, especialmente, torcedores mundiais.

O problema está posto: enquanto não se transformar a forma de gestão do futebol brasileiro e enquanto não for criado um ambiente propício ao desenvolvimento da atividade futebolística do país, inserindo os times em um contexto de mercado, disponibilizando instrumentos e mecanismos de controle e captação de recursos, inclusive e especialmente para educação, formação e manutenção voluntária de jogadores, o país se posicionará no terceiro ou quarto escalão das ligas nacionais, atrás, eventualmente, de liga que, em seu país, ainda concorre com o ... ping pong (ou melhor, tênis de mesa).

O Brasil não construiu uma muralha, como a chinesa, mas cria obstáculos ao desenvolvimento do seu futebol que se mostram mais eficientes (e implacáveis) do que qualquer obra protecionista.

Colunista

Rodrigo R. Monteiro de Castro advogado, professor de Direito Comercial do IBMEC/SP, mestre e doutor em Direito Comercial pela PUC/SP, coautor dos Projetos de Lei que instituem a Sociedade Anônima do Futebol e a Sociedade Anônima Simplificada, e Autor dos Livros "Controle Gerencial", "Regime Jurídico das Reorganizações", "Futebol, Mercado e Estado” e “Futebol e Governança". Foi presidente do IDSA, do MDA e professor de Direito Comercial do Mackenzie. É sócio de Monteiro de Castro, Setoguti Advogados.

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