Migalhas de Responsabilidade Civil

Caso Glória Pires e a possível utilização de um meme como fato ensejador de dano in re ipsa

Karenina Tito e Matheus Abreu analisam o caso Glória Pires, em que meme virou indenização: Uso comercial sem consentimento gera dano in re ipsa.

13/5/2025

No presente artigo, busca-se analisar a fundamentação da sentença judicial que arbitrou indenização em favor da atriz global Glória Pires, em razão de uso indevido de sua imagem, caracterizado pela aplicação de meme em propaganda.

Em meados do mês de fevereiro do ano de 2025, o nome da atriz global Glória Pires foi repercutido nos mais diversos meios de notícia, mas dessa vez por um fato não relacionado à sua dramaturgia.

Trata-se da divulgação da sentença exarada nos autos de processo judicial movido por ela em face da empresa “ME PASSA AÍ EDIÇÕES, PRODUÇÕES E EMPREENDIMENTOS LTDA S/C” e seu suposto proprietário.

Em síntese, a decisão proferida pelo juízo, vinculado ao TJ/RJ, determinou o pagamento de R$ 15.000,00 (quinze mil reais) em favor da atriz, a título de indenização pelos danos morais causados por utilização indevida da imagem da atriz.

Isso posto, cabem considerações jurídicas sobre a notícia no que tange à responsabilidade civil, ponto central do processo. Para tanto, convém tratar da utilização da imagem da celebridade.

Da leitura do decisum, é possível verificar que a imagem da global foi utilizada em formato de meme pela empresa, que reproduziu trecho famoso da participação da atriz na cobertura do Oscar de 2016 realizada pela emissora Globo, notadamente pelo uso da frase: “não sou capaz de opinar”.

Diante disso, o pensamento menos atento pode ser induzido a acreditar que o reconhecimento do dever de indenizar decorreu do tom jocoso ou pejorativo que um meme eventualmente carrega, que poderia ter atingido à honra da celebridade. Porém, da leitura da decisão é possível notar que o reconhecimento da utilização indevida tem no seu núcleo dois outros fatores principais, quais sejam: a ausência do consentimento e a finalidade comercial da veiculação da imagem.

Prova disso é o fato de que a decisão aplicou como base da sua fundamentação a súmula 403 do STJ, que estabelece: “Independe de prova do prejuízo a indenização pela publicação não autorizada de imagem de pessoa com fins econômicos ou comerciais”.

No que tange ao uso indevido de imagem, é necessário pontuar que o dever de indenizar está previsto no art. 5°, inciso X, da CF/88:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;   

(grifos nossos)

De mais a mais, também é ilícito o enriquecimento à custa de outrem sem justa causa, conforme reza o art. 884 do CC:

Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.

Assim sendo, a suposta violação constatada pela aplicação de um meme sem autorização, para além da evidente mácula que pode causar à imagem da global ao ser associada a um produto que desconhece ou, no mínimo, não referenda, atinge diretamente direito personalíssimo de imagem, sob o qual a ninguém é lícito locupletar-se.

Diante disso é que, apoiado no entendimento fixado pelo STJ, o eminente julgador entendeu pela aplicabilidade do dano in re ipsa no caso concreto, dispensando o requisito da comprovação do dano para configurar o dever de indenizar.

Sobre a figura do dano in re ipsa, oportuno destacar que sua existência não está prevista em nenhum Diploma Legal integrante do Ordenamento Jurídico brasileiro, sendo, sobretudo, uma figura oriunda da jurisprudência, com destaque para a produção do Tribunal da Cidadania.1

Objetivamente, o dano in re ipsa é usualmente reconhecido nos casos em que a ação ou omissão apreciada, por si só e pelos elementos que lhe cercam naturalmente, em razão do bem jurídico que ofende, seus reflexos e natureza, tem o condão de gerar o dever de indenizar, sendo o dano causado deduzido pela mera utilização da razão comum, consoante fundamentação do acórdão proferido durante o julgamento do REsp 1.327.773-MG2, sob a relatoria do ministro Luís Felipe Salomão.

Isso posto, sendo a demandante pessoa que trabalha e se mantém financeiramente pela exploração direta da imagem, torna-se ainda mais fácil a compreensão da relevância da proteção do bem jurídico e dos danos que o ato ilícito discutido, em si, pode causar.

Por fim, conclui-se com a certeza de que a indenização arbitrada em favor de Glória Pires teve como fato ensejador não o meme, diretamente, mas o possível enriquecimento ilícito de terceiro por meio da utilização de sua imagem em plataforma comercial sem o devido consentimento ou contraprestação.

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1 Criado pela Constituição Cidadã de 1988, o STJ também é conhecido como “Tribunal da Cidadania”.

2 Disponível aqui. Acesso em: 28 abr. 2025

3 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula nº 403. Independe de prova do prejuízo a indenização pela publicação não autorizada de imagem de pessoa com fi ns econômicos ou comerciais. Diário da Justiça: Segunda Seção, Brasília, DF, 24/11/2009. Disponível aqui. Acesso em: 28 abr. 2025.

4 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível aqui. Acesso em: 28 abr. 2025.

5 BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 139, n. 8, p. 1-74, 11 jan. 2002. Disponível aqui. Acesso em: 28 abr. 2025.

6 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.327.773-MG (Quarta Turma). Acórdão. Recurso Especial. Propriedade Industrial. Uso indevido de marca de empresa. Semelhança de forma. Dano material. Ocorrência. Presunção. Dano moral. Aferição. In re ipsa. Decorrente do próprio ato ilícito. Indenização devida. Recurso provido. [...] Recurso especial provido. Data de Julgamento: 28/11/2017, Data de Publicação: DJe 15/02/2018, Brasília-DF. Disponível aqui. Acesso em: 28 abr. 2025.

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Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

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Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.