Migalhas de Responsabilidade Civil

Cláusula de bloqueio do celular: Anotações sobre a responsabilidade patrimonial

Frederico Glitz expõe a polêmica do bloqueio de celular por dívida, mostrando como a medida viola direitos e desvirtua a função social do contrato.

24/6/2025

Há alguns dias noticiava-se1 a decisão da 2ª turma do TJ/DFT que determinava, em ação civil pública, que duas ‘financeiras’ se abstivessem de realizar novos empréstimos garantidos pelo celular do devedor.

Na prática, contudo, não se mencionava a constituição de penhor (ou de seu registro) nem de qualquer outra forma tradicional de garantia do crédito. O que realmente importaria, aos credores, era a presença de outra cláusula contratual que os autorizava a bloquear, de forma remota, por meio de aplicativo instalado no momento da concessão do crédito, diversas funcionalidades do aparelho ‘dado’ em garantia. A decisão do TJ/DFT entendeu que esta seria uma prática abusiva que imporia ao consumidor a violação de direito fundamental em razão de excessiva restrição que se aproveitaria da vulnerabilidade do contratante2. Este não é o único caso apreciado pelo Judiciário3, nem reflete uma prática isolada.

Embora o caso tenha sido endereçado – até por conta de seus limites processuais - por meio da legislação de consumo, ele nos convida a questionar a lógica daquela ‘garantia’ de forma mais ampla. Até porque ampla é também a forma como a prática vem se disseminando. É o que convido o leitor a fazer com a seguinte indagação: afinal, o que há de tão fundamentalmente equivocado em se bloquear a utilização do celular em caso de inadimplemento?

A discussão, por certo, extrapola os estritos limites da técnica redacional do contrato para buscar o fundamento na compreensão de responsabilidade e na função social que ela exerce.

Na faculdade de Direito, logo que iniciamos nossos estudos de Direito obrigacional, somos apresentados à noção central da responsabilidade patrimonial do devedor. Embora este seja o fundamento da própria obrigatoriedade, usualmente, não se gastam mais que alguns momentos em sua contextualização4. Assim, apresentado o teor do art. 3915 do CC ou do art. 7896 do CPC, passamos a uma ‘lista’ de exceções a contrapor à interpretação literal dos dispositivos. Não raras vezes, a explicação, por provocação discente, acaba se desdobrando  para o “bem de família” e para a prisão civil do devedor de alimentos.

Esta estratégia de análise da responsabilidade atrai, contudo, um risco estratégico: o exemplo motiva mais que o fundamento. É talvez por isso que vemos algumas discussões sobre se este ou aquele bem é impenhorável7 ou se, para proteção da moradia, o devedor solteiro pode ser considerado família8 chegando às Cortes Superiores.

Para maior didatismo, imagine que as duas provocações dos alunos abordam, na realidade, dois lados da mesma moeda. Comecemos pela face, ou seja, pela identificação de que existem limites patrimoniais à responsabilização. Embora diversos sejam os exemplos legislativos (bem de família, bens impenhoráveis9, o mínimo existencial10, etc.) há – por certo – um fundamento comum que os explica, justifica e amplia. 

Buscar uma exceção prevista em lei é, neste sentido, uma armadilha. Não que elas não sejam úteis, mas o fato é que não há um dispositivo que proíba a tal cláusula de autorização de bloqueio, assim como não há aquele que determine a obrigatoriedade de um contrato11. Ambas as compreensões são extraídas da mesma responsabilização patrimonial: um contrato é obrigatório porque seu descumprimento pode impor responsabilização do devedor recalcitrante (não cogitamos, é claro, a tutela da pretensão como parte desta obrigatoriedade). A responsabilização, por outro lado, pode extrapolar o patrimônio do devedor e tem certo rito para ocorrer. 

Qual patrimônio? Aquele previsto em uma lista? Não, aquele que obedece a um fundamento comum de proteção patrimonial escolhido pelo nosso sistema jurídico. Ele, aliás, já foi identificado como o “patrimônio mínimo”12 necessário ao desenvolvimento dos direitos de personalidade e, é, talvez, para este contexto que acena a mencionada decisão do TJ/DFT: privar o devedor da utilização do celular impede, como sabemos, até mesmo exercício de alguns direitos fundamentais, o que é especialmente verdadeiro quando pensamos na centralidade que as ferramentas digitais (bancárias, previdenciárias, serviços públicos) ganham em nossa vida.

Passando à ‘coroa’ daquela mesma moeda, ou seja, ao limite patrimonial da responsabilização, sabemos que a responsabilidade patrimonial exclui a responsabilidade pessoal, entendida como aquela sofrida na pessoa do devedor. A rigor, contudo, nem mesmo a chamada prisão civil aqui se encaixaria, pois a prisão do devedor não extingue a dívida. Há um segundo sentido também: o crédito não autoriza o credor a se apropriar do patrimônio alheio. Cabe a ele deduzir sua eventual pretensão e buscar a satisfação por meio da expropriação, eis o rito da responsabilização. 

Mas poderíamos cogitar que espaço de liberdade individual também tem um sentido patrimonial? Não para a responsabilização patrimonial, pelo menos. É neste contexto que se tem destacado os convites ao Judiciário para que amplie as hipóteses de incentivo à colaboração do devedor por meio da adoção de medidas executivas atípicas13. Elas assim como a prisão civil em caso de alimentos não são pagamento (nem o substituem), mas valem-se de restrições à liberdade individual como mecanismos de cooperação. Assim, os exemplos da apreensão do passaporte ou da CNH14, a privação da frequência em clubes ou as multas diárias dependerão de uma decisão judicial que pondere a relevância do crédito frente a possibilidade de tal limitação à liberdade.

Eis, então, que uma resposta a nossa indagação pode ser esboçada: as cláusulas que ‘davam’ o celular em garantia ou que autorizavam seu bloqueio são, em resumo, ofensivas à responsabilidade patrimonial do devedor. Não se trata, propriamente, de uma questão de autonomia do contratante ou vulnerabilidade do consumidor, mas, salvo melhor juízo, de acomodação aos contornos colaborativos que devem embasar a relação obrigacional, percebida como um processo15

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1 BOLZANI, Isabela. Financeiras são proibidas pela Justiça de bloquear celular de clientes inadimplentes; entenda. G1. Economia. 10/05/2025. Disponível aqui

2 TJDFT, Apelação Cível n° 0742656-87.2022.8.07.0001, 2ª Turma Cível, Relator Desembargador Renato Rodovalho Scussel, julgado em 05 de maio de 2025. Disponível aqui

3 Vide, por exemplo, em âmbito individual, SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Apelação Cível n° 1033838-05.2022.8.26.0564, 15ª Câmara Cível, Relator Desembargador Achile Alesina, julgado em 11/02/2025.

4 Sobre esta contextualização, recomendo o artigo: NANNI, Giovanni Ettore. Responsabilidade patrimonial do devedor: conceito e evolução histórica. In Revista de Direito Privado, vol. 123/2025, p.149-185, jan/março 2025.

5 Art. 391. Pelo inadimplemento das obrigações respondem todos os bens do devedor.

6 Art. 789. O devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações, salvo as restrições estabelecidas em lei.

7 Recordo-me da Reclamação 4374/MS, apreciada pela Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça, que precisou declarar a impenhorabilidade de televisor e máquina de lavar roupas (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Rcl 4374 / MS, Segunda Seção, Relator Min. Sidnei Beneti, julgado em 23/02/2011).

8 Por exemplo: BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AREsp 301580 / RJ. Terceira Turma, Relator Min. Sidnei Beneti, julgado em 28/05/2013.

9 O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar (art. 1º da Lei n° 8.009/1990).

10 O rol do art. 833 e incisos do CPC, por exemplo.

11 Em nítido contraste com alguns Restatements internacionais. Vide, por exemplo, art. 1.3 dos PRINCÍPIOS UNIDROIT RELATIVOS AOS CONTRATOS COMERCIAIS INTERNACIONAIS 2016, disponível aqui

12 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo, 2. Ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

13 Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: (...) IV - determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária;

14 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 5941, Pleno, Relator Min. Luiz Fux, julgado em 09/02/2023.

15 COUTO E SILVA, Clóvis V. A obrigação como processo. São Paulo: Bushatsky, 1976.

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Colunistas

Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.