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Breves notas acerca da possibilidade de constituição de sociedade simples unipessoal Ltda., em virtude da MP 881/19, convertida na lei 13.874/19

Breves notas acerca da possibilidade de constituição de sociedade simples unipessoal Ltda., em virtude da MP 881/19, convertida na lei 13.874/19

10/2/2021

Com a entrada em vigor da lei 13.874, de 20 de setembro de 2019, por conversão da Medida Provisória 881/2019, que instituiu a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica e estabeleceu garantias de livre mercado, ocorreram importantes modificações em nosso sistema jurídico, em razão da alteração de vários diplomas legais, dentre eles o Código Civil.

Referida Medida Provisória, conhecida como a MP da Liberdade Econômica, teve, dentre os seus objetivos, estimular o empreendedorismo, a regularização de empresas, geração de emprego e renda e o desenvolvimento econômico da nação. Além disso, visou-se diminuir a percepção de que as atividades econômicas, no Brasil, somente devam ser exercidas se presente expressa permissão do Estado, conforme se vê da Exposição de Motivos Interministerial (EMI) nº 00083/2019 ME AGU MJSP:

"Existe a percepção de que no Brasil ainda prevalece o pressuposto de que as atividades econômicas devam ser exercidas somente se presente expressa permissão do Estado, fazendo com que o empresário brasileiro, em contraposição ao resto do mundo desenvolvido e emergente, não se sinta seguro para produzir, gerar emprego e renda".

Desse modo, uma das novidades introduzidas pela citada norma legal foi a inerente à criação da sociedade limitada unipessoal, como forma de aderir a uma "tendência mundial que se consolidou há décadas", seguindo-se países como Estados Unidos da América, Alemanha e a República Popular da China, e com o objetivo de encerrar a prática existente em nosso país de se admitir sócio, na sociedade limitada, apenas para observar a pluralidade até então exigida pela nossa legislação.

Alterou-se, assim, o Código Civil Brasileiro, de forma a ser incluir os §§1º e 2º ao seu artigo 1.052, in verbis:

"Art. 1.052. Na sociedade limitada, a responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas, mas todos respondem solidariamente pela integralização do capital social.

§ 1º  A sociedade limitada pode ser constituída por 1 (uma) ou mais pessoas. 

§ 2º  Se for unipessoal, aplicar-se-ão ao documento de constituição do sócio único, no que couber, as disposições sobre o contrato social."

Passou-se, então, a permitir, em nosso país, a criação de sociedade limitada com apenas um titular, a exemplo do que já ocorria com a EIRELI – Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (CC, art. 980-A), a Subsidiária Integral (Lei das S/A, art. 251) e a Sociedade Unipessoal de Advocacia (lei 8.906/94, art. 15), pessoas jurídicas constituídas por apenas um sócio/titular.

Em razão disso, não se aplicará à sociedade limitada o disposto no artigo 1.033, IV do Código Civil, que impõe a dissolução à sociedade quando ocorrer a falta de pluralidade de sócios, não reconstituída no prazo de cento e oitenta dias, desde que, na própria alteração contratual de saída de sócio, haja a opção pela sociedade limitada unipessoal, promovendo-se a competente consolidação contratual, a fim de adequar o contrato social às disposições pertinentes e à sua nova realidade.

A crítica que fazemos, em que pesem entendimentos em sentido contrário, é a inerente ao consequente desestímulo para a constituição de novas EIRELIS, haja vista o capital social mínimo, devidamente integralizado, exigido pelo artigo 980-A do Código Civil para essa espécie de pessoa jurídica, que não será inferior a 100 (cem) vezes o salário mínimo vigente no País, o que, certamente, será considerado por muitos como um entrave se comparado à sociedade unipessoal limitada, para a qual o legislador não estabeleceu valor mínimo de capital.

Bastava, a nosso ver, alterar citado dispositivo, de forma a não mais se exigir capital mínimo para a constituição das EIRELIS, e, se fosse o caso, não mais limitar a apenas uma a constituição de EIRELI por pessoas naturais.

Como consequência, diminuir-se-á, na prática, consideravelmente, a criação de novas Empresas Individuais de Responsabilidade Limitada, conforme veremos nos anos vindouros, acabando por se desestimular a constituição dessa tão importante e, ainda, recém-nascida, espécie de pessoa jurídica, que foi tão aplaudida e prestigiada quando da edição da lei 12.441/2011.

Corre-se o risco, inclusive, de cair em desuso, a exemplo do que ocorreu com a sociedade em nome coletivo, sociedade em comandita simples e em comandita por ações.

Além disso, mister se faz frisar que, pela boa técnica, a própria expressão "sociedade unipessoal" é contraditória, eis que o termo "sociedade", por si só, designa a existência de pluralidade de sócios.

Nesse sentido, bem asseveram Nelson Rosenvald e Felipe Braga Netto (2020, p. 948), ao comentarem o artigo 980-A do Código Civil, que trata da EIRELI:

"Cabe destacar que, embora criada para estimular a atividade empresária individual, por meio da bifurcação de patrimônios, a EIRELI não se confunde com a figura do empresário individual. Consoante o art. 44, VI, do Código Civil, ela é considerada pessoa jurídica de direito privado, ao passo que o empresário individual permanece como pessoa física. Não obstante alguns autores acreditem que a Lei Civil criou uma modalidade de ‘sociedade limitada unipessoal’ (COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, v. 1. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 132), tal denominação já é, por si só, contraditória, visto que o pressuposto de qualquer sociedade é a reunião de, ao menos, duas pessoas." (Grifo nosso)

Feitas essas considerações, voltemo-nos ao ponto central deste artigo.

A sociedade simples, cujo registro será feito no Serviço de Registro Civil de Pessoas Jurídicas de sua sede (CC, art. 1.150), encontra-se devidamente disciplinada nos artigos 997 e seguintes do Código Civil, podendo constituir-se sob a forma pura (sociedade simples pura) ou de conformidade com um dos tipos regulados em seus artigos 1.039 a 1.092, conforme preceitua o artigo 983 do mesmo diploma legal, in verbis:

"Art. 983. A sociedade empresária deve constituir-se segundo um dos tipos regulados nos arts. 1.039 a 1.092 ; a sociedade simples pode constituir-se de conformidade com um desses tipos, e, não o fazendo, subordina-se às normas que lhe são próprias."

A bem da verdade, não poderá, na prática, ser constituída sob a forma de Sociedade Anônima (arts. 1.088 e 1.089), tampouco sob a forma de Sociedade em Comandita por Ações (arts. 1.090 a 1.092), por serem estas sempre consideradas sociedades empresárias, independentemente de seu objeto, conforme preconiza o artigo 982, parágrafo único do Código Civil.

Poderá, assim, a sociedade simples, constituir-se de conformidade com os seguintes tipos societários: sociedade em nome coletivo, sociedade em comandita simples e sociedade limitada, sendo esta última a sua forma mais usual, haja vista as inúmeras vantagens desse tipo societário.

Na prática, portanto, a constituição de tal sociedade se dá em sua forma pura (Sociedade Simples Pura) ou revestindo-se da forma Limitada (Sociedade Simples Ltda), com a aplicação das regras atinentes à Sociedade Limitada, conforme dispõe o artigo 1.150 do Código Civil, que assim preconiza:

"Art. 1.150. O empresário e a sociedade empresária vinculam-se ao Registro Público de Empresas Mercantis a cargo das Juntas Comerciais, e a sociedade simples ao Registro Civil das Pessoas Jurídicas, o qual deverá obedecer às normas fixadas para aquele registro, se a sociedade simples adotar um dos tipos de sociedade empresária." (grifo nosso)

Desse modo, a pergunta que se faz é a seguinte:

Com o advento da lei 13.874/2019, passou a ser possível a constituição de sociedade simples unipessoal limitada?

A resposta é positiva, haja vista a autorização legal contida no artigo 983 c/c o disposto no artigo 1.150, ambos do Código Civil.

Tanto é que o IRTDPJBrasil baixou, no final de 2019, a Orientação Técnica nº 2/2019, por entender ser plenamente viável o registro das sociedades simples unipessoais Ltda nos Serviços de Registros Civis de Pessoas Jurídicas de todo o país. Teve assim, a referida orientação, o objetivo de "esclarecer aos cartórios de Registro Civil de Pessoas Jurídicas como deve ser feito o registro desse tipo de sociedade simples" e "unificar os procedimentos de registro inicial e por transformação".

A observação que fazemos é, inicialmente, no tocante ao nome empresarial desse tipo societário que, como bem sabemos, poderá ser formado por razão ou denominação social.

A nosso ver, a denominação ou razão social deverá ser sempre seguida das expressões "Sociedade Simples Unipessoal Ltda', e não apenas da expressão "Ltda.", em razão do Princípio da Veracidade, tão importante para o Direito Societário, e a fim de distingui-la das demais espécies societárias, bem como para se garantir segurança jurídica e clareza a todos quantos venham a com ela manter algum tipo de relação jurídica, tal como ocorre com a EIRELI, com a Sociedade Anônima, com as Cooperativas e outros tipos de pessoas jurídicas existentes em nosso ordenamento jurídico.

Além disso, vale ressaltar que, na formação da razão social, não poderá ser utilizada a expressão "& Cia", por ser designadora da presença de outros sócios.

Outra questão importante é a inerente à necessária consolidação contratual todas as vezes em que houver alteração contratual com saída de sócio e a opção, exercida pelo titular remanescente, pela adoção da sociedade simples unipessoal Ltda, a fim de se adequar o ato constitutivo às disposições pertinentes e à sua nova realidade.

Registre-se, também, que no tocante à designação do integrante da sociedade simples unipessoal Ltda, mostra-se mais adequada a expressão "titular", no lugar de "sócio", na medida em que esta última designa relação societária mantida entre duas ou mais pessoas, físicas ou jurídicas.

Por fim, resta dizer que a sociedade simples pura, por sua vez, não poderá ser constituída sob a forma unipessoal, por falta de autorização legal.

*Anderson Nogueira Guedes é advogado e consultor jurídico. Especialista em Direito Notarial e Registral, Direito de Família e Sucessões e em Direito Tributário. Foi Tabelião Substituto do 2º Serviço Notarial e Registral da comarca de Campo Novo do Parecis/MT, por mais de 15 anos. Palestrante. Membro Efetivo da Comissão de Direito das Famílias e Sucessões e da Comissão de Estudos das Questões Jurídicas do Agronegócio, da OAB/MT. Autor de diversos artigos jurídicos publicados em sites especializados em Direito Notarial e Registral do país. Coautor das obras: Tabelionato de Notas – Temas Aprofundados e O Novo Protesto de Títulos e Documentos de Dívida – Os Cartórios de Protesto na Era dos Serviços Digitais, publicados pela Editora Juspodivm, e da obra O Direito Notarial e Registral em Artigos Vol IV, publicado pela YK Editora. Aprovado em vários concursos públicos para ingresso na Atividade Notarial e Registral.

Referências

BRASIL. Código Civil Brasileiro, Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível aqui. Acesso em: 05 fev. 2021.

BRASIL. Lei de Liberdade Econômica, Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019. Disponível aqui. Acesso em: 03 fev. 2021.

BRASIL. Exposição de Motivos Interministerial (EMI) nº 00083/2019 ME AGU MJSP. Disponível aqui. Acesso em: 03 fev. 2021

IRTDPJBRASIL. Orientação Técnica nº 2/2019. Disponível aqui. Acesso em: 05 fev. 2021

ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe. Código Civil Comentado – Artigo por Artigo. Salvador: Editora Juspodivm, 2020.

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Coordenação

Carlos E. Elias de Oliveira é Membro da Comissão de Reforma do Código Civil (Senado Federal, 2023/2024). Pós-Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). 1º lugar em Direito no vestibular 1º/2002 da UnB. Advogado, parecerista e árbitro. Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e Registral. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012). Ex-assessor de ministro STJ. Membro do Conselho Editorial da Revista de Direito Civil Contemporâneo (RDCC). Fundador do IBDCont (Instituto Brasileiro de Direito Contratual). Membro da ABDC (Academia Brasileira de Direito Civil), IBDfam (Instituto Brasileiro de Direito de Família),do IBRADIM (Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário) e do IBERC.

Flauzilino Araújo dos Santos, 1º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de SP e presidente do Operador do Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico (ONR). Diretor de Tecnologia do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil - IRIB. Licenciado em Estudos Sociais, bacharelado em Direito e em Teologia e mestrado em Direito Civil. Autor de livros e de artigos de Direito publicados em revistas especializadas. Integra, atualmente, a Comissão de Concurso Público para outorga de Delegações de Notas e de Registro do Estado de Alagoas, realizado pelo CNJ.

Hercules Alexandre da Costa Benício, doutor e mestre em Direito pela Universidade de Brasília. É tabelião titular do Cartório do 1º Ofício do Núcleo Bandeirante/DF; presidente do Colégio Notarial do Brasil - Seção do Distrito Federal e acadêmico ocupante da Cadeira nº 12 da Academia Notarial Brasileira. Foi Procurador da Fazenda Nacional com atuação no Distrito Federal.

Ivan Jacopetti do Lago, diretor de Relações Internacionais e Coordenador Editorial do IRIB. Bacharel, mestre e doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduado pelo CeNOR - Centro de Estudos Notariais e Registrais da Universidade de Coimbra e pela Universidade Autónoma de Madri (Cadri 2015). 4º Oficial de Registro de Imóveis de SP.

Izaías G. Ferro Júnior é oficial de Registro de Imóveis, Civil das Pessoas Naturais e Jurídicas e de Títulos e Documentos da Comarca de Pirapozinho/SP. Mestre em Direito pela EPD - Escola Paulista de Direito. Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo - FADISP. Professor de graduação e pós-graduação em Direito Civil e Registral em diversas universidades e cursos preparatórios.

Sérgio Jacomino é presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) nos anos 2002/2004, 2005/2006, 2017/2018 e 2019/2020. Doutor em Direito Civil pela UNESP (2005) e especialista em Direito Registral Imobiliário pela Universidade de Córdoba, Espanha. Membro honorário do CeNoR - Centro de Estudos Notariais e Registais da Universidade de Coimbra e Quinto Oficial de Registro de Imóveis da cidade de SP.