Migalhas Notariais e Registrais

Litigando contra si mesmo – Seção "Tudo é verdade e dou fé"

Um relato sobre acontecimentos envolvendo um juiz, advogados e escreventes em uma comarca brasileira durante os anos 60 e 80.

28/2/2024

Nos idos da década de 60, passou pela comarca um juiz muito rigoroso que, tempos depois, viria a ocupar o cargo de presidente do antigo e honorável 2º Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo, chegando à desembargadoria no início da década de 80.

Naquele tempo, os escreventes dos Cartórios de Registro de Imóveis, assim como seus oficiais, eram dublês de escrivães e escreventes do judicial e do extrajudicial. Assim previam as Ordenações do Reino e foi assim até bem pouco tempo em São Paulo.

Valtinho Leite, escrevente de sala, funcionário do Registro de Imóveis, era um bom datilógrafo, muito atento a todos os detalhes da audiência, qualificava as partes e as testemunhas, colhia suas assinaturas, sempre sob o olhar vigilante do magistrado.

Um certo dia, viu que o juiz enrubescia à medida que folheava um processo posto sobre a mesa. O escrevente conhecia-o muito bem e sabia quando se apoquentava: suas bochechas se tornavam róseas, ofegava, os dedos tamborilavam nervosamente sobre o vidro posto sobre a bandeira do Estado de São Paulo e a imagem de São Judas Tadeu. Depois de folhear os autos, disse, pigarreando e apagando o cigarro no cinzeiro de cristal:

– Como pode, senhor Valtinho, como pode o advogado do autor distribuir a ação e ao mesmo tempo contestá-la em nome do réu?

Era uma ação de despejo por falta de pagamento. Valtinho conhecia o advogado, um homem de boa índole, pai de família, advogado conhecido e respeitado na comarca. Terá se equivocado? Decidiu interceder. Saiu da sala de audiências e foi ao encontro do advogado. Disse-lhe que deveria apresentar-se perante o juiz para se desculpar. Alegaria acúmulo de serviço, equívoco no peticionamento e coisa e tal. "O homem é brabo", advertiu.

Assim combinaram e no dia seguinte foram ter à presença do magistrado. Valtinho pediu licença e introduziu o advogado, que logo tomou a palavra:

– Excelência, foi culpa do excesso de trabalho. O locador é amigo pessoal de longa data. Somos confrades no Círculo do Pensamento Esotérico. Já o inquilino é meu contraparente e, sabe como é, Doutor, não se pode negar um pedido da minha mulher... Tossiu, coçou a ponta do nariz.

O juiz observava os dois atentamente. Valtinho sentou-se num canto da sala e fingia mexer na caixa de papel-carbono, o causídico suava, parecia sufocar com a gravata que ajeitava nervosamente.

– Pois bem, disse o magistrado depois de meditar e ponderar. Façamos o seguinte: vamos marcar uma audiência de conciliação e conhecer as razões das contrapartes, inquiri-las acerca dessa original pretensão deduzida em juízo. Dito isso, o juiz encerrou o colóquio.

O advogado percebeu que se metia numa bela enrascada e logo tratou de desistir da ação, subscrevendo uma petição datilografada às pressas na sala dos advogados. No dia seguinte, compôs-se com o autor e saldou a dívida do réu, diligenciando para que desocupasse o imóvel o mais rapidamente possível.

O magistrado promoveu-se para a comarca da capital. Valtinho Leite recebeu o novo juiz e inaugurou nova fase no cargo de escrevente responsável pelo anexo do Júri, Menores e Corregedoria Permanente. Na corregedoria, conheceria ainda histórias dramáticas, mas algumas hilárias – como as artes de Pedro Faceto, o escrevente que virou desembargador. Um dia, manuseando a arma do crime – uma Beretta automática –, Faceto disparou no teto do cartório, fazendo desabar a estrutura de gesso e causando um início de pânico no fórum.

Deixemos este caso para a próxima certidão. Nada mais. Todo o referido é verdade e dou fé. 

Veja a versão completa

Coordenação

Carlos E. Elias de Oliveira é Membro da Comissão de Reforma do Código Civil (Senado Federal, 2023/2024). Pós-Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). 1º lugar em Direito no vestibular 1º/2002 da UnB. Advogado, parecerista e árbitro. Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e Registral. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012). Ex-assessor de ministro STJ. Membro do Conselho Editorial da Revista de Direito Civil Contemporâneo (RDCC). Fundador do IBDCont (Instituto Brasileiro de Direito Contratual). Membro da ABDC (Academia Brasileira de Direito Civil), IBDfam (Instituto Brasileiro de Direito de Família),do IBRADIM (Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário) e do IBERC.

Flauzilino Araújo dos Santos, 1º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de SP e presidente do Operador do Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico (ONR). Diretor de Tecnologia do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil - IRIB. Licenciado em Estudos Sociais, bacharelado em Direito e em Teologia e mestrado em Direito Civil. Autor de livros e de artigos de Direito publicados em revistas especializadas. Integra, atualmente, a Comissão de Concurso Público para outorga de Delegações de Notas e de Registro do Estado de Alagoas, realizado pelo CNJ.

Hercules Alexandre da Costa Benício, doutor e mestre em Direito pela Universidade de Brasília. É tabelião titular do Cartório do 1º Ofício do Núcleo Bandeirante/DF; presidente do Colégio Notarial do Brasil - Seção do Distrito Federal e acadêmico ocupante da Cadeira nº 12 da Academia Notarial Brasileira. Foi Procurador da Fazenda Nacional com atuação no Distrito Federal.

Ivan Jacopetti do Lago, diretor de Relações Internacionais e Coordenador Editorial do IRIB. Bacharel, mestre e doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduado pelo CeNOR - Centro de Estudos Notariais e Registrais da Universidade de Coimbra e pela Universidade Autónoma de Madri (Cadri 2015). 4º Oficial de Registro de Imóveis de SP.

Izaías G. Ferro Júnior é oficial de Registro de Imóveis, Civil das Pessoas Naturais e Jurídicas e de Títulos e Documentos da Comarca de Pirapozinho/SP. Mestre em Direito pela EPD - Escola Paulista de Direito. Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo - FADISP. Professor de graduação e pós-graduação em Direito Civil e Registral em diversas universidades e cursos preparatórios.

Sérgio Jacomino é presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) nos anos 2002/2004, 2005/2006, 2017/2018 e 2019/2020. Doutor em Direito Civil pela UNESP (2005) e especialista em Direito Registral Imobiliário pela Universidade de Córdoba, Espanha. Membro honorário do CeNoR - Centro de Estudos Notariais e Registais da Universidade de Coimbra e Quinto Oficial de Registro de Imóveis da cidade de SP.