Migalhas Notariais e Registrais

A desjudicialização no Brasil: Origem, evolução e aspectos constitucionais

O registrador Emílio Guerra trata de desjudicialização e a atuação dos Cartórios.

7/4/2025

Resumo

Este trabalho analisa o fenômeno da desjudicialização no ordenamento jurídico brasileiro, desde suas origens até os desenvolvimentos contemporâneos. Examina-se a base constitucional e legal que fundamenta este movimento, destacando as diferenças cruciais entre a desjudicialização para agentes dotados de fé pública (notários e registradores) e para entidades privadas desprovidas desta prerrogativa. O estudo aborda as implicações jurídicas desta distinção, principalmente quanto aos aspectos probatórios e à segurança jurídica, alertando para os riscos de procedimentos conduzidos por agentes sem fé pública e seus impactos no sistema judicial brasileiro. Conclui-se que a desjudicialização constitucionalmente adequada é aquela realizada dentro dos estritos parâmetros do art. 236 da CF/88, mantendo o controle efetivo do Poder Judiciário sobre os procedimentos desjudicializados.

Sumário

  1. Introdução.
  2. Origens e evolução histórica da desjudicialização no Brasil.
  3. Base constitucional e legal 3.1. art. 236 da CF/88. 3.2. EC 45/04 e seu impacto. 3.3. Legislação infraconstitucional relevante.
  4. Categorias de desjudicialização no ordenamento jurídico brasileiro 4.1. Desjudicialização para notários e registradores. 4.2. Desjudicialização para pessoas jurídicas sem fé pública: uma inconstitucionalidade manifesta.
  5. Análise jurídica comparativa: questões probatórias e segurança jurídica 5.1. O regime jurídico dos atos dotados de fé pública. 5.2. Atos praticados por entidades sem fé pública: vulnerabilidades. 5.3. Impactos processuais e ônus da prova.
  6. Riscos e consequências da desjudicialização inconstitucional 6.1. Insegurança jurídica e vulnerabilidade intrínseca dos procedimentos. 6.2. Efeito paradoxal: aumento da judicialização a posteriori. 6.3. Impactos econômicos e sociais.
  7. Experiências concretas e casos paradigmáticos 7.1. Casos bem-sucedidos: desjudicialização para notários e registradores. 7.2. Casos problemáticos: desjudicialização para entidades sem legitimação constitucional. 7.3. O caso da lei 14.711/23: um potencial agravamento do problema.
  8. Conclusão.
  9. Referências.

1. Introdução

A desjudicialização representa um fenômeno jurídico contemporâneo caracterizado pela transferência de determinados procedimentos, anteriormente de competência exclusiva do Poder Judiciário, para outras instâncias e agentes. Este movimento surge como resposta à crescente demanda por celeridade e eficiência na resolução de conflitos e na efetivação de direitos, em um contexto de sobrecarga do aparato jurisdicional brasileiro (RIBEIRO, 2013, p. 43).

Conforme observa Pedroso (2002, p. 17), a desjudicialização constitui "um movimento de transferência de competências processuais e procedimentais dos tribunais para outras instâncias de natureza pública ou privada". Este fenômeno se insere em um contexto mais amplo de transformações do sistema de justiça, visando superar entraves estruturais que comprometem a efetividade da prestação jurisdicional.

O presente trabalho visa analisar criticamente este movimento no ordenamento jurídico brasileiro, com especial atenção às suas bases normativas, evolução histórica e implicações jurídicas. Busca-se, particularmente, estabelecer uma distinção fundamental entre a desjudicialização realizada para agentes dotados de fé pública, notadamente notários e registradores, e aquela direcionada a entidades privadas desprovidas desta prerrogativa, examinando as consequências jurídicas desta diferenciação.

A hipótese central que orienta esta investigação é a de que a desjudicialização constitucionalmente adequada é aquela que transfere procedimentos para agentes dotados de fé pública e submetidos ao controle do Poder Judiciário, em conformidade com o modelo estabelecido pelo art. 236 da CF/88. Em contrapartida, a delegação de funções judiciais a entidades privadas sem estas características representaria uma violação ao sistema constitucional de segurança jurídica, com potenciais efeitos deletérios para a administração da justiça e para a garantia dos direitos dos cidadãos.

2. Origens e evolução histórica da desjudicialização no Brasil

A desjudicialização no Brasil começou a ser implementada de forma mais estruturada a partir da década de 1990, intensificando-se nos anos 2000, como resposta a múltiplos fatores convergentes que evidenciavam a necessidade de reformulação do sistema de administração da justiça.

Segundo Mancuso (2015, p. 27), este movimento teve como impulsionadores principais:

"A crise de efetividade do sistema judicial brasileiro, marcada pela morosidade processual, alto custo operacional, formalismo excessivo e distanciamento da realidade social, criou o ambiente propício para a busca de alternativas à jurisdição estatal tradicional."

Watanabe (2011, p. 5) complementa que a "cultura da sentença" predominante no Brasil, caracterizada pela excessiva judicialização de conflitos, contribuiu significativamente para a sobrecarga do aparato jurisdicional, tornando imperativa a adoção de mecanismos alternativos para a composição de litígios e para a realização de atos jurídicos.

Cronologicamente, podem-se identificar marcos significativos deste processo, conforme detalhado por Rodrigues e Ferreira (2013, p. 112-134):

Esse movimento progressivo de transferência de competências foi impulsionado por estudos e diagnósticos que apontavam para a insustentabilidade do modelo exclusivamente judicializado. Como observa Cappelletti (1988, p. 71), "o movimento de desjudicialização se insere no contexto da terceira onda de acesso à justiça, caracterizada pela busca de procedimentos mais acessíveis, simples e racionais".

É importante notar, entretanto, que esta evolução histórica não ocorreu de maneira uniforme ou sistemática. Ao contrário, como ressalta Brandelli (2016, p. 45), "a desjudicialização no Brasil caracteriza-se por um desenvolvimento fragmentado e nem sempre coerente, reflexo da ausência de uma política judiciária articulada e de uma compreensão clara dos limites constitucionais deste movimento".

Esta observação é particularmente relevante quando se considera que, especialmente nas iniciativas mais recentes, tem-se verificado uma tendência de desjudicialização para além dos parâmetros constitucionais do art. 236, com a delegação de funções a entidades desprovidas de fé pública e não submetidas ao controle do Poder Judiciário, tendência essa que suscita os questionamentos críticos que este trabalho pretende aprofundar.

Veja a versão completa

Coordenação

Carlos E. Elias de Oliveira é membro da Comissão de Reforma do Código Civil (Senado Federal, 2023/2024). Pós-Doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). 1º lugar em Direito no vestibular 1º/2002 da UnB. Ex-advogado da AGU. Ex-assessor de ministro STJ. Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e Registral. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012). Advogado, parecerista e árbitro. Instagram: @profcarloselias e @direitoprivadoestrangeiro.

Flauzilino Araújo dos Santos, 1º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de SP e presidente do Operador do Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico (ONR). Diretor de Tecnologia do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil - IRIB. Licenciado em Estudos Sociais, bacharelado em Direito e em Teologia e mestrado em Direito Civil. Autor de livros e de artigos de Direito publicados em revistas especializadas. Integra, atualmente, a Comissão de Concurso Público para outorga de Delegações de Notas e de Registro do Estado de Alagoas, realizado pelo CNJ.

Hercules Alexandre da Costa Benício, doutor e mestre em Direito pela Universidade de Brasília. É tabelião titular do Cartório do 1º Ofício do Núcleo Bandeirante/DF; presidente do Colégio Notarial do Brasil - Seção do Distrito Federal e acadêmico ocupante da Cadeira nº 12 da Academia Notarial Brasileira. Foi Procurador da Fazenda Nacional com atuação no Distrito Federal.

Ivan Jacopetti do Lago, diretor de Relações Internacionais e Coordenador Editorial do IRIB. Bacharel, mestre e doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduado pelo CeNOR - Centro de Estudos Notariais e Registrais da Universidade de Coimbra e pela Universidade Autónoma de Madri (Cadri 2015). 4º Oficial de Registro de Imóveis de SP.

Izaías G. Ferro Júnior é oficial de Registro de Imóveis, Civil das Pessoas Naturais e Jurídicas e de Títulos e Documentos da Comarca de Pirapozinho/SP. Mestre em Direito pela EPD - Escola Paulista de Direito. Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo - FADISP. Professor de graduação e pós-graduação em Direito Civil e Registral em diversas universidades e cursos preparatórios.

Sérgio Jacomino é presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) nos anos 2002/2004, 2005/2006, 2017/2018 e 2019/2020. Doutor em Direito Civil pela UNESP (2005) e especialista em Direito Registral Imobiliário pela Universidade de Córdoba, Espanha. Membro honorário do CeNoR - Centro de Estudos Notariais e Registais da Universidade de Coimbra e Quinto Oficial de Registro de Imóveis da cidade de SP.