Migalhas Notariais e Registrais

Chat GPT e os cartórios: A função notarial diante da revolução da inteligência artificial

IA generativa nos atos jurídicos: risco de obsolescência ou chance de reinvenção com fé pública digital?

9/7/2025

Introdução – O notariado à beira da revolução digital

Vivemos um ponto de inflexão histórico. Pela primeira vez, uma tecnologia não apenas sugere modelos genéricos ou responde comandos simples, mas simula com coerência e profundidade a linguagem jurídica. Ferramentas baseadas em inteligência artificial generativa - como Chat GPT, Gemini e Claude - já redigem testamentos, contratos com cláusulas complexas, aditamentos e justificações com fluência e rapidez.

Nesse novo cenário, em que o algoritmo escreve, a pergunta central é inevitável: quem assegura a validade jurídica do ato?

O crescimento vertiginoso da IA reacende um debate sensível ao Direito: qual o verdadeiro valor da função notarial e registral em uma era em que qualquer cidadão pode gerar um documento digital com aparência jurídica sofisticada?

A resposta repousa em fundamentos inegociáveis: a responsabilidade civil, a fé pública e o dever de controle de legalidade exercido pelos delegatários do serviço extrajudicial. Em tempos de automatização sedutora, é preciso reafirmar - com rigor técnico e visão estratégica - o que pode ser delegado à máquina e o que permanece como atribuição indelegável da autoridade humana.

Mais do que uma questão tecnológica, trata-se de um reposicionamento institucional. A IA não é inimiga do notariado, mas sua presença expõe uma urgência: modernizar sem diluir competências essenciais. O tabelião não é um mero redator de modelos - é operador jurídico com fé pública e poder estatal para conferir validade, eficácia e segurança jurídica a atos privados e públicos.

Este artigo parte dessa premissa: a IA veio para ficar. Cabe ao notariado não resistir à inovação, mas preservar sua essência enquanto assume o protagonismo técnico na era digital. O futuro da atividade será definido no ponto de encontro entre inteligência artificial e responsabilidade jurídica - ou será apenas uma sombra de sua função original.

O poder da IA: Minutas em segundos, contratos sob medida

A inteligência artificial generativa já consegue produzir, com rapidez e impressionante coesão textual, documentos que antes exigiam conhecimento jurídico estruturado: testamentos, escrituras de doação com cláusulas restritivas, contratos de compra e venda complexos, pareceres técnicos e até textos fundamentados com remissões legais e jurisprudenciais.

Esse salto tecnológico representa um divisor de águas para a atividade notarial. A elaboração de atos jurídicos, que pressupunha análise minuciosa, diálogo com as partes e aplicação do direito ao caso concreto, passou a ser aparentemente “resolvida” por linhas de código.

No entanto, o que a IA entrega em agilidade, não entrega em responsabilidade. A confiança social no notário não decorre da estética textual de um documento, mas da garantia de legalidade, validade e segurança jurídica que ele confere ao ato.

A crescente adoção de minutas geradas por IA escancara um paradoxo jurídico: quem responde por eventuais nulidades, omissões ou cláusulas inválidas inseridas por um sistema automatizado? Se o tabelião se limita a formalizar o instrumento sem a devida intervenção crítica, há omissão funcional? Há responsabilidade civil?

A resposta é clara: sim. O delegatário permanece vinculado ao princípio do controle de legalidade (art. 4º do provimento CNJ 100/20), à responsabilidade objetiva decorrente da delegação estatal e à função de orientação jurídica prevista nos Códigos de Normas estaduais.

Ainda que o conteúdo venha “pronto”, o dever jurídico permanece: examinar o ato, verificar a capacidade das partes, a licitude do objeto, a clareza das cláusulas e os efeitos pretendidos. A fé pública não é um carimbo protocolar - é um instituto de garantia que impõe vigilância ativa e responsabilidade jurídica indelegável.

Nesse cenário, o notário não pode assumir papel passivo diante da automatização. Pelo contrário: é justamente agora que sua atuação técnica se torna ainda mais relevante. O futuro da função não está em resistir à tecnologia, mas em reafirmar sua autoridade jurídica sobre os atos - inclusive os redigidos por máquinas.

O limite do algoritmo: O que a IA não entrega (e talvez nunca entregue)

Por mais avançada que seja, nenhuma IA detém fé pública, responsabilidade civil ou discernimento jurídico humano. E é justamente aí que mora o ponto de ruptura: a IA pode gerar texto, mas não assume dever jurídico nem responde por consequências.

O notário, ao contrário, é um agente investido de autoridade pública. Seu papel não se limita à produção documental, mas envolve garantir a higidez do ato jurídico, preservar a autonomia da vontade das partes e assegurar que o instrumento lavrado esteja em conformidade com o ordenamento. Isso exige mais que técnica: exige inteligência jurídica, responsabilidade institucional e sensibilidade humana.

A tecnologia não é treinada para ouvir o silêncio da parte mais frágil nem para detectar o desconforto de quem assina pressionado - e isso, nas serventias extrajudiciais, faz toda a diferença entre um ato nulo e um ato válido.

Além disso, a inteligência artificial não possui responsabilidade patrimonial. Quando um erro ocorre em um contrato redigido por IA, quem arca com os prejuízos? Certamente não o sistema. Já o tabelião responde objetiva e pessoalmente pelos danos decorrentes de sua atuação - conforme reiterada jurisprudência e previsão normativa nas leis de regência da atividade notarial.

Outro ponto: a IA não possui capacidade decisória no plano jurídico. Ela simula argumentação, mas não interpreta conforme os princípios constitucionais, nem pondera valores conflitantes. Isso a torna, no máximo, uma ferramenta auxiliar - nunca um substituto do profissional responsável.

O notariado é, por essência, uma função de filtro jurídico. Ele está na trincheira da desjudicialização justamente porque oferece um equilíbrio entre celeridade, tecnicidade e responsabilidade. A fé pública não é uma tecnologia: é uma garantia estatal lastreada na atuação humana qualificada.

Portanto, a ideia de que a IA poderia “assumir” funções notariais ignora esses limites estruturais. Pode-se automatizar o texto, o formulário, a estética do documento. Mas não se automatiza o juízo de legalidade, a prudência jurídica nem o compromisso institucional com a segurança jurídica.

Integração inteligente: IA como aliada da função notarial

Se a inteligência artificial não substitui a função notarial, a pergunta inevitável passa a ser outra: como incorporá-la de forma estratégica, sem comprometer os pilares da segurança jurídica e da fé pública?

A resposta está na integração inteligente - um modelo em que a IA atua como ferramenta de apoio à atividade do delegatário, jamais como protagonista do ato jurídico. Nesse arranjo, o notário permanece como agente central de legalidade e responsabilidade, mas utiliza a tecnologia para potencializar sua atuação técnica, aumentar a eficiência e aprimorar a experiência do usuário.

Exemplos já são visíveis em algumas serventias mais tecnicamente estruturadas. A IA pode ser utilizada, por exemplo:

Esses mecanismos, contudo, não substituem o juízo técnico do tabelião, nem a sua atuação como garantidor da legalidade e da autonomia das partes. A curadoria jurídica permanece intransferível.

Mais do que automatizar, a proposta é usar a IA como um braço auxiliar para qualificar a entrega final ao usuário. Um cartório que se vale da IA para agilizar etapas burocráticas, liberar tempo do corpo técnico e investir mais na escuta ativa, no aconselhamento jurídico e na personalização dos atos, estará ampliando - e não reduzindo - o valor da sua função institucional.

Esse modelo de convivência exige cautela, mas também visão estratégica. É hora de debater protocolos éticos, padrões de confiabilidade, filtros de segurança jurídica e limites para o uso de sistemas automatizados no âmbito notarial. A regulamentação desse processo não pode ser empurrada apenas para o futuro: deve ser construída desde já, com a participação ativa dos notários e registradores, sob pena de o setor perder o protagonismo sobre seu próprio destino.

A fé pública digital - se é que podemos chamá-la assim - não será uma extensão da IA, mas da inteligência jurídica que conduz sua aplicação. A tecnologia pode ser treinada para escrever. Mas ainda depende do humano para compreender, ponderar, validar e garantir.

Fé pública, controle de legalidade e a estrutura jurídica da função notarial

A função notarial não é uma prática de conveniência, tampouco uma formalidade protocolar. Ela é expressão de um modelo jurídico de segurança negocial preventiva, consagrado no ordenamento brasileiro como atividade delegada do poder público (art. 236 da Constituição Federal), regida por legislação específica e dotada de fé pública como instrumento de eficácia jurídica e proteção da confiança legítima.

O notariado de tipo latino, adotado no Brasil, funda-se na ideia de que os negócios jurídicos, especialmente os atos translativos ou constitutivos de direitos reais, exigem um controle jurídico prévio e técnico - exercido por um agente imparcial, com responsabilidade civil objetiva e fé pública atribuída pelo Estado.

Essa concepção vai muito além da produção documental: trata-se da tutela do negócio jurídico em si, conforme já reconheceu o STF ao afirmar que a função notarial atua como filtro de legalidade e de prevenção de litígios, fortalecendo a desjudicialização responsável e protegendo o jurisdicionado da insegurança contratual.

A fé pública, nesse contexto, não é uma qualidade pessoal do tabelião, mas um instituto jurídico que confere presunção relativa de veracidade e autenticidade aos atos por ele praticados. A lavratura de um instrumento público implica que houve intervenção estatal qualificada, juízo de legalidade, identificação plena das partes, verificação da vontade, do objeto, da forma e da finalidade lícita do ato.

É por isso que a responsabilidade do tabelião é elevada: responde civilmente pelos prejuízos causados por erro, omissão ou negligência, independentemente de dolo, e pode ter a delegação cassada em caso de infrações graves. Não há ferramenta tecnológica que suporte esse grau de responsabilização.

Sob a ótica dos princípios gerais do Direito, a atuação notarial está intrinsecamente ligada à segurança jurídica, à confiança legítima, à boa-fé objetiva e à função social dos contratos. E, portanto, não pode ser confundida com serviços automatizados, mesmo que eficientes.

A IA, ainda que sofisticada, não é capaz de assumir essa posição jurídica, nem de substituir o papel institucional do notariado.

Neste sentido, a integração tecnológica só é válida se vier subordinada à preservação da função jurídica essencial do notário, com respeito aos princípios que estruturam o sistema. Sem isso, corre-se o risco de substituir segurança jurídica por risco automatizado - e isso o Direito não tolera.

Conclusão - modernizar sem diluir: A resposta do notariado é estratégica

A IA generativa chegou - e não há retorno. Ignorar sua presença seria ingenuidade. Mas admitir que ela possa substituir a função notarial seria um erro conceitual, jurídico e institucional de proporções graves.

A função notarial não é uma ferramenta de redação de documentos, mas uma instituição jurídica estruturante da segurança privada no Estado de Direito. É sustentada por princípios, normas constitucionais, responsabilidade civil objetiva, controle de legalidade e pela confiança pública delegada pelo Estado. Nenhum algoritmo, por mais treinado que seja, possui essas credenciais.

Isso não significa resistir à inovação. Pelo contrário: significa liderá-la com consciência jurídica. O notariado deve assumir seu papel no processo de transformação digital, utilizando a tecnologia como instrumento de qualificação da atividade - e não como atalho para a precarização da fé pública.

A IA pode ser uma aliada valiosa na racionalização de rotinas, na padronização de cláusulas, na filtragem inicial de demandas. Mas o que permanece insubstituível - e deve ser preservado com zelo - é a presença do tabelião como agente de legalidade, filtro jurídico e garantidor da segurança negocial.

Neste novo cenário, o verdadeiro desafio não está na técnica, mas na identidade: como modernizar sem diluir? Como inovar sem abdicar da essência? A resposta exige protagonismo institucional, clareza conceitual e compromisso com a função pública delegada.

A IA escreve com precisão. Mas não assume responsabilidade. Não responde por vícios. Não garante o Direito.

O notariado, sim.

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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

BRASIL. Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994. Dispõe sobre serviços notariais e de registro.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Provimento nº 100, de 26 de maio de 2020. Dispõe sobre a prática de atos notariais eletrônicos.

WORLD ECONOMIC FORUM. AI Governance: A Holistic Approach to Implement Responsible Artificial Intelligence. Geneva: WEF, 2023.

EUROPEAN NOTARIAL NETWORK (ENN). Artificial Intelligence and the Notarial Function. Brussels, 2022.

ZANETI JÚNIOR, Hermes. Obras e artigos sobre responsabilidade dos delegatários extrajudiciais.

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Coordenação

Carlos E. Elias de Oliveira é Membro da Comissão de Reforma do Código Civil (Senado Federal, 2023/2024). Pós-Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). 1º lugar em Direito no vestibular 1º/2002 da UnB. Advogado, parecerista e árbitro. Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e Registral. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012). Ex-assessor de ministro STJ. Membro do Conselho Editorial da Revista de Direito Civil Contemporâneo (RDCC). Fundador do IBDCont (Instituto Brasileiro de Direito Contratual). Membro da ABDC (Academia Brasileira de Direito Civil), IBDfam (Instituto Brasileiro de Direito de Família),do IBRADIM (Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário) e do IBERC.

Flauzilino Araújo dos Santos, 1º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de SP e presidente do Operador do Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico (ONR). Diretor de Tecnologia do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil - IRIB. Licenciado em Estudos Sociais, bacharelado em Direito e em Teologia e mestrado em Direito Civil. Autor de livros e de artigos de Direito publicados em revistas especializadas. Integra, atualmente, a Comissão de Concurso Público para outorga de Delegações de Notas e de Registro do Estado de Alagoas, realizado pelo CNJ.

Hercules Alexandre da Costa Benício, doutor e mestre em Direito pela Universidade de Brasília. É tabelião titular do Cartório do 1º Ofício do Núcleo Bandeirante/DF; presidente do Colégio Notarial do Brasil - Seção do Distrito Federal e acadêmico ocupante da Cadeira nº 12 da Academia Notarial Brasileira. Foi Procurador da Fazenda Nacional com atuação no Distrito Federal.

Ivan Jacopetti do Lago, diretor de Relações Internacionais e Coordenador Editorial do IRIB. Bacharel, mestre e doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduado pelo CeNOR - Centro de Estudos Notariais e Registrais da Universidade de Coimbra e pela Universidade Autónoma de Madri (Cadri 2015). 4º Oficial de Registro de Imóveis de SP.

Izaías G. Ferro Júnior é oficial de Registro de Imóveis, Civil das Pessoas Naturais e Jurídicas e de Títulos e Documentos da Comarca de Pirapozinho/SP. Mestre em Direito pela EPD - Escola Paulista de Direito. Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo - FADISP. Professor de graduação e pós-graduação em Direito Civil e Registral em diversas universidades e cursos preparatórios.

Sérgio Jacomino é presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) nos anos 2002/2004, 2005/2006, 2017/2018 e 2019/2020. Doutor em Direito Civil pela UNESP (2005) e especialista em Direito Registral Imobiliário pela Universidade de Córdoba, Espanha. Membro honorário do CeNoR - Centro de Estudos Notariais e Registais da Universidade de Coimbra e Quinto Oficial de Registro de Imóveis da cidade de SP.