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Despejo sem juízo: Uma análise crítica da proposta legislativa

A coluna aborda o movimento de desjudicialização no Brasil, destacando o PL 3999/20, que propõe despejos extrajudiciais por falta de pagamento, visando celeridade e eficiência.

11/8/2025

O movimento de desjudicialização

Há uma crescente tendência, no país, de retirar demandas do poder judiciário para a esfera extrajudicial. Trata-se do fenômeno da desjudicialização ou extrajudicialização1, como preferem alguns.

De acordo com o CNJ, no ano de 2019 a duração média de processos pendentes em fase de execução no Poder Judiciário Estadual foi de, aproximadamente, 6 anos e 2 meses2. De 2019 até os dias atuais, certamente esse número vem crescendo a cada dia. Diante disso, mais que necessário o estímulo para que os procedimentos sejam cada vez mais trazidos para fora do poder judiciário.

O movimento da desjudicialização vem ganhando força no país, desde a década de 90. Como exemplo, podemos citar o reconhecimento de paternidade extrajudicial (lei 8.560/1992) e os procedimentos extrajudiciais de alienação fiduciária de bem imóvel (lei 9.514/1997).

Nos anos 2000, houve a efetiva consolidação do movimento, com destaque para a lei 11.441/07, que possibilitou a realização de inventários, partilhas, separações e divórcios pela via extrajudicial.

Nos anos 2010 até o presente, o movimento tomou mais uma crescente, com novos marcos normativos, como o CPC, a lei de mediação (lei 13.140/15), a lei 13.465/17 (que simplificou a regularização fundiária) e, mais recentemente, a lei 14.711/23, que ampliou significativamente as hipóteses de busca e apreensão extrajudicial.

O movimento de desjudicialização se insere no contexto da terceira onda de acesso à justiça, caracterizada pela busca de procedimentos mais acessíveis, simples e racionais.3

No contexto da desjudicialização, tramita na Câmara dos Deputados o PL 3999/20, de autoria do deputado Hugo Leal. A ideia do projeto é desjudicializar os despejos fundados na falta de pagamento de aluguel e seus acessórios. Trata-se de louvável inovação que, apesar de se tratar de PL, merece debate.

As motivações da criação do projeto

De acordo com o Censo de 20194, dos 72.395 domicílios analisados, 13.282 são locados. Trata-se de 18,34% da ocupação residencial do país. Diante disso, conforme trazido pela justificação do PL 3999/20, “caminhos que tornem a locação de imóveis mais competitiva, célere e viável, trarão evidentes benefícios a cada um dos atores que integram esse tipo de relação jurídica”.

De fato, qualquer advogado com o mínimo de prática ou cidadão com o mínimo de vivência sabe o quão tortuoso é um processo de despejo na justiça. E no curso desse processo, muitas vezes quando não há acordo ou o deferimento de medida liminar para desocupação, a morosidade é ainda mais prejudicial.

Também é bom lembrar que, como ressalta a justificação do PL, boa parte dos locadores depende da locação de imóvel para subsistência. Razão pela qual, muitas vezes é preciso que o locador renuncie ao recebimento de considerável numerário para conseguir um acordo para uma rápida desocupação por parte do locatário.

Por outro lado, se há o inadimplemento do aluguel é notório que o contrato de locação merece ser desfeito. Esse desfazimento pode muito bem ser respaldado pelos profissionais de direito, dotados de fé pública, que são os notários.

Para o processamento do despejo, o PL respeitou ainda as competências dos titulares dos cartórios. Sendo que do procedimento participarão o tabelião de notas e o registrador de títulos e documentos, conservando sua competência para o envio de notificações extrajudiciais.

Em seguida, passa-se a tratar de alguns aspectos do procedimento.

A hipótese do despejo extrajudicial

De acordo com a lei 8.245/1991, há inúmeras razões que motivam a ação de despejo, dentre as quais a não apresentação de novo fiador em virtude da exoneração do original, a sublocação não autorizada, infração contratual, etc.

No entanto, cuidou o PL por autorizar o despejo extrajudicial somente nos casos do art. 9º, III, da lei 8.245/1991, ou seja: a falta de pagamento de alugueis e demais encargos. É o que se lê no art. 66-A: o procedimento de despejo extrajudicial, previsto nos arts. 66-B ao 66-H, aplica-se, exclusivamente, às hipóteses de desfazimento do contrato de locação por falta de pagamento, nos termos do art. 9º, III desta lei.

Portanto, acertadamente o PL deixa de autorizar o despejo extrajudicial para casos que envolvam análise probatória mais rigorosa.

O despejo extrajudicial e institutos assemelhados no direito comparado

Quando se fala em inovação legislativa, é natural a pesquisa da inovação no direito comparado. Embora, em pesquisa, não se tenha encontrado exatamente um “despejo extrajudicial” no direito estrangeiro, alguns países têm iniciativas legislativas que visam a redução de prazos para maior celeridade.

Em Portugal, o decreto-lei 1/13 criou uma modalidade especial de despejo, através do BNA - Balcão Nacional de Arrendamento. Essa modalidade oferece prazos mais curtos que o despejo tradicional no país e conta com a participação do poder judiciário.

Na França, o huissier (oficial de justiça) desempenha um relevante papel no despejo5. Quando do inadimplemento, o oficial de justiça notifica o locatário, tentando encontrar uma solução amigável. Não havendo êxito, é solicitada uma ordem de despejo ao juiz.

Na Espanha, o despejo ocorre no poder judiciário, mas a lei processual civil6 oferece procedimentos sumários para o despejo por falta de pagamento, com prazos mais curtos.

Verificada essa questão, passa-se a tratar de como funcionaria o procedimento de despejo extrajudicial, caso o PL seja convertido em lei.

Leia a coluna na íntegra.

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1 Há, no meio jurídico, aqueles que criticam o nome desjudicialização. Como se o prefixo “des” trouxesse a conotação de pura negação da judicialização, sem refletir os objetivos construtivos por trás do movimento jurídico. 

2 Informação colhida na justificação apresentada no projeto de lei nº 3999/2020, que tramita na Câmara dos Deputados.

3 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988.

4 Disponível aqui.

5 Lei nº 89-462, de 6 de julho de 1989, que alterou a Lei nº 86-1290, de 23 de dezembro de 1986.

6 Ley 1/2000, de 7 de enero, de Enjuiciamiento Civil (Lei de Processo Civil).

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Coordenação

Carlos E. Elias de Oliveira é Membro da Comissão de Reforma do Código Civil (Senado Federal, 2023/2024). Pós-Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). 1º lugar em Direito no vestibular 1º/2002 da UnB. Advogado, parecerista e árbitro. Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e Registral. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012). Ex-assessor de ministro STJ. Membro do Conselho Editorial da Revista de Direito Civil Contemporâneo (RDCC). Fundador do IBDCont (Instituto Brasileiro de Direito Contratual). Membro da ABDC (Academia Brasileira de Direito Civil), IBDfam (Instituto Brasileiro de Direito de Família),do IBRADIM (Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário) e do IBERC.

Flauzilino Araújo dos Santos, 1º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de SP e presidente do Operador do Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico (ONR). Diretor de Tecnologia do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil - IRIB. Licenciado em Estudos Sociais, bacharelado em Direito e em Teologia e mestrado em Direito Civil. Autor de livros e de artigos de Direito publicados em revistas especializadas. Integra, atualmente, a Comissão de Concurso Público para outorga de Delegações de Notas e de Registro do Estado de Alagoas, realizado pelo CNJ.

Hercules Alexandre da Costa Benício, doutor e mestre em Direito pela Universidade de Brasília. É tabelião titular do Cartório do 1º Ofício do Núcleo Bandeirante/DF; presidente do Colégio Notarial do Brasil - Seção do Distrito Federal e acadêmico ocupante da Cadeira nº 12 da Academia Notarial Brasileira. Foi Procurador da Fazenda Nacional com atuação no Distrito Federal.

Ivan Jacopetti do Lago, diretor de Relações Internacionais e Coordenador Editorial do IRIB. Bacharel, mestre e doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduado pelo CeNOR - Centro de Estudos Notariais e Registrais da Universidade de Coimbra e pela Universidade Autónoma de Madri (Cadri 2015). 4º Oficial de Registro de Imóveis de SP.

Izaías G. Ferro Júnior é oficial de Registro de Imóveis, Civil das Pessoas Naturais e Jurídicas e de Títulos e Documentos da Comarca de Pirapozinho/SP. Mestre em Direito pela EPD - Escola Paulista de Direito. Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo - FADISP. Professor de graduação e pós-graduação em Direito Civil e Registral em diversas universidades e cursos preparatórios.

Sérgio Jacomino é presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) nos anos 2002/2004, 2005/2006, 2017/2018 e 2019/2020. Doutor em Direito Civil pela UNESP (2005) e especialista em Direito Registral Imobiliário pela Universidade de Córdoba, Espanha. Membro honorário do CeNoR - Centro de Estudos Notariais e Registais da Universidade de Coimbra e Quinto Oficial de Registro de Imóveis da cidade de SP.