- Viralização e engajamento: quanto pior, melhor
"Número zero", romance de Umberto Eco sobre um jornal criado para chantagear, difamar e prestar serviços duvidosos ao seu editor, nos lembra que sempre houve um nicho em que os veículos de imprensa atuavam apenas como “máquinas de moer reputações”.1 Entretanto, é necessário reconhecer que as redes sociais propiciaram um salto tanto qualitativo como quantitativo nas formas desses abusos.
A imprensa tradicional, em que ainda resistem certos padrões de conduta de verificação prévia de fatos e à oitiva dos dois lados, vem perdendo espaço para atuação de influencers (influenciadores digitais), pessoas muitas vezes sem qualquer qualificação ou treinamento compatíveis com a influência social que desempenham. Os algoritmos geradores de filtros-bolhas2 e a proliferação de bots de disparos em massa3 contribuem para alimentar uma comunidade polarizada em que se multiplicam quaisquer postagens que geram “engajamento”, ainda que se trate de “desinformação”.4
Nesse sistema, quanto mais absurda, ofensiva ou invasiva, mais provável é a postagem “viralizar”, despertando curiosidade dos incautos e reações de lovers e haters – os quais, mesmo quando guiados pela indignação e contestação, acabam por alimentar o “engajamento” que, por meio da monetização, enriquece o influenciador. Assim, ao mesmo tempo que o maior alcance da postagem ofensiva gera, para a vítima, um dano mais grave, gera também, para o ofensor, um prêmio econômico ainda maior.
A atuação do direito para coibir essas práticas deixa a desejar, como se observa nos debates, tanto na esfera legislativa como judicial, sobre a mudança urgente do regime de responsabilidade dos provedores. No âmbito cível, restritas as medidas de derrubada das postagens pela tutela da liberdade de expressão, a solução acaba por ser apenas a indenização por danos morais, anos depois de perpetrado o ilícito.
2. Insuficiência das indenizações por danos morais e problemas da dita “indenização punitiva”
Uma rápida pesquisa indica que os valores das condenações indenizatórias mantidas pelo STJ, envolvendo dano moral individual por abuso da liberdade de imprensa, variaram entre R$25 mil e R$ 78 mil.5 De outro lado, em entrevistas a veículos tradicionais de imprensa, produtores de fake news já revelaram que, dependendo do grau de “viralização” da notícia, conseguem de 10 mil dólares por mês6 até 10 mil dólares por dia7 com publicidade graças a esse tipo de postagem. Embora seja difícil ter certeza sobre esses números, a entidade internacional Global Disinformation Index relata que, mundialmente, cerca de 235 milhões de dólares em publicidade são destinados a domínios que veiculam desinformação.8 Ou seja, há aqui quebra do pressuposto fundamental a qualquer sistema de direito, consistente em que as atividades antijurídicas não sejam vantajosas nem estimuladas.
Há significativos esforços doutrinários realizados no sentido de assegurar maior previsibilidade e segurança à quantificação dessas indenizações, pois o panorama judicial já foi descrito como marcado por “um subjetivismo crônico a resultar em valores anacrônicos”9 e que “na maior parte dos casos, o resultado das ações de danos morais é antes frustrante do que efetivamente enriquecedor”.10
Diante disso, é comum entre nós atribuir às indenizações por danos morais um intuito punitivo, não em apartado como ocorre no direito anglo-saxão, mas contrabandeado dentro dos parâmetros para a fixação da indenização, o que já foi referido como um “dano moral à brasileira”.11 Há quem defenda, contudo, a necessidade de “refletir acerca de uma categoria autônoma de indenização punitiva, ou ao menos de uma verba autônoma no âmbito dos danos morais”12 ou mesmo a admissão de penas civis.13
Entretanto, como já se destacou em outra sede, “uma vez não previsto em lei, [isto] significa punição sem prévia cominação, confere um cheque em branco para o juiz cível ferir o princípio criminal da tipicidade (nullum crimen, nulla poena sine lege); vários atos geradores de dano moral também são crimes, o que acarreta um bis in idem, especialmente com a previsão de sanção pecuniária no direito penal (9.714/1998); tramitando na vara cível, a ação segue os mecanismos processuais (recursais) do direito civil, sem as garantias típicas do procedimento penal; o efeito punitivo é mitigado no âmbito civil porque nem sempre o responsável é o culpado, como nos casos de seguro de dano [...]”.14
3. Perspectivas a partir da condenação à restituição do lucro da intervenção
Melhor caminho parece, portanto, conciliar a pretensão de ressarcimento pecuniário da vítima com o desestímulo da prática ofensiva – ou, ao menos, evitar que ela seja lucrativa para o ofensor – pelo chamado “lucro da intervenção”, descrito como “o lucro obtido por aquele que, sem autorização, interfere nos direitos ou bens jurídicos de outra pessoa”.15 Trata-se de figura abrangente de diversas situações, heterogêneas entre si, por vezes endereçadas no campo da responsabilidade civil, ora no âmbito do direito restitutório, ora ainda por regras específicas, como ocorre entre os direitos reais.16
A figura tem sido bastante invocada para se referir aos casos em que o lucro foi obtido por meio de intervenção ilícita ou abusiva do interventor e o dano sofrido pela vítima – e, portanto, a indenização compensatória a que terá direito – é inferior ao lucro obtido. A prova técnica permite aferir com certa confiança o lucro obtido pelo influenciador por meio da monetização da postagem e a doutrina vem reconhecendo a possibilidade de cumular a pretensão indenizatória pelo dano sofrido com a violação da honra, imagem ou privacidade pelo influenciador, fundada no art. 927 do Código Civil, com a pretensão de restituição do lucro obtido graças à postagem antijurídica – e, portanto, a partir do direito da personalidade alheio – fundada no art. 884 do Código Civil.17
Diante desse cenário, a pretensão restitutória do lucro da intervenção apresenta vantagens claras frente à indenização punitiva, como forma de desestímulo aos ilícitos praticados por influencers, não somente por já encontrar respaldo legal em nosso ordenamento, mas também por permitir quantificação de forma mais objetiva e segura.18
1 A expressão é de NASSIF, Luis. 12 anos depois, meu direito de resposta na Veja. In: GGN, 20 dez. 2020. Disponível em , acesso em 02 mai. 2025.
2 Sobre o tema, v. MAGRANI, Eduardo. Democracia conectada: a internet como ferramenta de engajamento político-democrático. Curitiba: Juruá, 2014; SOUZA, Carlos Affonso Pereira de; TEFFÉ, Chiara Spadaccini de. Fake news e eleições: identificando e combatendo a desordem informacional. In: ABBOUD, Georges; NERY JR., Nelson; CAMPOS, Ricardo (coord.). Fake news e regulação. São Paulo: Thompson Reuters Brasil/Revista dos Tribunais, 2018, p. 177-189; ALVES, André Farah. Desinformação online, liberdade de expressão e democracia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2024.
3 O tema foi abordado por MELO, Patrícia Campos. A máquina do ódio: notas de uma repórter sobre fake news e violência digital. São Paulo: Companhia das letras, 2020.
4 CARNEIRO, Gustavo Ferraz Sales. Autorregulação de fake news no Facebook: incentivos e freios à proliferação de desinformação. Revista de direito e as novas tecnologias, vol. 3. São Paulo: abr.-jun./2019, p. 9
5 KONDER, Carlos Nelson. Abuso lucrativo da liberdade de imprensa e pretensões ressarcitórias pecuniárias: indenização punitiva x lucro da intervenção. Revista de Direito Privado, v.113. São Paulo, 2022, p. 59-75.
6 OHLHEISER, Abby. This is how Facebook’s fake-news writers make money. In: The Washington Post, 18 nov. 2016. Disponível em , acesso em 02 mai. 2025.
7 DEWEY, Caitlin. This is not an interview with Banksy. In: The Washington Post, 18 nov. 2016. Disponível em , acesso em 02 mai. 2025.
8 GLOBAL DISINFORMATION INDEX. The quarter billion dollar question: how is disinformation gaming ad tech?. Set. 2019. Disponível em , acesso em 02 mai. 2025.
9 MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Elementos de responsabilidade civil por dano moral. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 145.
10 SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2007, p. 186.
11 MARTINS-COSTA, Judith. Dano moral à brasileira. RIDB, ano 3 (2014), n. 9, p. 7073-7122.
12 LEVY, Daniel de Andrade. Responsabilidade civil: de um direito dos danos a um direito das condutas lesivas. São Paulo: Atlas, 2012, p. 79.
13 ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil, 3. ed.. São Paulo: Saraiva, 2017, passim.
14 KONDER, Carlos Nelson. A redução eqüitativa da indenização em virtude do grau de culpa: apontamentos acerca do parágrafo único do art. 944 do Código Civil. Revista trimestral de direito civil, v. 29. Rio de Janeiro: 2007, p. 17. Para aprofundamento nas críticas, v. MORAES, Maria Celina Bodin de. Punitive damages em sistemas civilistas: problemas e perspectivas. Revista trimestral de direito civil, vol. 18. Rio de Janeiro: abr.-jun./2018, p. 45-78.
15 SAVI, Sérgio. Responsabilidade civil e enriquecimento sem causa. São Paulo: Atlas, 2012, p. 7.
16 KONDER, Carlos Nelson. Dificuldades de uma abordagem unitária do lucro da intervenção. In: Revista de direito civil contemporâneo, v.13, p. 231-248, 2017.
17 Para releitura do requisito da subsidiariedade e possibilidade de cumulação das pretensões, v. SILVA, Rodrigo da Guia. Enriquecimento sem causa: as obrigações restitutórias no direito civil. São Paulo: Thompson Reuters, 2018, p. 198 e ss.; NANNI. Giovanni Ettore. Enriquecimento sem causa. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 206; SILVA, Rafael Peteffi; SILVA, Sabrina Jiukoski. A restituição do lucro da intervenção no Brasil: perspectivas a partir do REsp. 1698701/RJ do Superior Tribunal de Justiça. In: FRAZÃO, Ana et al. (coord.). Liber amicorum: homenagem aos 13 anos de atuação do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva na Corte da Cidadania, vol. 1. Leme-SP: Mizuno, 2025, p. 364-388.
18 KONDER, Carlos Nelson. Abuso lucrativo da liberdade de imprensa e pretensões ressarcitórias pecuniárias: indenização punitiva x lucro da intervenção. Revista de Direito Privado, v.113. São Paulo, 2022, p. 59-75.